NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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A HISTÓRIA DA NOSSA (CONCEPÇÃO DE) NATUREZA
Alessandro Zir

RESUMO

Neste artigo, pretendemos mostrar como uma determinada concepção de natureza subjacente à ciência e parte de nosso senso comum emerge em meados do século XVII. Essa concepção é aquela que vê a natureza como algo capaz de se manifestar através de um conjunto de evidências organizáveis por leis probabilísticas, e essa concepção surge através de transformações na maneira como os homens até então percebiam sua própria linguagem e o mundo. Trata-se de transformações históricas que vão dar origem a conceitos como o de inferência indutiva, probabilidade e outros que lhes estão relacionados. A hipótese de que a concepção específica de natureza referida emerge em meados do século XVII não é nossa. Vamos defendê-la com base nas pesquisas já consagradas feitas por Michael Foucault e Ian Hacking, respectivamente em seus livros As Palavras e as Coisas e O Surgimento da Probabilidade.

A PROBABILIDADE DA NATUREZA
O que seria a natureza senão um todo organizado conforme certas leis, as quais podemos, enquanto seres racionais, reconstruir, através da linguagem, reunindo evidências em termos de probabilidade? Aparentemente, nada! E no entanto, a natureza nem sempre foi percebida assim. Ela passou a ser percebida dessa maneira mais ou menos ao redor de 1660. Foi nessa data ao menos que, segundo argumenta Hacking, muitas pessoas, de forma independente, puderam enxergar, pela primeira vez na história do Ocidente, um fenômeno de "duas caras" - um fenômeno que, por um lado, tinha a ver com leis estatísticas envolvendo aleatoriedades e, por outro, tinha a ver com graus em que se deve ou não acreditar em determinadas proposições (Hacking 1995: 24-25). Esse fenômeno veio a ser chamado de probabilidade e ele constitui um dos traços essenciais daquilo que entendemos por natureza até hoje.

A fim de explicarmos como, por volta de meados do século XVII, os homens passaram a pensar a natureza explicitamente em termos de probabilidade e de outros conceitos que lhe estão intimamente associados, como o de inferência indutiva, propomos o esquema da Fig. 1. Esse esquema serve para dar uma dimensão mais espacial das principais transformações históricas na maneira como os homens até então percebiam sua própria linguagem e o mundo, as quais iremos examinar segundo a argumentação de Hacking e também de Foucault. No entanto, obviamente, tal esquema não deve ser levado ao pé da letra, pois as transformações a que ele se refere são dinâmicas e estão bastante intricadas. No topo do esquema, temos a distinção medieval entre Ciências Altas e Ciências Baixas. Conforme veremos, a probabilidade vai se originar de transformações que ocorrem no âmbito das chamadas Ciências Baixas - transformações essas que acabarão por dissolver a antiga distinção entre Ciências Altas e Ciências Baixas. Pode-se dizer que essas transformações, assim como expressa graficamente nosso esquema e conforme explicaremos a seguir, se dão em duas linhas, as quais estão intricadas, uma delas nos levando do conceito renascentista de signo à noção de inferência indutiva (que é a mesma que possuímos ainda hoje) e a outra nos levando do termo latino probabilitas, que no contexto medieval e renascentista (conforme veremos) significa aprovação por alguma autoridade, a uma concepção da natureza enquanto livro, escrito por Deus e que como tal deve ser estudado, à medida que é o testemunho da Sua autoridade. É interessante notar aqui que o que Hacking denomina de período pré-histórico do conceito de probabilidade eqüivale ao período pré-clássico de Foucault em As Palavras e as Coisas, assim como o que ele denomina de período da probabilidade equivale ao período clássico de Foucault.

Comecemos, então, conforme nos guia Hacking, atentando para uma distinção cuja origem é tão antiga que poderíamos remeter a Platão: a distinção entre conhecimento e opinião, mas vamos considerá-la na forma em que ela se manifesta no contexto medieval e renascentista (no período pré-histórico da probabilidade). Hoje em dia, a distinção entre conhecimento e opinião poderia aparecer, por exemplo, no seguinte raciocínio: se uma proposição p é verdadeira, é possível acreditar que (ter a opinião de que) p é verdadeira e, além disso, é possível conhecer p, isto é, acreditar que p é verdadeira e ter uma justificativa para apoiar essa crença (1). Sem entrarmos na controvérsia de se o conhecimento é realmente crença verdadeira justificada, e no que consistiria essa justificação, importa para nós ressaltar, junto com Hacking, que na Idade Média, como pode ser visto na obra de autores como São Tomás, conhecimento e opinião são coisas tão diferentes que sequer possuem os mesmos objetos. Conforme diz Hacking, na epistemologia medieval, o conhecimento era sempre conhecimento de verdades universais e necessárias, e o que não fosse uma verdade universal e necessária se encontrava para sempre varrido do domínio do que podia ser qualificado de conhecimento. Para São Tomás, aliás, o domínio das verdades universais e necessárias, e por conseguinte, o domínio do que podia ser conhecido, é bastante limitado, restando muita coisa fora dele. As verdades universais e necessárias ou eram verdades tão simples e fundamentais que estavam além de toda discussão, ou eram inferidas a partir dessas verdades simples e fundamentais através de deduções, usando regras lógicas como o modus pones, etc. A opinião, por sua vez, se referia exatamente àquelas crenças ou doutrinas a respeito de coisas que não eram nem simples e fundamentais e nem podiam ser deduzidas de verdades simples e fundamentais (Hacking 1995: 34-37). Não faz nenhum sentido, portanto, nesse contexto medieval, dada essa distinção, querer, como que 'melhorar' uma opinião a fim de transformá-la em ciência. A opinião diz respeito a coisas que são essencialmente "opacas" e seria absurdo querer como que "esclarecer" essas coisas. Em outras palavras, a cisão entre conhecimento e opinião nesse período reflete também uma ontologia própria e bastante diversa daquela dos períodos que vão sucedê-lo (nos quais não haverá mais a concepção desses domínios ontologicamente distintos da realidade, aos quais diriam respeito o conhecimento e a opinião).

As Ciências Baixas não eram propriamente ciências, mas saberes como a medicina e a alquimia que nunca tinham a esperança de alcançar conhecimento demonstrativo e portanto pertenciam ao domínio da opinião. É desses saberes, segundo Hacking, que irá surgir o conceito de probabilidade tal como o conhecemos. Por outro lado, quando o conceito de probabilidade efetivamente emergir, com todas as suas características tal como o compreendemos hoje, a distinção radical entre Ciências Altas e Baixas, conhecimento e opinião (enquanto categorias epistemológicas direcionadas a domínios de realidade completamente diferentes), estará por completo obliterada.

Conforme lembra Hacking, o termo latino probabilitas já existia na Idade Média e também no Renascimento (estaremos seguindo agora a linha vertical mais à direita no nosso esquema: probabilitas, probabilismo, estudo da natureza), mas tinha então um significado inteiramente diferente do que aquele que surge mais tarde - estava ligado somente à opinião e queria dizer exatamente o seguinte: aprovação ou aceitabilidade (de alguma coisa) por pessoas respeitáveis. Esse termo nada tinha a ver (bem diferentemente de como o entendemos hoje em dia) com algo como apoio pela evidência. O conceito de evidência, tal como o compreendemos, sequer existia (mas ele será fruto, conforme veremos em seguida, de transformações que surgem ligadas ao conceito renascentista de signo, as quais estão também subsumidas ao domínio da opinião e às Ciências Baixas). Podemos nos dar conta do caráter (para nós) estranho desse antigo significado de probabilidade (aprovação ou aceitabilidade por pessoas respeitáveis) considerando "fragmentos de antigas locuções nas quais 'provável' realmente significa digno de aprovação" (Hacking: 1995, 32). Era comum falar-se então de "um 'doutor provável'", querendo-se referir com essa expressão a "um médico em quem se podia confiar" (Hacking: 1995, 33). Esse significado medieval de probabilitas está também presente no chamado 'probabilismo', um princípio de casuística, criado pelos jesuítas no século XVI, a fim de resolver o seguinte problema: "que devemos fazer quando acontece que as autoridades, em especial, os Padres da Igreja, estão em desacordo?" (Hacking 1995: 39). Os jesuítas afirmavam que poderíamos nos valer da opinião de qualquer uma dessas autoridades e que deveríamos decidir pela mais vantajosa, tendo em vista nossos valores morais e nossos objetivos práticos. Sendo opiniões expressas por alguma autoridade, elas sempre seriam prováveis (isto é, dignas de aprovação) e qualquer uma delas poderia ser defendida. No nosso esquema, o probabilismo aparece na coluna bem à direita, abaixo de probabilitas - isso serve para indicar que, embora no probabilismo a probabilidade ainda signifique aprovação ou aceitabilidade (de alguma coisa) por pessoas respeitáveis, o probabilismo já é, segundo Hacking, "um símbolo da perda de certeza que caracteriza o Renascimento e da disposição, que gera ansiedade, de vários poderes por encontrar um substituto para os velhos cânones do conhecimento" (1995: 40). Essa perda de certeza é um sinal da ruína que vai pouco a pouco abalar os dois domínios da ciência e da opinião, misturar seus critérios, a certeza e a autoridade, dando origem a uma nova concepção de natureza e do estudo que dela se pode fazer.

Já na abertura dessa nova perspectiva de estudo da natureza, Paracelso, junto com muitos outros pensadores renascentistas, protesta contra "a vã repetição" de autores tradicionalmente consagrados como Galeno e Avicena. Mas, ao fazer isso, ele ainda não dizia nem "abandonemos a evidência externa e passemos à evidência interna" e nem "deixem de copiar e observem os fatos" - ele dizia "deixem de estudar os livros ruins e comecem a estudar os livros bons", livros que Deus escreveu e que podem ser encontrados em todas as partes (Hacking 1995: 58). É uma exortação ao estudo da natureza em geral (independente das antigas distinções entre Ciências Altas e Baixas, conhecimento e opinião, verdades necessárias e não necessárias, etc.) como algo provável, mas ainda naquele sentido medieval, de probabilitas , isto é, como algo que atesta a autoridade de Deus. Esse estudo será feito através dos signos, que são, nos livros de medicina do Renascimento, "qualquer coisa através da qual se pode fazer um prognóstico" (Hacking: 1995, 44).

Quanto ao conceito renascentista de signo, convém examinarmos o que Foucault diz dele em As Palavras e as Coisas . Vamos tratar disso agora, numa seção separada, mas antes, podemos retomar em poucas palavras o que vimos nos últimos parágrafos: seguindo à linha vertical descendente bem à esquerda do nosso esquema, vimos como, no âmbito das chamadas Ciências Baixas, surge uma forma de abordagem cognitiva da natureza em sentido amplo baseada no caráter 'provável' (em sentido medieval, isto é, digno de aprovação) dessa última, abordagem que também, paradoxalmente, constitui, por sua vez, uma subversão da antiga distinção medieval entre opinião e conhecimento, Ciências Baixas e Ciências Altas. Essa abordagem nos dirá por um bom tempo o que é a natureza, entre outras coisas, algo que, em sua totalidade e mínimos detalhes, pode ser conhecido. Inicialmente, o que é muito estranho para nós hoje, todas as coisas, incluindo aquilo que consideramos como coisas propriamente ditas e palavras, serão signos; mas logo em seguida, as palavras vão se separar radicalmente das coisas, para que a natureza possa de fato ser conhecida e dominada de uma forma mais eficaz.

LINGUAGEM E SIGNO NA RENASCENÇA

No final do século XVI, segundo afirma Foucault em As Palavras e as Coisas , era a semelhança que organizava o saber, através de quatro figuras principais: a convenientia, a aemulatio, a analogia e o jogo das simpatias. As quatro figuras da semelhança mostram, para os homens pré-clássicos, os caminhos da similitude, mas eles só sabem onde a similitude de fato está, só a vêem e a reconhecem, porque no mundo há uma infinidade de marcas, de sinais: "É preciso que as similitudes submersas estejam assinaladas na superfície das coisas; é necessária uma marca visível das analogias invisíveis. Acaso não será toda semelhança há um tempo o que há de mais manifesto e o que está melhor oculto?" (Foucault 1995: 42). O mundo das semelhanças é como "um grande livro aberto, carregado de grafismos", um "todo buliçoso", que se "pode comparar a um homem que fala" (Foucault 1995: 43). Nesse mundo, que podemos vislumbrar na obra de autores como Paracelso, tão diferente do nosso (2), segue-se o rastro infinito da semelhança que liga, como voz divina que fala, toda e qualquer coisa do mundo e caminha-se sempre de uma marca para outra, de um particular para outro particular, seguindo o parentesco que se descobre entre eles. Deve-se reparar no estatuto sui generis dessas marcas e sinais (e conseqüentemente, da linguagem), numa ecologia como essa - as marcas do período pré-clássico não duplicam exatamente as semelhanças que elas indicam, não constituem como que um espaço destacado, próprio de todos os signos, pois cada sinal não é nada mais que uma forma intermediária de semelhança, uma figura da semelhança relacionada à outra figura da semelhança: "[...] o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que o signo da simpatia resida na analogia, o da analogia na emulação, o da emulação na conveniência, que, por sua vez, para ser reconhecida, requer a marca da simpatia..." (Foucault 1995: 45). Sendo assim, uma assinalação e aquilo que ela designa são da mesma natureza, são semelhanças paralelas, desviadas uma em relação à outra, oscilantes. O sentido dos signos (aquilo que eles falam) e o seu próprio caráter de signo se superpõem de forma opaca enquanto tudo é semelhança, e na brecha existente entre aquilo que uma marca indica e a própria marca, o saber se impõe uma tarefa inacabável: "posto que há um 'vão' entre as similitudes que formam grafismo e as que formam discurso, o saber e seu labor infinito recebem aí o espaço que lhes é próprio: terão que sulcar essa distância indo, por um ziguezague indefinido, do semelhante ao que lhe é semelhante" (Foucault 1995: 46).

No século XVI, entre os autores herméticos oriundos das Ciências Baixas, como Paracelso, os quais vão dar origem (como vimos na seção anterior, seguindo a argumentação de Hacking) a uma forma de abordagem cognitiva da natureza em sentido amplo baseada no seu suposto caráter 'provável' (digno de aprovação), não se pensam as palavras e as coisas como estando radicalmente separadas. No mundo da semelhança, as palavras estão lado a lado com as coisas, se relacionam com as coisas e entre si da mesma maneira como as coisas se relacionam com as coisas: "No seu ser bruto e histórico do século XVI, a linguagem não é um sistema arbitrário; está depositada no mundo e dele faz parte porque, ao mesmo tempo, as próprias coisas escondem e manifestam seu enigma como uma linguagem e porque as palavras se propõem aos homens como coisas a decifrar" (Foucault, 1995: 51). As letras, as sílabas, as palavras têm propriedades intrínsecas organizadas, como as coisas, pelas figuras da semelhança e visíveis através de marcas: "A linguagem faz parte da grande distribuição das similitudes e das assinalações. Por conseguinte deve, ela própria, ser estudada como uma coisa da natureza. Seus elementos têm, como os animais, as plantas ou as estrelas, suas leis de afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias" (Foucault, 1995: 51). Nesse contexto chamado de pré-clássico (pós-medieval e concomitante ao contexto pré-probabilístico de Hacking), poder-se-ia dizer que uma palavra tem valor à medida que é densa, que suas letras estão combinadas de tal forma que lhe conferem uma propriedade semelhante à da coisa que ela nomeia. Nesse contexto chamado de pré-clássico, uma boa palavra não é (bem ao contrário do que ocorrerá logo em seguida no contexto clássico, ou, na perspectiva de Hacking, probabilístico) aquela que está no lugar de uma coisa por mera convenção e que deveria desaparecer ela mesma enquanto coisa.

EVIDÊNCIA, INDUÇÃO, LEIS

Conforme já aludimos, é a partir do conceito renascentista de signo que surgem também transformações que irão concorrer para o surgimento da probabilidade tal como a conhecemos hoje. Aparecerá, a partir do conceito renascentista de signo, segundo Hacking, um conceito de evidência que até aí não existia (estaremos seguindo agora a linha vertical mais à esquerda no esquema da fig. 1: signo, evidência interna, inferência indutiva). Conforme afirma Hacking, em harmonia com o que dizia Foucault sobre o período pré-clássico, para esses autores renascentistas, o mundo todo (o que incluiria tanto as coisas quanto as palavras) é constituído de uma infinidade de marcas, sinais, coisas escritas. Para autores renascentistas como Francastoro, signos da natureza, tanto quanto palavras escritas pelos homens em seus livros, podem ser ditos prováveis, naquele sentido medieval de probabilitas (aprovação ou aceitabilidade de algo por pessoas respeitáveis), porque "a natureza é a palavra escrita, a escritura do Autor da Natureza" (Hacking 1995: 46). O conceito de probabilidade (tal como o conhecemos) tem a sua pré-história nesse esquema conceitual estranho, gerador de semelhanças entre palavras e coisas: "As semelhanças entre palavras e pedras, ervas e cometas, estão agora perdidas para nós, não obstante, é o esquema conceitual que gera tais semelhanças aquele em que devemos penetrar" (Hacking 1995: 57).

Para Paracelso, ler a urina não é de forma alguma uma expressão metafórica (Hacking 1995: 59). Tanto os nomes quanto as coisas são signos: "Paracelso sabia que o metal mercúrio, na dose correta, curaria a sífilis e, deste modo, estabeleceu a prática médica durante três séculos. [...] A sífilis está assinalada pelo comércio onde foi contraída [isto é, a prostituição]; o planeta Mercúrio foi assinalado pelo comércio [desde os gregos, a mitologia associa o planeta mercúrio aos comerciantes e negociadores]; o metal mercúrio, que leva o mesmo nome, é portanto, a cura para a sífilis" (Hacking 1995: 60). São signos que remetem uns aos outros, mas sempre do particular ao particular. Não obstante, com isso está se traçando algo que até então não existia: um conceito de evidência que pode guiar o conhecimento e que nada tem a ver com a certeza dedutiva (isto é, que nada tem a ver com a demonstração, típica das Ciências Altas, através de regras como o modus ponens , a partir de verdades universais e necessárias) ¾ esse novo conceito de evidência possibilita um novo tipo de inferência, que viaja de marca em marca descobrindo semelhanças ocultas entre as coisas.

Essa evidência do particular para o particular vai aos poucos se transformar numa evidência que tem seguramente o sentido do que chamamos de inferência indutiva (do particular para a formulação de leis). Isso ocorre na medida em que, entrando no século XVII, as palavras começam a desaparecer do meio das coisas e em sua própria materialidade, passando a ser vistas como instrumentos representativos completamente convencionais; e as coisas, por outro lado, como uma matéria a ser dominada (ver o terceiro capítulo de As Palavras e as Coisas , "Representar", Foucault, 1995: 61-93). As palavras ficarão então inteiramente ordenadas em função do que significam (essa matéria do mundo), como um quadro, um mapa, tendo sua densidade diminuída ao máximo a fim delas poderem desempenhar o melhor possível a função de 'estar no lugar de'. O mundo será refletido através desses quadros e mapas por uma articulação adequada das evidências que o sujeito de conhecimento descobre na matéria de que tal mundo é feito. A maturidade da noção de evidência como inferência indutiva pressupõe que o mundo e seus objetos (independente de quais sejam eles, objetos da medicina ou da astronomia) possam ser organizados através da linguagem (entendida em termos nominalistas) segundo leis inferidas a partir de evidências. Tal maturidade pode ser encontrada, segundo Hacking, na Lógica de Port Royal (cuja primeira edição data de 1662), quando, por exemplo, nessa obra, defende-se que, para acreditarmos na ocorrência ou não de um milagre, devemos considerar as várias circunstâncias, tanto externas quanto internas, que podem estar relacionadas a ele. As circunstâncias externas são as que correspondem às pessoas através de cujo testemunho nos inclinamos a acreditar na ocorrência do milagre. As circunstâncias internas se referem a se o milagre é ou não um tipo de coisa que poderia ocorrer na natureza (se pode ser entendido numa relação com outros objetos, fatos, etc., ou subsumido a alguma lei, principalmente leis probabilísticas).

Tínhamos visto, na primeira seção deste artigo, como das Ciências Baixas, no século XVI, surge uma abordagem cognitiva da natureza em sentido amplo, que considera tudo (coisas e palavras) como signos, marcas de semelhanças que remetem umas às outras, do particular ao particular. Nesta terceira e última seção do nosso artigo, vimos como essa noção de signo dá origem a uma nova noção de evidência, a qual se tornará aquilo que chamamos de inferência indutiva quando, no caldeirão desses signos do saber hermético, as palavras se separarem das coisas e passarem a ser vistas, no século XVII, como instrumentos inteiramente convencionais a partir dos quais podemos mapear o mundo inferindo leis das evidências que descobrimos na matéria que o constitui. Chegamos, enfim, à concepção de natureza cuja emergência histórica era o nosso objetivo mostrar.

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas . São Paulo: Martins Fontes, 1995. 

HACKING, I. Historical Ontology: from the creation of phenomena to the formation of character . Robert and Maurine Rothschild Lecture, 1999.

HACKING, I. El Surgimento de la Probabilidad . Barcelona : Gedisa, 1995.

HACKING, I. Representing and Intervenning . Cambridge University Press, 1983.

NOTAS

(1) Eis um exemplo mais concreto desse raciocínio: desde muitíssimo tempo existe a crença na transmissão de caracteres de um indivíduo aos seus descendentes. Não obstante, só recentemente é que foi possível construir teorias capazes de explicar de modo bastante satisfatório o mecanismo da hereditariedade. Pode-se dizer que até o período mais recente apenas se acreditava que, se tinha a opinião de que, a proposição que afirma que há transmissão de caracteres de um indivíduo aos seus descendentes fosse verdadeira, mas que hoje se sabe, se conhece, que essa proposição é verdadeira.

(2) Em Representing and Intervenig , Hacking afirma o seguinte: "The trouble is not just that we think Paracelsus wrote falsely, but that we cannot attach truth or falsehood to a great many of his sentences. His style of reasoning is alien." [O problema não é que acreditemos que Paracelso escreve coisas falsas, mas que não podemos atribuir nem verdade e nem falsidade à grande maioria das suas sentenças. Seu estilo de raciocínio é alienígena] (1983: 70).