DA POESIA COMO O SAL
E A SALVAÇÃO DA HUMANIDADE
PAULO BRITO E ABREU


«O homem é um actor de Deus no palco do Universo.»
Jacob Levy Moreno



I

Ao ser-me proposto o apologismo e apoio da causa poética, gostaria de tomar, como ícone ou fantasma, a figura ou filadélfia, não da «polis» ou política, mas da péla ou pelotica. (1) Ameaçada, não raro, pela polícia, e fora dos rumos ou muros da cidade, se tem mantido a escola e o escol do poético pensamento: e aqui dilucidemos, bem lúcidos, que à guisa do profeta hebraico, deverá o Poeta ser um incendiário, deve o mesmo inflamar e palavrar nos corações.

Longe do Poeta, ou do «Nabî», (2) ser um revel ou rebelde sem causa: como é facto e como é feito, engravidado e penetrado pelo Sopro do Altíssimo, ele é um médium, medianeiro ou instrumento nas mãos de poderes ou potências maiores. Que as minhas orações, aqui, só sirvam para alçar, ou realçar, a realidade teofânica: eu compulso, destarte, a mensagem poética como os Gregos avitos consultavam, compulsavam, o liminar e a menção do oráculo de Delfos. Nem outra coisa proclama a Poesia, nem cousa outra se chama inconsciente. O que aventámos, agora, que valha para a hermética, hermenêutica aventura: iniciamos, aqui, uma viagem dialogada ao redor do nosso Logos.

O caso e a causa é como segue: atento aos valores pneumáticos, ou noéticos, da humana condição, Platão descortinava, fora da loucura ou mania no sentido psiquiátrico, quatro formas ou fôrmas de delírio divino: o de Apolo ou adivinhatório, a que fizemos, já, referência, o das orgias ou mistérico, a que preside o deus Diónisos, o delírio amoroso, sob o signo de Afrodite e, finalmente, o poético ou das Musas, de que aqui nos ocupamos. Mas ora sus na monda ou na mania. As parábolas, ou palavras, do mesmo Platão, cortesmente, nos doutrinam e ensinam: «Na verdade, existem duas espécies de delírio, um que é o resultado de doenças humanas, e o outro que é o resultado de uma ruptura – de essência divina – com os hábitos e as suas regras.» (3) E nós diremos, alfim: o lance, na verdade, é de monta. Tudo o que de melhor e mais sólido obteve a humanidade, para o discípulo de Sócrates, foi graças ao delírio divino ou hieromania. Essa mania, nos diz o heleno, é forma segura e certa de mancia: é que o homem entusiasmado, ou seja, aquele em quem entrou o espírito do deus, por ser simbólico ou divino tem o poder de adivinhar. E aqui mesmo, Platão, que tinha, em nome da justiça, expulso os Poetas da sua República, nos dá uma imagem mais consentânea, ou conseguida, da poética logia: efectivamente, no «Fedro», enquanto inquirição e benquerença do mundo inconsciente, é a Poesia colocada a par da profecia.

Ora é aqui mesmo, amável ouvinte, que o Autor destas linhas se admira ou se inspira: urge tomar o comento e pensamento poéticos como o «topos» ex-cêntrico do ek-stático ex-sistere. Por vocábulos outros, e directos, urge aceitar a raiz e o repto de António Maria Lisboa: a Poesia está francamente, ou latamente, ligada à Magia, às ciências ocultas, e, como vimos atrás, às artes divinatórias. À fenomenologia baseada na fusão destas correntes cognominou o surrealista de Metaciência. O leitor informado, ou já formado, na Cabala fonética, pesará, portanto, os termos, e pensará de imediato: enquanto imaginação, Magia, ou manancial duma matriz, ocupa a Metaciência o contributo e o tributo da Mater-ciência. Mas ora porquê?, questiona o ledor. Em curso, discurso e conferência, ó recipiendário, explanaremos o nosso plano, redarguiremos ao quesito.

II

O pensamento poético, na história de todos os povos, começa por ser Religião-Sabedoria. Aristóteles confirma: os mais antigos teólogos de que temos nota ou notícia, foram todos, à evidência, rapsodos ou Poetas. Inicialmente, dessarte, o Poeta é aquele inflamado, ou entusiasmado, que defende os heróis, o panteão do seu povo; disso nos informa, nas suas «Etimologias», o professo e o Santo Isidoro de Sevilha. A mitologia, portanto, enforma e dá forma à essencialidade de um povo; servindo-se dos deuses o Poeta estrutura, inaugura, uma entidade nacional.

Este estado nubente ou nascente vai-se comportar, para a nação, como o natal e a nutrice: se a língua liga, ou coliga, o colectivo e a ligação se alimentam das imagens da mesma forma que o nativo se alimenta da Natura. A talho de foice, no terceiro livro de «Psicologia», o almo Estagirita nos doutrina e ensina: o homem não pode pensar, adequadamente, sem fantasmas ou imagens. Fantasma é fantasia, fantasia é infância e a infância é fantoche: não andamos, aqui, muito longe do feitiço. É que a imaginação, que para Paracelso é uma força do corpo astral, para um romântico como Eliphas Levi é nada menos que o diáfano, o translúcido ou olho da Alma. Se a palavra ou a língua nos distingue da mera animalidade, para um filósofo aristotélico como Álvaro Ribeiro a imaginação, que manda e comanda no sonho, é uma escala ou escada vertical que liga, segundo a Bíblia, a terra aos Céus e os homens ao divino. Daí que, em denso prefácio, tenhamos assegurado: quando um Poeta dorme, ou quando um Poeta sonha, os anjos sobem e descem pela escada de Jacob. Para os povos primitivos, ou primos, ou primordiais, o sonho era, com efeito, uma forma dilecta de comunicação com a divindade...

Ora, a partir de Freud, mas principalmente de Jung, nós sabemos que o sonho é pórtico e portal para a exploração do inconsciente. Para um pioneiro da Psicologia como Gustav Theodor Fechner, a psique hominal é comparável a um icebergue do qual 1/8 está visível, sendo, os restantes 7/8, escondidos e ocultos: se a parte visível é o estrito consciente, a parte absconsa e abscôndita é o vasto inconsciente. E, como tudo está em tudo, concluiremos que, antes de Freud, essa «África profunda» foi dominada e manipulada, em todo o mundo, sob o signo das imagens, da «imago» ou da Magia.

E, estribados na Metaciência, iremos mesmo, na escrita, mais longe: se a Psicanálise é uma «talking cure» ou cura através da palavra, o crítico literário é um pouco como o falado e decantado psicoterapeuta: ele encontra-se, perante os sonhos, como o grado Champollion, perante os hieróglifos. E seguindo, fortemente, a fieira do simbólico, a revolução surrealista só foi possível e presente, de certo modo, porque André Breton, o grande mago, era «psiquiatra de formação e médico interno de Joseph Babinski» (4): ao privilegiar, portanto, os arquétipos, arcanos, ou resíduos arcaicos, a moderna Psicologia vai retomar, transformando-os, os ensinamentos e pensamentos da Poética antiga. Trata-se, na Psicanálise, de pensar ou pôr um penso na nossa estrutura, de devolver, destarte, o homem às obscuras, clandestinas e rácicas raízes; pois, libertários e lectivos, os símbolos nos ligam, no «liber», ao colectivo inconsciente. Por isso William Blake, o visionário, falava a verdade: «as religiões são todas uma» e «os homens são todos semelhantes pelo génio poético» (5), pois, graças aos arquétipos, a comunicação se volve em activa, e votiva comunhão; é então que a Poesia, como vaticinava Lautréamont, é realmente e na radícula feita por todos: sendo a música, portanto, a concórdia do discorde, tocamos todos os acordes na concórdia universal (6).

O nosso elóquio, e discurso, já vai longo, findaremos dentro em pouco. Para Aristóteles, a catarse ou purgação era uma forma de nos libertarmos das paixões, vivendo-as, na tragédia, de forma imaginária. Ora a palavra «catharsis», originalmente, advém ou provém dos antigos Mistérios. Eudoro de Sousa nos dilucida, melhor do que ninguém: o mistério da catarse nos insiste, ou subsiste, na catarse dos Mistérios. Ora bonda e basta, amigo ledor. E sabe, o praticante da escrita automática, que eu sou, primacialmente, sincero e cordial. É que, para a Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro, que lemos e louvamos, com valor e vigor, deve a catarse aristotélica ser ligada, harmonizada, com a catarse freudiana. O carácter terapêutico da palavra declamada surge aqui, novamente, com todo o seu fulgor. O psicodrama, desse modo, de Jacob Levy Moreno tem aqui, se não erramos, a raiz e radícula sua; da Magia, dessarte, até ao rito, e do arauto, ou «go-between», até ao Povo da Aliança, é de Hermes ou Mercúrio que virá a salvação. É que, unindo simbolicamente o masculino e o feminino, ou seja, o alto e o baixo e o volátil ao fixo, nos alumbra e assoma Mercúrio como o Filho cósmico ou Mediador entre o Pai Celeste e a Mãe primordial: ora o que nós fizemos, com esta aula, foi carrear meditação para o deus medianeiro. Se prestarmos atenção à serpe e caduceu, preste assertaremos que o divo da mediação se apronta, certamente, como o deus medicatriz. Ele é divino para os médicos e também, como vimos, para o arauto e para as actrizes...

Eis aqui, doravante, o projecto e prospecto da Metaciência, delineado em didascália. Obra de fingidor? Decerto e mais que certa, qual didáctica ou «didakhé». Obra, dirás tu, de sincretista ou mistificador? Um Poeta, que prezamos, nos dá a resposta. E ela, neste mundo, é como segue: «Raramente», aqui, «se escrevem coisas boas. Mas ainda mais raramente», diria João Belo, «se escrevem coisas novas.»

NOTAS

(1) O nosso primo período merece, com certeza, um escólio, explicação ou hermenêutica. Em primeiro lugar, utilizamos «filadélfia» no sentido etimológico do Grego «philadelphos», que significa o professo ou a pessoa que ama os seus irmãos. Filadélfia seria, pois, a perspectiva e prospectiva duma cidade ideal ou sociedade dos Amigos, de que George Fox, no século XVII, nos apresentou o prospecto e o projecto. O apologismo desta cidade, que será, como dissemos, o apoio da casa ou da causa poética, é acima do «topos» e acima de tudo, uma logia ou linguística de Apolo.

Fora do «mundo» e fora da «polis», portanto, o Poeta se entrega às palavras como a criança, jogando, se entrega às pélas, peloticas e brinquedos; a Poesia é dessarte uma instância de «homo ludens», quer dizer, a criacionista ou criativa estação do recreio: dizer isto é rectificar ou tornar recta a doutrina do ensino, ou melhor, a lenda e a legenda da língua materna. A estese e a Estética deve sempre ter em conta a complacência e o prazer, porque o «belo», segundo S. Tomás, «é aquilo que provoca um conhecimento gozoso»...

Mas ter a inocência e a coragem do jogo, isto é, firmar e confirmar, contra o real, o aprazimento e a Poesia como práxis, não é só brincar, à guisa de oblato, com a péla ou pelotica: é ser, também, o Mago ou pelotiqueiro do Tarot. Re-apresenta o Poeta, com palavras, o que apresentam, com os membros, os acrobatas e palhaços: transformar a cousa na quimera é transmutar, dialecticamente, a verdade na mentira e a mentira na verdade... Contra os estritos e estremes racionalistas, diremos, então, que não há Poesia sem «persona» e participação mística, ou melhor, que o fenómeno literário é fanal e é falácia da mitomania: violam-se, na Arte, as leis da identidade e da não contradição da mesma forma que se assola, ou se viola, a lei policial ou patriarcal. Quanto à ciência ou domínio da mente, assertaremos: caleidoscópio, ficção, lanterna mágica ou magia: eis quanto a nós, que somos lava, os similares e os sinónimos da poética palavra.

(2) «Nabî» é o nome que o povo hebraico dava ao seu Profeta. Que a Poesia ou profecia leva o «intérprete de um deus» a um estado supranormal nos é atestado, claramente, pela Filologia: efectivamente, o verbo derivado de «nabî» pode significar «delirar», e o leitor sabe aquilo que «fúria», por exemplo, simbolizava para Camões.

(3) Platão, «Fedro», 265 a). Citado por Pierre Riffard, in «Dicionário do Esoterismo», Editorial Teorema, Lisboa, 1994, p. 224.

(4) Elisabeth Roudinesco, Michel Plon, «Dicionário de Psicanálise», Editorial Inquérito, Mem Martins, 2000, p. 260.

(5) Citado por Georges Bataille, in «A Literatura e o Mal», Editora Ulisseia, Lisboa, s. d., p. 101.

(6) De acordo, aqui, com as doutrinas teosóficas, diremos que Deus é apenas um mas toma aspectos ou aspeitos diferentes segundo o espaço, o tempo e o princípio de causalidade. O avisado ledor concluirá que o tempo e o espaço, formas «a priori» da sensibilidade, dizem respeito à História e Geografia multifárias, ou diversas, dos povos que apreendem o divino, mas que a representação do Númen ou númeno pelo homem ou «phainómenon» faz parte do sentimento metafísico e é, portanto, católica, anagógica e universalista. Ou como quem diz, finalmente: a Luz é uma e una mas pode assumir diversas formas, ou fórmulas, que são as cores ou colorações do espectro solar...

Armação de Pêra, 1/ 8/ 2002