CARTAS DE ROSA DE CARVALHO :
HÁ UMA CIÊNCIA MAÇÓNICA? (fim)
Maria Estela Guedes


CARTAS DE ROSA DE CARVALHO
CARTA 1

Das águias águias [1] existem só duas: a terceira morreu morreu [2] em virtude de um beijo que lhe deu a maior.

Uma destas será da grandeza de um peru piru [3]. Toda preta, menos a cabeça, que é um pouco castanha. É muito nova ainda, e tanto que conserva penugem. Não sei, e creio mesmo que é difícil conhecer, atendendo à idade, se é ou não a águia real. É de aspecto soberbo e qualquer fisionomista leria muito no olhar dela.

A outra será águia, mas das espécies muito vulgares. Parece destes milhafres grandes. Não se pode porém saber o que é porque apenas começam a aparecer as penas.

E é o que posso dizer e afirmar debaixo do juramento do meu grau, se necessário for.

Júlio A. Henriques

Espinheiro: 20 de Julho 63

Quando chegou a Braga a carta do Manuel Paulino, estava lá o nosso Júlio Henriques; foi ver as águias e escreveu esta carta.

Recebi ontem a sua carta de 16, já sabia da oferta do Rei ao nosso museu e até vi uma censura de um periódico a esta oferta não ter sido feita também ao museu de Coimbra, acusando o Ministro [4] por não ter lembrado isto ao Rei; são coisas deste mundo. Estimo as melhoras do seu adjunto. Quanto à dúvida que tem nos ninhos de Tordoveia [5] não é sem fundamento, pois pertencem ambos à Tordoveia viscivorus - Nºs 19 e 20, por isso queira deitar à rua aquele que está quase partido pelo meio. Quanto aos ninhos de Chamariz e da Tutinegra atricapila [6] Nºs 11 e 23 ou da outra Tutinegra dos Valados Nº 8 pode o meu amigo estar certo de que estão certos, são ninhos muito conhecidos e muito frequentes, eu não me podia enganar com eles; os de Chamariz diferem muito uns dos outros, e pode dizer-se que um indivíduo não pode pôr ovos parecidos em tudo com os de outro, e o mesmo se pode dizer da atricapila. Se quiser mando-lhe outros ninhos das mesmas espécies. A única colecção que faço para mim é de ninhos, porém ainda me faltam alguns dos que mandei.

Escrevi um bilhete quando mandei a Coruja, em que lhe dizia que um filho de um exMinistro já defunto, por apelido Campello tem uns moluscos aquáticos muito grandes parecidos com as anodontas e apanhados no rio Ceira próximo a Coimbra, isto foi-me dito por pessoa fidedigna que os viu. Este Campello tem uma sofrível colecção de moluscos, e é empregado numa secretaria.

Aº do C.

J.M. Rosa de Carvalho

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-12)

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[1] A palavra está duplicada, escrita também por cima. A carta também é dupla.

[2] A palavra está duplicada, escrita também por cima.

[3] A palavra está duplicada: "piru" ou “perú” em cima e "peru" em baixo. No original, estas três palavras dispõem-se em duplo triângulo.

[4] Talvez o próprio Bocage, que fez carreira política, e foi por várias vezes ministro.

[5] Turdus viscivorus

[6] Sylvia atricapilla - toutinegra-de-barrete-preto.

CARTA 2

Quinta do Espinheiro 30 de Julho 64.

Meu caro amigo -

Donde viria o dizer-se que me estou ocupando com a botânica? Lembro-me que disse ao Dr. Cortez que havia de ir a certo pinhal colher uma planta para o C. Machado; seria daqui? A sua carta de 10 encheu-me de satisfação por ver que o meu amigo não se mortificou com o que lhe disse do nosso museu, e mortificado fui eu por supor que o seu nervoso se irritara com isto. Nessa carta chamou a minha atenção para os répteis; quanto às salamandras aquáticas nada tenho visto de novo; quanto aos Sapos há aqui uma espécie rara que ainda não mandei, e aparece em Maio; é menor do que o Sapo ordinário e tem o ventre cor-de-laranja [1]. Lagartixas há uma espécie de que apenas vi dois indivíduos há anos, parece-me ser a que os franceses chamam des souches [2] que não significa Lagart. dos estúpidos, porque então seria minha, mas sim dos troncos ou raízes das árvores.

Fui outra vez à Geria e tive notícia de 3 Garcenhos [3] que meia hora antes da minha chegada lá tinham andado, sei agora que eles estão ocultos durante o dia ou parte dele, e é por isso difícil vê-los. As muitas doenças que por ali grassam nesta quadra tiram-me a vontade de lá voltar brevemente, mas conto obter algum este ano. Não é a nicticorax [4] nem a stelaris [5], é a espécie não descrita.

Quem me dera cá Setembro para ver o meu amigo e mostrar-lhe algumas aves que hei-de então matar no campo de Coimbra. Estou jurado, mas com esperança de largar a maçada no dia 5 ou 6. Não fiquei hoje jurado e por isso fui ver o C. Machado que se lhe recomenda, disse-me que o António de Carvalho voltara há pouco daí.

Lá vai o nosso Júlio Henriques e o Manuel Paulino, parece-me que o primeiro não volta. Tinha esperança de obter alguns animais de Mangualde - Putorius fetidus [6] e congéneres etc.. Em Agosto aparece aqui uma Petina anthus arboreus? [7] ela parte em Setembro o nome vulgar Sombria, porque procura a sombras das árvores.

Tenho 3 cobras muito bem conservadas, e até ver o meu amigo, hei-de obter mais répteis.

Vi na Geria um arv. Musignani [8] sobre um salgueiro, o amphib. [9] não trepa; achei duas ninhadas dos tais Musignani debaixo da terra mas em pequena profundidade; o amphy. cria nos juncos sobre a água. Logo todos os ratos de água que lhe tenho mandado são o Musignani e não o amphy.. Estou quase persuadido de que o rato grande da Geria é também o Musignani.

Pode ser que o entusiasmo me leve, em Outubro e Novembro, a dormir pelo campo do Mondego, nas povoações já se sabe, armando às diversas espécies de ratos que por lá devem aparecer. Os divertimentos de Sintra [10] farão com que o meu amigo não me escreva tão cedo.

J.M.R. de Carvalho

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-13)

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[1] Bombina bombina (=Bombinator igneus) - sapo de ventre cor de fogo. Não está catalogado para a fauna da Europa ocidental e só existe, que se saiba, em parte da meridional.

[2] Lacerta agilis - não é uma lagartixa, sim um lagarto. A espécie não está representada ainda em Portugal.

[3] Ixobrychus minutus - garcenho.

[4] Ciconiformes. Nycticorax nycticorx (L.) - goraz.

[5] Ciconiformes. Botaurus stellaris (L.) - abetouro comum.

[6] foetidus. Mamífero. É Mustela putorius, o toirão.

[7] Passeriformes - Anthus arboreus. Petinha.

[8] Arvicola musiniani=Arvicola sapidus - rato-de-água. Rosa escreve como Bocage, na Noticia ácerca dos arvicolas de Portugal : primeiro nome com minúscula e abreviado - "arv. incertus", por exemplo.

[9] Arvicola amphibius=Arvicola sapidus - rato-de-água.

[10] Bocage tinha casa em Sintra.

CARTA 3

Quinta do Espinheiro, 15 de Agosto 64.

O nosso Dr. Cortez disse-me que havia de intrigar com o meu amigo e por isso lhe falou em botânica; é um grande maroto. Há poucos dias foi daqui para aí um primo dele que é ou tem sido empregado no brigue Ligeira que anda na carreira de Lisboa para o Pará; escrevi por ele ao meu amigo ou a pessoa que faz as suas vezes no museu, com o fim de lho mostrarem, e dar-lhe instruções para ele também concorrer para o aumento das colecções; basta que ele leve para aí os animais que morrerem no brigue para se arranjar alguma coisa boa; morreram 2 macaquitos pretos do tamanho de ratos, com uma malha amarela sobre as costas, talvez ainda lá não tenha esta espécie, que não se perderia se o rapaz os tivesse aberto e deitado em aguardente. Consta-me agora que talvez ele mude de navio e vá para a carreira da Índia a Lisboa.

Não tenho dúvida em crer que o sapo de ventre cor de laranja é o Bombinator igneus [10]; o espinhaço dele é mais alto do que as ilhargas do corpo e pode dizer-se que elas formam 2 planos inclinados.

Apanhei e tenho em aguardente 2 sapinhos de que o meu amigo não fala na sua lista [10], são mais pequenos do que o obstréticans [3] os olhos são escuros com um risco branco perpendicular, têm pequenas pintas vermelhas dos lados da cabeça, pescoço, e corpo, parece-me que é o campanisona [4], o meu amigo pode ouvi-los cantar em Sintra depois de Trindades - tó-tó-toró -. Não conheço pelos nomes científicos as cobras - Periops hippocrepis [5] e Coelopeltis insignitus [6]. Tenho 4 em aguardente; infelizmente 3 são a mesma espécie, e esta ainda lha não mandei; é castanha mais clara do que a scalaris [7] e não tem as riscas sobre o dorso, tem pintas pretas, brancas no centro, talvez seja variedade da scalaris, a outra cobra tem o pescoço esverdeado e destas há muitas variedades com o ventre branco, com ele preto, pintado, e com as tintas diversamente distribuídas. Desta última já o meu amigo lá tem. Desejo mandar-lhe a cobra escura do mato com o ventre deformado. Pedi ao Dr. Pedro que mandasse apanhar víboras, porém o homem não é bicheiro, e por isso não me deu esperanças. Um homem muito sério diz-me que há cobras grandes venenosas nas proximidades do Porto e que também há lá víboras que são pequenas e raras.

Se o Garcenho da Geria não é o Botaurus ruffus Brisson, então é coisa nova, não tenho à mão o Brisson nem o Garcenho. Parece-me que o tempo mais próprio para ir ao Buçaco é o do mês de Setembro, agora está lá muito calor apesar de se dizer que o calor é ali agradável, há poucos dias foi lá o Manso e outros conhecidos, e não puderam parar nem na fonte fria!! Calor como tem estado por aqui, não há memória de o ter havido assim! Em breve não teremos água para beber! Pobres dos moluscos aquáticos que não respiram também por pulmões.

Esqueci-me de arranjar em Maio as lampreias novitas em que o meu amigo me falou quando aqui veio; declaro-lhe que sou pouco esquecido em objectos zoológicos, e por isso me tem custado o tal esquecimento. Mandei encomendar Anodontas das poças do Mondego e espero boa porção; desejo-as da Geria porém não tenho a quem as encomende. Quando lá fui a última vez apanhei uma numa pequena vala confluente da da Geria, e parece-me que tem uma pequenita diferença das do Mondego, talvez me engane; o meu amigo a verá em Setembro, e não perderá as passadas se aqui vier. A colecção zoológica é talvez a mais difícil de todas as colecções, quem faz colecção de plantas vai a onde as há e apanha-as porque logo as vê; mas quem procura animais que a maior parte são nocturnos, não os vê e fica não sabendo se existem naquela localidade. Demais no caso de saber que eles ali vivem resta apanhá-los, porém como? Não temos armadilhas próprias, temos portanto de as inventar, e ao menos de apropriar as já inventadas. Que de paciência é necessária para isto?! Que tempo se gasta inutilmente! Inventadas as armadilhas, temos de experimentar as iscas para chamar os animais, depois de tantos trabalhos ficamos satisfeitos quando aparece alguma espécie que ainda não temos, e sentimos uma satisfação imensa quando achamos uma espécie não descrita. Porém há homens que julgam que um Museu é um palheiro, que para se encher basta sair de casa, mandar apanhar a palha e deitá-la para dentro dele; não sabem conhecer o valor que tem um objecto novo, os trabalhos científicos duma bem feita classificação; materiais que são olham só para o material e não querem saber o quanto custa arranjar aquele material, perguntarão se no museu há muitos animais além dos que havia no ano passado, se poucos ainda, se poucos ainda que de grande valor, dizem que este ano nada se fez em aumento do Museu. Aposto que o meu amigo tem por lá desta gentinha? Donde se conclui que a colecção zoológica no nosso Portugal tem espinhos, por ser julgada por juízes os mais ignorantes.

Desculpe-os o meu amigo e desculpe-me a grande maçada que acabo de lhe dar.

Rosa

Quando aqui vier fará favor de me trazer 2 aves estrangeiras e lindas para eu dar a quem teve grande trabalho de me arranjar 3 ratoeiras... (Das sobresselentes) [8]

P.S. Dão-me a certeza de se arranjar um Garcenho, o que já está preparado, macho ou fêmea, novo ou velho.

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-14)

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[1] Discoglossidae. Bombinator igneus (Bombina bombina). Não se conhece ainda a sua existência em Portugal.

[2]  Bocage, Liste des mammifères et Reptiles observés en Portugal, 1863.

[3] Discoglossidae. Alytes obstetricans, o sapo parteiro.

[4] Rana campanisona=Alytes obstetricans.

[5] Coluber hippocrepis - cobra de ferradura.

[6] Malpolon monspessulanus monspessulanus  - cobra rateira.

[7] Elaphe scalaris - riscadinha.

[8] Escrito na margem superior da folha, voltada esta ao contrário.

CARTA 4

Quinta do Espinheiro, 1 de Novº 64.

Meu caro amigo

O autor da natureza sempre avaro em fazer nascer homens grandes, extraordinários, homens do século, foi pródigo nesta variedade em 1817, porque nasceu neste ano, e no dia de hoje, o grande José Maria Rosa de Carvalho, e no dia de amanhã o grande José Maria de Abreu [1]. O primeiro nasceu para extermínio de todo o bicho vivo, e o segundo para derramar até nos cantinhos de Portugal a muita instrução que talvez tenha. Faço hoje 47 anos de idade e não me troco por alguns que tendo apenas 41 são os pais e as mães das dores de cabeça, de costas, e das cólicas flatulentas, nervosas, de chumbo, de ferro, de cobre, de bronze, e talvez das de aço. Tenho saúde, e por isso os 47 não fazem em mim grande peso, e tanto isto é assim que bem vê a frescata com que o escrevo.

Recebi ontem as suas memórias; parece-me que o A. rozianus [2] está muito bem desenhado. Agradeço-lhes. O Manuel Paulino também as recebeu. Foi esquecimento o meu amigo não mandar a sua lista de mamíferos e répteis, ao Júlio Henriques; será bom que lhe mande estas. Ele está aqui, veio ao 6º ano. Estou duvidoso sobre se o meu amigo recebeu a minha última carta. Se a recebeu e não respondeu está desculpado pelos seus muitos afazeres. É sempre agradável a descoberta dum animal que ainda não há no museu. O sapo cultripes está em meu poder, como lhe disse, porém duvido que a chamada rã que ele tinha abraçada pela cintura seja a fêmea dele. Se eu descobrir mais na cópula, fico descansado. Tenho pedido a muita gente se mos descobre, porém a chuva é para isto um grande obstáculo. O Manuel dos ratos não tem ido a eles por causa do tempo, tem ido apenas 4 vezes, armar e levantar as ratoeiras, trouxe a última vez uns 8 da Quinta da Geria, que eu conservo, e parecem-me participam do campestris e do musculus, isto é, são parecidos com ambas estas espécies. Verá quando eles forem. O Manuel Paulino tenciona ir aí antes do Natal, já tinha ido se não fosse o mau tempo, ou antes o péssimo estado em que dizem estar o caminho de ferro do nosso Portugal. Os arvicolas têm os costumes das toupeiras giram quando está bom tempo e concentram-se quando está mau. Tenho feito esta observação aqui na Quinta. Sem o tempo melhorar, nada se pode fazer, o que bem me custa; porém se assim continuar, assim mesmo faremos por os caçar. No primeiro dia bom que vier vai o Manuel à serra de Ilhastro [3] procurar as Nitelas [4].

Observei este ano os Tritões na cópula. Vi os girinos deles, dois meses depois; e notei que estavam no mesmo desenvolvimento dos vindos do Buçaco, daquela espécie que queremos apanhar. Os do Buçaco vieram no fim de Janeiro, tinham portanto 2 meses de idade; logo nasceram em Dezembro. Será este o mês de encontrarem na água os mais deles. Se o Manuel quisesse ir agora ou proximamente ao Buçaco, seria talvez proveitoso, e fazer lá outra visita no mês de Dezembro. Veremos.

Relação das cobras do Manuel Paulino, Natrix viperina 3 muito pouco diferentes entre si.

Natrix torquata espécie, e uma linda variedade sem coleira, que lhe dei, julgando ser a coelopeltis insignitus = espécie [5].

Scalaris espécie, e duas variedades novas em idade, esbranquiçadas, e com riscas largas transversais, escuras.

Coelopeltis espécie, e uma variedade que lá tem das que levou para aí.

Nada mais tem o homem.

A vinda do meu amigo aqui fez com que eu possa dizer alguma coisa relativamente a cobras. Estou desejoso de conhecer a girondica [6], que não sei se aqui aparece. Apanhei outro sapito da espécie que levou que eu julgo ser nova. Também apanhei dos que julgo serem variedade do sapo ordinário, e eu lembro-me se será o mesmo sapo vulgar novo em idade.

O papel não dá para mais. Escreva a J.M.R. de Carvalho

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-18)

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[1] Catedrático da Universidade de Coimbra que era ministro da Instrução.

[2] Arvicola rozianus Bocage, 1864 (=Microtus agrestis). O desenhador é Felix de Brito Capello.

[3] Não conhecemos a serra de Ilhastro.

[4] As Nitela são insectos (Hymenoptera).

[5] Coelopeltis insignitus=Malpolon m. monspessulanus - cobra rateira.

[6]  Coronella girondica.

CARTA 5

Meu caro amigo

Também tenho estado constipado; e o nosso Manuel Paulino ainda muito mais do que eu. Ele não quer faltar à congregação, por isso não tem ido a Lisboa; está esperando por uns papéis que daí hão-de vir e depois há congregação, e depois partirá e levará os ratinhos campestris [1]  da Geria, os dois cultripes [2], macho e fêmea, uma rã D. pictus  [3], variedade, e talvez mais alguma coisa que apareça. Enquanto esteve sol, esteve muito ventoso e frio, por cujo motivo não pude ir à Geria, agora está chuvoso e os ratos concentram-se, por isso o Manuel dos Ratos nada tem feito.

O António das Salamandras está esperando por bom tempo para ir estar dois dias no Buçaco, para descobrir a salamandra que nos falta [4], e talvez mais alguma espécie. Veremos os resultados.

Uma manhã destas vinham pelo Mondego abaixo muitas aves quase mortas, apanharam uma que foi para o Museu, e o Manuel Paulino diz que é a Thalassidroma pelagica [5]. Disse ao Francisco que mandasse um homem procurar mais ao salgueiral, e não sabemos o resultado. Naquela noite tinha havido um vento extraordinário.

Já lhe pedi o nome científico dos peixes do Mondego, parece-me que é agora ocasião para estar tudo classificado pelo alemão. Farei a possível diligência para alcançar do Manuel Paulino o levar-lhe uns epynoches [6] que ele tem, e arranjar-lhe eu outros em troca. Os seus folhetos entreguei-os ao J. Henriques da sua parte; disse que lhe havia de escrever a agradecer. Ele já se ofereceu para continuar a preparar as aves. Das conchas terrestres em que me fala conheço apenas, das que deseja, as seguintes: B. obscurus e lubricus [7] , e já vi a Pupa muscorum. O Manuel Paulino trouxe de férias uma Amph. cinerea [8] julga que as há em Caselhas, na terra fresca. Um estudante matou um F. oesalon [9] fêmea, deu-o ao Manuel Paulino e foi para este museu, ainda lá não havia esta espécie.

Se se interessa pelo aumento do nosso Museu não me fale em ir a Lisboa em um mês próprio para as explorações zoológicas, estou disposto a aproveitar todos os dias de sol que vierem, e depois em algum mês dos que eu chamo mortos lá irei passar dois ou três dias. Primeiro bichos, depois museus; museu sem bichos não há. Deve estar próxima a colocação dos ninhos, avise-me quando os colocar, quero que deite fora um duvidoso para mim, e dê ao B. communis [10]  o ovo chamado do Milvus regalis [11].

O ninho duvidoso tem o nome de Cotovia grande.

De Caçarabos [12] ainda não tenho noticia, sei que estão encomendados a várias pessoas. Conheço um Sujeito que me escreveu no dia em que fazia 40 anos e disse que estava velho, este ano em que tem mais de 41 diz que os que têm esta idade podem comparar-se a jovens mancebos! Se ele for sempre por este andar, quando tiver 70 anos deve estar uma criancinha de mama.

O jantar está esperando por mim. Até outro dia.

Amigo sincero

J.M.R. de C.

P.S. ou P. prandium

Disse-me há tempos que lhe tinha vindo uma porção de animais de fora, e de dentro do país. Desejo que me diga se destes últimos lhe veio alguma coisa boa.

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-19)

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[1] Arvicola Rozianus Bocage, 1864 (=Microtus agrestis), espécie dedicada ao colector, Rosa de Carvalho.

[2] Pelobates cultripes - sapo de unha negra.

[3] Discoglossus pictus - sapo, rã.

[4] A salamandra que falta é Euproctus Rusconi (Pleurodeles poireti), mencionada por Bocage (1863) e que não existe, que se saiba, em Portugal. Existe, sim, Pleurodeles waltli, dada por Boscá e Bedriaga como introduzida, na Catalunha e em Heidelberg, respectivamente, o que aponta para introdução na Europa. Vide o meu artigo sobre o P. waltli, em “A cartta vendada” (“As gralhas”) – http://www.triplov.com.

[5] Hydrobates pelagicus. Painho-de-cauda-quadrada.

[6] Épinoches, em francês - carapaus.

[7] Buliminus.

[8] Sauria. Blanus cinereus Vandelli.

[9] Falco aesalon – Aves, esmerilhão comum.

[10] Talvez Buteo buteo, a águia de asa redonda.

[11] Provavelmente Milvus milvus, o milhafre real.

[12] Saca-rabo ou manguço.

CARTA 6

1 de Outubro 66

Meu caro amigo

Eu vou muito melhor na minha importantíssima saúde. Faltaria ao meu dever se lhe não desse parte da chegada e colecção do nosso amigo Paulino. Chegou ontem de tarde e apenas à noite tivemos uma hora para examinar as aves. Veja o meu amigo como são as coisas, ele anunciou de Trás-os-Montes alguma coisa nova na nossa fauna, e no Porto foi aonde ele foi mais feliz. Viu no Cabedelo um bando grande de pássaros; matou 2 macho e fêmea, cuja espécie é a Plectrophane de neige [1]. Chenu pág, 256 - Parte 5ª. Apenas os viu lá naquele dia. (Não digo a Emberiza nivalis) [2].

Também matou no Porto 3 espécies de andorinha-do-mar, das quais não vem uma delas nas suas instruções (segundo ele diz) [3].

Matou também um interessante palmípede do género Phalaropus Brissosa [4]. Isto é muito interessante. Da colecção de Trás-os-Montes vi lá apenas uma calamoherpe muito pequena que ainda não conhecia e ele supunha ser um Phragmyte. O Paulino foi hoje ao juramento, não sei se antes de ir achou mais alguma coisa interessante na colecção de Trás-os-Montes. Só à noite mando esta carta para o correio.

Também lá vêm alguns exemplares da Emberiza hortulana [5] frequente lá. Fui à tal quinta próxima a Celas em que lhe falei na minha última, achei lá um Planorbis que me parece espécie que ainda não temos ou não tenho.

Não achámos mais coisa alguma interessante na colecção do Paulino. Nada trouxe de répteis.

Aceite visitas do Paulino e amigo

Bicheiro-mor

N.B. É com efeito um Fragmyte [6] o que trouxe o Paulino.

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-32

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[1] Fam. Emberizidae. Plectrophenax nivalis - escrevedeira das neves, emberiza das neves.

[2] O mesmo que na nota anterior.

[3]"Instrucções Praticas..." de Bocage (1862), obra que inclui uma lista das aves de Portugal que temos estado a usar.

[4] Phalaropus hyperboreus in Oliveira (Manuel Paulino de Oliveira, Aves da Península Ibérica e especialmente de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 3ª edição, 1928), de que só se conheciam dois exemplares coligidos em Setembro. Falaropo-de-bico-fino.

[5] Sombria.

[6] Não está registado este nome nem Phragmitis como de género, sim como de espécie, em Acrocephalus phragmitis=A. schoenobaenus, a felosa dos juncos.

CARTA 7

Terça-feira, 6 de Novembr 66

Não sei por que não me escreve. A última sua que recebi foi escrita em Sintra a 4 do mês próximo pretérito!!! Será possível que se esqueça do seu veterano correspondente, o bicheiro-mor? Tenho padecido do estômago, peito, e não sei se muito do fígado: e o que é mais tenho andado muito melancólico. O Manso e Rufino convidaram-me para passeios de 3 horas, e concluí que me foram proveitosos, e estou hoje pronto. Donde posso concluir que devo hoje ser bicheiro não só por gosto, como até aqui, como também por necessidade. Tive hoje muitos desejos de ir ao campo aos ratos, mas os desejos de receber carta sua retiveram-me, esperando pelas 9 horas, mas nada de novo.

O Paulino foi de novo ao Paúl de S. Fagundo e não trouxe coisa interessante. Ele recebeu de Aveiro um Podyceps recurvi rostri [1] que vem na lista das aves da Europa de Bonaparte. Pode ser que o meu amigo não o tenha. Entre outras aves que trouxe de Aveiro vem a mais pequena ribeirinha que temos, Pelidna minuta ? [2]. Matou muitas Emberiza nivalis [3] no Porto que se estragaram, trouxe do Porto mais Gaivotas, etc.. e de Aveiro outras aves como Ch. hiaticula [4] que ainda não tinha e que confundíamos com o curameus [5]. Dizem-me que Sua Majestade se lembrara do meu amigo, mas não me dizem com quê. Se é assim, antes tarde do que nunca. Se não receber carta sua nestes 2 dias próximos, escreverei mais e enviar-lhe-ei esta. Apanhei esta noite 2 musaranhos e vou apanhar mais para ver se descobrimos as muitas espécies do Crespon [6].

O Manso foi passar 2 dias a Lisboa chega aqui agora e traz-me boas notícias do meu amigo, que lhas deu um sujeito Figueira.

Sei que o Carlos Machado lhe mandou uma cobra estrangeira que o meu amigo ainda não tinha. Ela vinha para o Paulino, e como este estava em férias ficou sem ela; gostei desta lembrança do Carlos porque o Paulino sendo em tudo o mais muito liberal é o maior sovina e miserável até, no que diz respeito à colecção destes bichos para ele. Tomara eu pilhar-lhe todas as que ele tem vindas da mesma terra donde veio essa. Uma linda cobra muito longa e muito delgada como uma lombriga e de cor clara. Outra cor de ganga amarela com riscos negros transversais. Uma Víbora, Camaleões, Osgas, uma espécie de Osga com a cauda curta e espinhosa de cor verde azulado com riscas transversais pretas etc..

Quando o meu amigo vier aqui há-de ver se obtém dele algumas destas espécies.

Quarta-feira

Acabam agora de repetir a frase diária "Não há carta" maldita frase. O tempo está ameaçando trovoada, se principia assim a lua nova, teremos chuva por todo este mês.

Quinta-feira

"Não há carta". É tal a impressão que isto me causa que até me faz lembrar se haverá alguma intriga entre mim e o meu amigo. Amanhã ou o outro dia vou ao campo com o nosso Paulino, e darei parte depois de receber carta sua.

Recebi agora a sua carta que o carteiro deixado em Celas noutra casa.

Não fui com o Manso a Lisboa porque não queria estar lá dois dias apenas e não ver o meu amigo e o Museu. Não passará o Inverno sem que eu vá aí. Seria bom dizer-me quais as aves que há aqui e lhes não sabe os hábitos. O nosso país está por explorar quanto a aves que podem talvez aparecer quase todas as do meio-dia de França.

Bicheiro-mor

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-33)

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[1]  Estão registadas para Portugal várias espécies de Podiceps, o mergulhão, mas não esta.

[2]  Calidris minuta - maçarico ou borrelho.

[3] Plectrophenax nivalis - escrevedeira-das-neves.

[4] Charadrius hiaticula - Borrelho-grande-de-coleira.

[5] Não descobrimos. A palavra mais parecida é curonicus, Charadrius – lavadeira. Com muitas dúvidas, aventemos porém que talvez seja Charadrius dubius.

[6] Crespon estudou a fauna mamalógica da região do Gard.

CARTA 8

Segunda-feira 11

Meu caro Amigo

Tinha perguntado pelo António de Carvalho; dizem-me que fora à terra dele; e depois que o viram na cidade. Não o tenho apanhado; por isso mando amanhã a remessa pela grande velocidade como me pede na sua carta. Na quinta-feira passada fui outra vez com um rapaz ao desencantado paúl de S. Fagundo. Tudo que apanhei foram coisas repetidas - Mais ninhos e ovos de Calamoherpe turdoides [1], mais de Galeirão e Rabiscoelha, outra Calamoherpe também macho, etc.. Volto lá no próximo domingo por causa de uns ninhos que lá vi em princípio e que ainda não temos.

Eu ainda não sei distinguir a A. arundinacea da S. luscinoides [2]. Achei lá ninhos principiados exactamente como os de turdoides porém muito pequenos; veremos como são os ovos. Estes ninhos são sem dúvida os da arundinacea. A Lymnea da Foja é com toda a certeza a palustris [3]. O Manuel Paulino já a tinha assim classificado. Tudo o que diz desta espécie quadra perfeitamente com a da Foja. Ela tem uma volta na esfera de mais [4]. O sapo B. igneus existe entre nós, e por isso há-de aparecer mais cedo ou mais tarde [5]. Mandei ontem o António às chyoglossas [6] para me trazer ou mandar girinos muito desenvolvidos; mandaram-me destes pouco maiores, e grande porção de pequenos. É [...] Foram todos achados numa jeira de água, que vem a ser um bordo de terra amassada para suster a água que nasce numa pedra, e depois de junta a água regar com ela. As chyoglossas põem os ovos na água nos bordos das jeiras. Não sei se as mães entram na água para pôr os ovos, pois é possível não entrarem nela depositando-os à superfície da água.

Ainda não se achou nenhuma adulta dentro de água. Não tem vindo objecto algum da Foja; talvez por o Manuel Paulino não ter escrito a pedir licença aos Ferreiras Pintos para deixarem lá caçar os criados da tal quinta. Eu estou muito bem informado de quanto é insalubre aquele sítio; só no Inverno se pode lá ir. Também o paúl de S. Fagundo é assim logo que as águas sequem. Os muitos peixes vermelhos que há lá morrem, e as ervas podres exalam miasmas pútridos muito prejudiciais à saúde. Se não fosse a grande abundância de água que ainda lá há, eu não podia continuar ali as minhas explorações. Pode ser que a minha ida no domingo não seja ainda a última nesta e na próxima estação, por causa dos ninhos, que continuam, porque a água inutilizou a maior parte deles. Os ninhos da S. turdoides [7] estão 8 palmos, pouco mais ou menos, acima da água. A postura é ordinariamente de 4 ovos e algumas vezes de 5.

Os ninhos de Galeirão são disformes. Um feixe de bunho entrelaçado, mais alto de um lado, com uma pequena cova aonde estão os ovos. Acham-se alguns ninhos que têm de comprimento 5 palmos. A fêmea sobe para o ninho pela parte mais baixa dele, que é uma rampa. Diz-me o barqueiro que os ninhos sobem e descem quando a água levanta ou abaixa. Os ninhos da Rabiscoelha são redondos feitos de pontas delgadas de bunho, ou de ervas secas. Cria algumas vezes nas ervas, porém ordinariamente sobre os troncos baixos dos salgueiros quando eles, em consequência de ser muito podados, formam uma espécie de cabeça na parte mais elevada. Achei um ninho num salgueiro que teria de altura 5 palmos, e a esta distância da água estava o ninho.

Os Galeirões criam no meio dos lagos, e as Rabiscoelhas sempre nas bordas destes. Desta última vez vi lá apenas um milhafre que conheci ser o circus cinerens ou cineraceus [8]. O Manuel Paulino a última vez que lá foi achou um ninho dele já feito mas ainda sem ovos. Não sei se enjeitou o ninho. A postura ordinária da Rabiscoelha é de 8 ovos e a do Galeirão é de poucos mais. No paúl achei apenas Lymnêas da espécie ovata [9]. Há lá boas succinias [10] no bunho; o que falta é tempo para com vagar e cautela as apanhar. nesta semana vai o Manuel dos ratos à pedreira de Ilhatro [11] ver se mata algum Myoxus glis [12] que lá possa descobrir. Não sei se haverá lá esta espécie. Sem estas tentativas nada se faz. Ainda cá tenho muitos fundos.

12 de Junho

Lá vai a remessa para Coimbra. Estou esperando pelo recibo. Ah! minha querida mala-posta! Sempre será por mim chorada! A remessa está já em maior preço, mais 240 de girinos e 300 no barqueiro. Mandei dizer ao António que visse se descobria girinos mais crescidos. O António de Carvalho disse ontem em Coimbra que lhe mandasse a remessa, mas que não ia agora a Lisboa. Foi para a terra até segunda-feira. Se lhe mando a remessa ela estraga-se por força. Faça favor de me escrever no mesmo dia em que receber esta remessa.

Aqui tem o recibo. Diz o homem que hoje a tarifa é mais barata e por isso mandei eu lá outro dia para ver quanto é menos do que os 900 réis.

Sempre Amigo

[cortada a assinatura na fotocópia]

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-37)

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[1] Calamoherpe turdoides - Acrocephalus arundinaceus - rouxinol-grande-dos caniços.

[2] A respeito de Locustella luscinioides luscinioides, diz Themido (António Armando Themido,  Aves de Portugal. Chaves para a sua determinação. Memórias e Estudos do Museu Zoológico da Universidade de Coimbra, 1952, 213: 1-241, pag. 160) que apenas um exemplar desta espécie fora observado em Portugal, no Paúl de S. Fagundo, perto de Coimbra.

[3] Limnaea palustris - Nobre (Augusto Nobre, Fauna malacológica de Portugal. II. Moluscos terrestres e fluviais. Memórias e Estudos do Museu Zoológico da Universidade de Coimbra, 124, 1941) diz que não tinha dados pessoais sobre a distribuição em Portugal destes moluscos. Na colecção de Portugal do Museu Bocage, por ele estudada, os exemplares não tinham indicação de localidade.

[4] A frase está emendada, tem sinais de "+" e a expressão "de mais" sobreposta no fim da frase, donde se entende que a concha tinha uma espira a mais.

[5] Nova referência ao sapo de ventre cor de fogo, Bombinator igneus, espécie ainda não redescoberta. Porém uma outra espécie de sapo da família Discoglossidae foi há poucos anos descoberta no Paúl de Arzila (região de Coimbra). Outras espécies, mencionadas nos catálogos mais antigos, ficaram ocultas durante décadas, e só agora os caracteres se têm tornado conspícuos de modo a poderem os animais ser classificados. Porém, Bombinator igneus nunca foi catalogada para a fauna portuguesa.

[6] Chioglossa lusitanica.

[7] Não é "S", sim "C", de Calamoherpe turdoides=Acrocephalus arundinaceus - rouxinol grande dos caniços.

[8] Circus pygargus – milhafre.

[9]  Limnaea peregra. Nobre (opus cit.) refere Rosa para as colheitas em Coimbra destes caracóis.

[10] Outros caracóis, do género Succinea. Nobre (op. cit.) menciona Coimbra na área de distribuição em Portugal de Succinea elegans.

[11] Ilhatro ou Ilhastro. Não descobrimos a que lugar se refere este topónimo.

[12] Rato dos pomares, rato das serra : Elyomis quercinus.


CARTA 9

Meu Caro Amigo [1]

Lá vai para o Porto o nosso Paulino e na volta demora-se alguns dias em Aveiro por causa das aves.

Por várias vezes lhe tenho falado nas que ele trouxe de Trás-os-Montes; ainda me esqueceu mencionar as seguintes Lanius excubitor [2] 1 exemplar, Cinclus aquaticus [3] 2. Dei já um passeio nocturno para apanhar Sapos, e apanhei apenas outro exemplar do cultripes [4]. Não vi nenhum mais, nem tão-pouco dos ordinários: a noite não estava sapeira. Continuarei nestas pesquisas. Há poucos dias em S. Paulo foi estragado por um arado um exemplar do B. igneus [5]. Cada vez me dão maiores esperanças de os obter. Está aqui o Dr. Cortez - entreguei-lhe a caixita com 6 exemplares do Planorbis [6] para o meu amigo ver a espécie : se for boa mandar-lhe-ei mais exemplares em melhor estado, porque as conchas que lhe mando são velhas - únicas que pude apanhar no tanque, porque, como lhe disse, o depósito deles é na nora. Mando-lhe duas Lymnêas [7] do tal tanque. O Cortez volta para aí por estes 2 ou 3 dias. Quando lhe escrevi a minha última carta esqueceu-me dizer-lhe que o Paulino e meu mano foram ao campo ao paúl de S. Fagundo e não acharam ave alguma interessante. Não há que fiar no tempo, que tem estado cada dia com intermitentes, ora de chuva, ora de sol, ora de ventania; logo que esteja bom vou à Geria mesmo por causa dos arviculas tanto o [X]osianus [8] como os de que sempre me lembro = Pretos ferruginosos, de olhos grandes e cauda curta = Não tenho tido por ora muitas borbulhas; porém este estômago não está muito bom apesar de digerir bem a comida. Mandaram de Chaves ao Paulino uma Víbora amodytis [9] que é grande e tinha dentro dela 13 filhos próximos a nascer [10]. Tanto a mãe como os filhos estão em aguardente. Ainda não veio de Vizeu ao Manso o Corvo de penas vermelhas P. alpinus [11], e o tio do Manso não tem escrito, por isso não sei se mataram a Pantera e se ele lá terá alguma das cobras grandes que o sobrinho lhe pediu para mim.

Diga-me se também este ano está livre das aulas, e quando se publica o jornal científico. Para o fim deste mês vai o Paulino à Foja, veremos se traz de lá mais exemplares da Lymnêa palustris [12]. Não tenho este ano procurado morcegos; eles não me dão esperança de obter mais espécies do que a murinus auritus [13], pepistrelus [14], kulii [15], hastatus, e bihastatus [16]. O kulii é para mim duvidoso se existe ou não aqui. Tirei licença para uso e porte de arma caçadeira, por espaço de 6 meses. O Paulino também a tirou. Como temos de sair para sítios aonde nos não conhecem, por isso a tirámos 1:205 réis não é caro. Quando puder dê notícias suas ao seu

Amigo do Coração

Bicheiro-mor

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-38)

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[1] Respondido a 6 de Novembro, manuscrito por Bocage.

[2] Picanço-real.

[3] Cinclus cinclus - melro-d'água.

[4] Pelobates cultripes.

[5] Bombinator igneus, o sapo de ventre cor de fogo, que não está catalogado para a fauna de Portugal.

[6] Mollusca.

[7] Limnaea. Mollusca.

[8] Arvicola rozianus. As duas palavras estão gralhadas e não é inteligível a primeira letra de "rozianus". Realmente parece um X em posição oblíqua.

[9] Vipera ammodytes - Vipera latasti latasti - víbora cornuda.

[10] As víboras são ovovivíparas, os filhos nascem dos ovos mas dentro do corpo da mãe.

[11] Não descobrimos corvos (Corvus), pegas (Pica) nem gralhas (Pyrrhocorax) cujo nome específico fosse alpinus/alpina.

[12] Limnaea. Rosa acentua invariavelmente o nome do género, que assim fica triplamente gralhado.

[13] Plecotus auritus. Morcego orelhudo. Myotis myotis (=Vespertilio murinus e = Myotys myosotis Miller 1909). Não conseguimos saber de que espécie fala Rosa, de resto a sinonímia inclui nomes de plantas - miosótis.

[14] Pipistrellus.

[15] Pipistrellus Khulii.

[16] Na sinonímia de Rhinolophus ferrum-equinum há um Rhinolophus unihastatus.


CARTA 10

Meu caro Amigo

Que passe a semana santa em Coimbra, e depois vá a Aveiro, a Arouca e a Telhadela, nisso convenho; mas que guarde o ver-me para o seu regresso a Lisboa, é o mesmo que dizer-me desta vez não nos vemos. O Rufino podemos dizer felizmente que está bom! O nosso Paulino, já se sabe, foi para o Porto; ele continua com os insectos, e deixou encomendados mais 2 sacos de látex. Recebeu outra carta do espanhol lente em Madrid que lhe agradece alguns Coleópteros, lamentando o terem chegado alguns estragados, por irem mal pregados com alfinetes pouco largos que significa em português pequenos, segundo me dizem. Pede-lhe, entre outros, mais exemplares duma espécie nova do género Ásida [1] que não é novo, e também o permitir-lhe que seja chamada Asida Oliveira. O Paulino tem apenas 2 exemplares, e não encontra mais debaixo das pedras em que achou os outros no Inverno; talvez por andarem sofrendo agora com o calor. O meu amigo deve ter esta espécie dada pelo Alves de Sá. Pouco faltará para ter 2 centímetros de comprimento e a cor dos élitros é cor de terra.

O Paulino procurando esta achou outras que ainda não tinha. O espanhol admira-se de se conservarem os insectos do Paulino espetados com os alfinetes curtos, chegados ao papel, parece que os quadros devem ser altos e os insectos devem ficar no ar, e assim parece ser conveniente.

Tenho uns ninhos e ovos do Parus cristatus [2], e dão-me esperanças de obter os outros peixes que não temos. Passou o meu defluxo, porém o que me tem apoquentado desde o dia 3 é uma borbulha em um dedo da mão esquerda da qual ainda hoje sofro bastante apesar de ter deitado esta noite grande porção de matéria. Tem sido preciso renovar-lhe as papas a todos os instantes e por isso não tenho saído de casa.

É pena que a 3ª sala do Museu não se possa já acabar, no entanto bom foi chegar a esse ponto. Vejo que o nosso Museu progride apesar dos invejosos e do indiferentismo quase geral, e há-de progredir por alguns anos, mas a queda é certa, o indiferentismo há-de matá-lo; quantos anos terá de vida? Gostava de ir a Lisboa daqui a cem anos tornar a ver o nosso Museu. Quem sabe? Talvez que as salas para esse tempo tenham outro mister. Museu temos nós para a nossa vida, meu amigo; e se os portugueses são indiferentes aos seus trabalhos, há estrangeiros mais civilizados que os sabem avaliar. É a consolação que lhe resta. Não sei por que os mamíferos da África ocidental sejam tão difíceis de classificar se mais até neles há espécies novas? parece por isto que a África é um país ainda agora descoberto. Haverá lá o Arv. Rosianus [3]? Não tenho por ora exemplar algum do B. igneus [4] nem do Buffo viridis [5]. Esta espécie (viridis) não a há aqui, porque mesmo nos paúis do campo, Geria, etc., não me dão dela notícia. Uns vizinhos e conhecidos meus quiseram mandar-me um sapo pintando-lhe o ventre de tinta vermelha. Estavam servidos; bastava ver-lhe as inchações dos lados [6] do pescoço para nele conhecer o B. vulgaris, ou as esporas pretas e olhos verdes para o reconhecer como Pelobatus [7]. Venha ver-me. Dou-lhe 4 ratos de água; 2 cultrypes [8] novitos, uma Rinequis scalaris [9], um ninho do P. cristatus [10], 2 sem ovos porque lá os tem sem os ninhos, um rato adulto Mus rattus, alguns musaranhos, e dou-lhe também um abraço. Cá agora o espero...

Bicheiro

(Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-39)

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[1] Asida.

[2] Aves. Chapim-de-poupa.

[3] Arvicola Rozianus - rato de Rosa.

[4] Referência permanente a estes sapos que ainda ninguém viu, mas hão-de aparecer, mais tarde ou mais cedo, se não forem os do Paúl de Arzila.

[5] Para a Península Ibérica, Bufo viridis só está registado nas Baleares - Maiorca, Menorca e Ibiza.

[6] A expressão "dos lados" está cortada e em vez dela escreve-se algo ilegível que também parece "dos lados".

[7] Rosa escreve sempre "Pelobatus" em vez de Pelobates.

[8] Pelobates cultripes - sapo de unha negra.

[9]  Rinechis scalaris, a cobra chamada "Riscadinha".

[10] Parus cristatus - chapim de poupa, também chamado Cedo vem

BIBLIOGRAFIA

(1) BACON, Francis (1995) – «Magnalia naturae, praecipue quoad usus humanos». In : La Nouvelle Atlantide. GF-Flammarion, Paris. 180 pp.

(2) SAMPAIO, Gonçalo (1988) - Flora portuguesa. 4ª ed., Lisboa, Intituto Nacional de Investigação Científica (INIC), 792 pp..

(3) Isso acontece em várias cartas. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/C-19 e CN/C-22, por exemplo.

(4) NOBRE, Augusto (1908) - "Mollusques terrestres du Portugal. Monographie des familles Pupidae et Stenogyridae." Annaes Scientificos da Academia Polytechnica do Porto, III : 48-68. Ver o meu artigo sobre este texto de Augusto Nobre em “As gralhas”, triplov.com.

(5) GUEDES, Maria Estela & Nuno Marques Peiriço (1998) - Carbonários : operação salamandra, Chioglossa lusitanica Bocage, 1864. Contraponto, Palmela, 129 pp.. Segunda edição, online no TriploV.

(6) BEDRIAGA, J. de (1892) - "Letre a M. le professeur Anatole Bogdanow (De l’importation et du croisement des reptiles et des amphibiens)". In: Congrès International de Zoologie. Deuxième session, à Moscou. Première Partie : 244-245. Moscovo. Ver o meu artigo, “A cartta vendada”, a propósito de “Paleo-herpetofauna de Portugal”, de E.G. Crespo, em “As gralhas”, em linha no TriploV.

(7) LEGUAT, François, Nuno Marques Peiriço & Maria Estela Guedes – “Do Dodó à Fénix”. In: Discusos e Práticas Alquímicas I. Hugin Editores, Lisboa, 2001, pp. 29-60. Em linha no TriploV.