MESSIANISMO GNÓSTICO:
ENTRE O REINO E A REDENÇÃO
(1)

José Manuel Fernandes*


O nosso artigo tem como objectivo apresentar sucintamente a soteriologia e a escatologia dos sistemas gnósticos. Damos por conhecidas as dificuldades e divergências existentes, entre os estudiosos deste fenómeno, quanto à determinação das origens do gnosticismo. Por impossibilidade de espaço não nos é permitido abordar aqui os aspectos cosmológicos e antropológicos referentes aos sistemas gnósticos que muito contribuiriam para uma melhor compreensão da questão soteriológica e escatológica.

 
SOTERIOLOGIA
 

Todo o sistema gnóstico está orientado, em última análise, para a soteriologia, isto é, tem como meta a salvação, o resgate da partícula divina que desgraçadamente se encontra imersa na matéria. É a própria divindade que se manifesta interessada na recuperação do espírito, ou seja, do seu retorno ao Pleroma. Para que este objectivo se concretize, o Transcendente envia ao mundo o Salvador (1). A acção do Salvador no mundo possui já um arquétipo no Pleroma: a salvação do éon (aiõn) Sabedoria (noutros sistemas gnósticos aparece com a denominação de Sofia, Barbelo, Acamot, etc.) pelo éon Salvador. O processo de salvação acontecido no Pleroma (a reintegração de Sofia no seio da divindade) repete-se na terra. Embora o ser humano espiritual, o homem pneumático, está predisposto por natureza à salvação, é dogma da gnose afirmar que nem sequer os pneumáticos podem procurar por si mesmo a salvação. A salvação é fundamentalmente um dom, ou seja, uma graça oferecida pela Divindade. Normalmente apresenta-se na forma de um chamamento (revelação) que suscita no ser humano espiritual a lembrança de que a pátria do seu verdadeiro eu não está na terra. A chamada externa (divina) desperta, excita o núcleo interno e superior do homem adormecido pelos aparentes encantos da matéria e dispõem-no para a salvação (2).

O mito gnóstico em torno da figura e acção do Salvador apresenta os seguintes momentos gerais: ainda que a gnose tivesse sido revelada ao primeiro pai, Adão, no começo da criação, e embora a maioria dos sistemas gnósticos defendam que ao longo da história humana essa revelação se repete em diversas figuras salvadoras, quando chegar o cume da história mundana o Salvador por antonomásia descerá do Pleroma, trespassará as distintas esferas dos céus que circundam a terra – sem que os arcontes do Demiurgo (os seus anjos) que as governam o saibam e o possam impedir na sua descida – e chegará à terra com a missão primordial de recordar aos homens espirituais que têm dentro de si um elemento divino, consubstancial com a divindade. Os exortará a sair da letargia em que se encontram, a eliminar a amnésia da sua origem e a fazer tudo o possível para retornar ao lugar donde esse elemento divino, essa centelha, procede. A salvação é uma restauração do estado primitivo, um regresso do espiritual ao reino do espiritual. A forma encontrada para despertar o homem espiritual é a revelação da gnose, ou seja, do conhecimento verdadeiro da essência, origem e destino do ser humano.

Nos textos de Nag Hammadi a gnose é definida como liberdade e salvação. Assim o afirma o Evangelho de Filipe , porque a gnose arranca a alma das raízes perversas da ignorância que conduzem à perdição definitiva (3). Aquele que alcança a sabedoria sabe de onde vem e para onde vai. No Livro de Tomé o Atleta diz Cristo a Tomé: «Investiga para que saibas quem és, e de que modo existes e o que chegarás a ser. [...] Pois o que não se conheceu a si mesmo não conheceu nada, mas o que se conheceu a si mesmo começou já a ter conhecimento sobre a profundidade ( báthos ) do Todo» (4). O erro, a maldade, a deficiência ficam eliminados pelo conhecimento. Por meio da gnose o homem alcançará a unidade. «A deficiência produziu-se porque se ignorou o Pai, então quando se conhece o Pai a deficiência deixará de existir. Como sucede com a ignorância de uma pessoa, que uma vez que conhece desvanece-se a sua ignorância, como se desvanece a escuridão quando aparece a luz, do mesmo modo também se desvanece a deficiência perante a perfeição. [...] Na Unidade cada um se realizará; no conhecimento se purificará da multiplicidade na Unidade, aniquilando a matéria em si mesmo como o faz o fogo, como a escuridão é eliminada pela luz e a morte pela vida» (5). A revelação é redenção (6). O conflito entre a gnose e a ignorância é universal, e é desejado pelo Pai para revelar as suas riquezas e a sua glória. Graças ao conhecimento, o pneumático desprezará o que existe aqui em baixo e se afanará por unir-se ao que realmente existe (7).

 
*José Manuel Fernandes, OP, é Mestre em Teologia Sistemática. Docente no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro (ISCRA).
 
Notas
 

(1) O conceito de Salvador no gnosticismo não é mais do que o desenvolvimento da ideia germinal de um Messias que aparece tanto no judaísmo, como no cristianismo, transformado em Revelador gnóstico. No fundo é a simplificação de uma ideia mais complexa como é a do messianismo judeu.

(2) «Mas vós estais dormindo e sonhando. Despertai e convertei-vos, provai e comei o verdadeiro alimento. Entregai a palavra e a água de vida. Superai as perversas concupiscências, as veleidades e as dissemelhanças, inclinações deletérias sem fundamento», O Pensamento do nosso Grande Poder, 39,33-40,7. «Desta forma o que possui o conhecimento é do alto. Se é chamado, escuta, responde e volta-se para quem o chama para elevar-se até Ele. E sabe como se chama. Possuindo o conhecimento faz a vontade de quem o chamou, quer comprazê-lo e recebe o repouso. O seu nome próprio aparece. Quem chegar a possuir o conhecimento desta forma sabe de onde vem e para onde vai», Evangelho da Verdade , 22,3-15.

(3) «Se as suas entranhas ficam expostas [...], o homem morrerá. Do mesmo modo que a árvore: enquanto a sua raiz permanece oculta, floresce e cresce; se a sua raiz fica exposta, a árvore seca. E assim com toda a criatura mundana: não só com as que se revelam, mas também com as ocultas. Na medida em que a raiz do mal permanece oculta, é forte; mas quando é conhecida, desvanece-se; quando é desvelada, destrói-se», Evangelho de Filipe , 83,1-11.

(4) Livro de Tomé o Atleta, 138, 8-18.

(5) Evangelho da Verdade, 24, 29-25,18.

(6) «Nós, pela nossa parte, caminhamos famintos e sedentos, com o olhar posto na nossa morada, o lugar para onde olham o nosso proceder e a nossa consciência, sem ligar-nos às coisas do devir, pelo contrário, delas nos afastamos. [...] Há em nós um grande vigor oculto. A nossa alma encontra-se doente porque habita uma casa miserável na qual a matéria ofende a sua vista com a intenção de cegá-la», Ensinamento autorizado ou o Discurso soberano, 27,13-29.

(7) «Relativamente aos que nos combatem, que são os adversários que lutam contra nós, vençamos a sua ignorância pelo nosso conhecimento, pois nos antecipamos no conhecimento do Imperscrutável do qual procedemos. Não possuímos nada neste mundo, a fim de que a potestade cósmica que veio a existir não nos retenha nos mundos celestes, nos quais habita a morte universal», Ensinamento autorizado ou o Discurso soberano , 26,20-32.