VI Colóquio Internacional "Discursos e Práticas Alquímicas" |
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MARIA LEONOR TELLES |
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Num colóquio sobre “Discursos e Práticas Alquímicas” a obra de William Blake que pareceria mais indicado abordar seria The Marriage of Heaven and Hell (A União do Céu e do Inferno, na tradução de João Ferreira Duarte), reconhecidamente situada na tradição em que As Bodas Alquímicas de Cristiano Rosacruz ocupam lugar central 1. A restrição temática do presente colóquio, em torno de “jardins”, abre, porém, a quem não domina matérias tão específicas, a possibilidade de referir modestamente alguns aspectos de outras obras de Blake em que também é possível assinalar a influência de literatura relacionada com a mesma tradição. É esse o objectivo das presentes notas, que mais não pretendem ser do que mera amostragem, baseada, aliás, no texto escrito apenas, e não no enquadramento gráfico da respectiva versão original. De facto, o escritor William Blake, cuja vida decorre entre 1757 e 1827, ocupa uma situação ex-cêntrica relativamente aos seus contemporâneos, desde logo pela circunstância de editar a própria obra, gravando o manuscrito e respectivas ilustrações 2 – representativas da sua familiaridade com a simbologia esotérica, sem dúvida, mas cuja análise ultrapassa os limites deste trabalho. Ora o aspecto material das edições de Blake é significativo como reflexo de uma formação muito diferente da da generalidade dos homens de letras da época, oriundos das classes mais favorecidas e educados em instituições de tradição humanista. O percurso curricular de William Blake, filho de um modesto camiseiro, inicia-se numa escola de desenho, que frequenta até entrar, com uns catorze anos, como aprendiz numa oficina de gravura, de onde passa, terminada a aprendizagem em 1779, para a escola da Royal Academy. Pode, pois, dizer-se que é como artista plástico que Blake recebe formação académica, enquanto, no campo das letras, é, essencialmente, autodidacta, não sendo os clássicos objecto privilegiado das suas leituras, mas antes os autores inscritos noutro cânone, como os gnósticos, Paracelso, Jakob Böhme, Emanuel Swedenborg… Esse factor contribui para a atitude ecléctica de Blake, levando-o a elaborar o que pode considerar-se uma mitologia própria, mediante o aproveitamento de múltiplas fontes de inspiração, tais como a Bíblia, a literatura clássica, a tradição mística e ocultista, o que constituiu um dos factores condicionantes das vicissitudes da recepção da sua obra, por parte tanto dos leitores como da crítica, salvando-se apenas do esquecimento durante décadas os poemas mais simples, nomeadamente Songs of Innocence and Experience, (Canções da Inocência e da Experiência), o que fez com que Blake tivesse sido catalogado entre os poetas apelidados de “pré-românticos”, por dar atenção à infância, por se manifestar contra a injustiça social, por recorrer a esquemas tradicionais de metro e rima, e pouco mais. 3 A recuperação de parte dos chamados “Livros Proféticos” de Blake por Edwin Ellis e William Butler Yeats no final do século XIX, que deu origem a uma investigação da qual veio a resultar a actual edição das Obras Completas, obrigou a rever a posição do autor no quadro da história da literatura inglesa. É que, se a Coleridge se deve a teoria da imaginação criadora (colhida nos filósofos idealistas alemães) e Lyrical Ballads, obra de Wordsworth e sua, consagrou ambos como introdutores do Romantismo em Inglaterra, é na verdade Blake quem apresenta a defesa mais radical do primado absoluto da imaginação na criação poética. Comentando a afirmação de Wordsworth, na edição de 1815 dos seus Poemas, de que “os dons necessários à produção de poesia são, em primeiro lugar, a observação e a descrição”, “em segundo lugar, a sensibilidade”, Blake escreve: “Só um único dom faz um poeta: a Imaginação, a Visão Divina”. 4 Daí que os fundamentos do universo poético de Blake transcendam a experiência directa veiculada através dos sentidos (com a consequente rejeição de toda e qualquer perspectiva racionalista ou científica do real). A este propósito escreve Kathleen Raine: “O que a natureza foi para Wordsworth, foram para Blake as obras de arte e a literatura, a matéria prima da sua poesia.” 5 É assim que, em vez de corresponderem a locais específicos, observados pelo autor e descritos com o acrescento da mais valia da sua sensibilidade - nos termos da receita de Wordsworth -, os jardins de Blake constituem, antes, um dos muitos elementos significativos enquadrados numa complexa visão simbólica do mundo e da natureza, que deriva, sobretudo, das leituras que alimentaram a imaginação do poeta. No contexto da cultura ocidental, o jardim mítico por excelência é o Éden, o Paraíso descrito no Génesis, o livro das origens, herdado do judaísmo pela ortodoxia cristã. Porém com ele pouco têm a ver os jardins que surgem na poesia de Blake, que contrapõe à versão bíblica da criação a cosmogonia de The Book of Urizen. 6 No posfácio à tradução desta obra, Primeiro Livro de Urizen, 7 um ensaio notável intitulado “William Blake e a Questão das Origens”, João Almeida Flor resume deste modo a sua exposição: “Revitalizando elementos constitutivos da especulação gnóstica, neoplatónica, maniqueísta ou teosófica, Blake reelabora um vastíssimo reportório de referentes culturais” 8. Assim, Urizen não se identifica com o Deus criador benevolente que ofereceu aos pais da humanidade o paraíso terreal, mas antes com o Demiurgo que os gnósticos responsabilizavam pela imperfeição do nosso mundo. É certo que, além do fabrico de sinistros instrumentos materiais, lhe é atribuída a autoria de um jardim:
Mas, tal como acontece em outros poemas, reveladores da dívida de Blake para com Böhme na sua visão simbólica da natureza, pode reconhecer-se aqui uma reminiscência da ideia expressa em Mysterium Magnum de que “a Árvore do Conhecimento do Mal era o mundo da treva, que também se manifestava nessa árvore”. 10 Os frutos da obra de Urizen são necessariamente presentes envenenados. É, portanto, muito raro a imagem do jardim ter uma conotação genuinamente paradisíaca na poesia de Blake: nas Canções da Inocência, a natureza impoluta é representada sobretudo por paisagem rural, por vezes desértica, animada pela presença de uma fauna variada (desde os insectos às feras, com particular predilecção pelo cordeiro, remetendo explícita ou implicitamente para a tradição cristã), e há uma única ocorrência da palavra “jardim”, no início do poema “The Little Girl Lost” (“A Menina Perdida”), onde é possível ler uma promessa de restabelecimento da situação edénica:
Nas Canções da Experiência, porém, toda a perspectiva promissora é recusada, desde o primeiro momento, em que a terra se revela incapaz de corresponder ao apelo de regeneração do Bardo, por estar agrilhoada, sujeita à tirania que coarcta a liberdade do amor e é aqui atribuída a uma figura paterna ciumenta, cruelmente egoísta, idêntica a Urizen. 12 Neste contexto, os espaços abertos da inocência são substituídos por lugares nada amenos, onde crescem as tristes rosas ou o fruto envenenado da amarga experiência, 13 resultante da imposição da lei castradora inscrita em “The Garden of Love” (“O Jardim do Amor”):
Kathleen Raine reconhece nos “espinhos, cardos, silvas”, da poesia de Blake uma influência directa da simbologia de Swedenborg, para quem “significam maldição e desolação”, 15ou seja, a causa e o efeito da expulsão do Paraíso, de que resultam as situações referidas nas Canções da Experiência. Nessa colectânea, a única imagem de plena inocência surge no poema “The Lilly”, (“O Lírio”), onde Blake retoma a lição de Böhme, que à flor virginal associa Sophia, a Sabedoria espiritual da tradição gnóstica, opondo-a à rosa, símbolo de Eva, confinada ao mundo natural: 16
A dupla faceta – espiritual e material – é, por vezes representada, nos poemas mais complexos, pelos princípios masculino e feminino, que só quando reunidos facultam a recuperação do estado adâmico da humanidade. Em The Mental Traveller (O Viajante em Espírito), a essa união, aliás precária, está associada a imagem do jardim, não como espaço de enquadramento da acção, mas como expressão metafórica da relação estabelecida pelo protagonista com a figura feminina:
Este poema é, por múltiplas razões, associado a Vala 19, de cuja temática também faz parte a procura de recuperação da unidade primordial dos sexos. Porém aí os jardins apresentam-se como cenário da difícil reconciliação entre Tharmas e Enion promovida pela figura feminina de Vala, e descrita ao longo de quase meia centena de versos, entre o início da fala da protagonista e a conclusão, que, a título exemplificativo, se citam:
Muito mais haveria a dizer sobre os jardins de Blake, cuja poesia é um manancial inesgotável de sugestões, mas a intenção da presente abordagem ter-se-á cumprido se bastou para revelar a riqueza simbólica de uma obra que merece ser estudada por quem disponha dos conhecimentos profundos da tradição esotérica que faltam à autora destes breves apontamentos. |
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Notas | |||||||
1 Aliás esta obra, que terá sido composta entre 1790-93, presta-se a múltiplas interpretações, como se pode ver pela “Introdução” à referida versão de J.F. Duarte para a edição bilingue publicada pela Via Editora em 1979. 2 J.F. Duarte, op.cit., loc.cit., p. 11, descreve nestes termos o “método de gravação em placa de metal: o texto e as gravuras são escritos em tinta à prova de ácido, pelo que surgem em relevo após imersão da placa num banho corrosivo (o ‘método infernal’, ‘dissolvendo superfícies aparentes e revelando o infinito oculto’); segue-se a impressão e a aplicação do colorido. A obra situa-se, assim, entre a era do manuscrito, anterior à invenção da imprensa, e a era da ‘reprodução mecânica’ da obra de arte; entre a iluminura medieval e a moderna banda desenhada.” 3A primeira publicação de Songs of Innocence data de 1789; em 1794 voltam a ser editados, em conjunto com Songs of Experience, tendo o autor acrescentado, em subtítulo, “Shewing the Two Contrary States of the Human Soul”. A questão da recepção da poesia de Blake é tratada em pormenor na obra de Deborah Dorfman, Blake in the Nineteenth Century – His Reputation as a Poet from Gilchrist to Yeats, New Haven & London (Yale Univ. Press), 1969. 4 “One Power alone makes a Poet: Imagination, The Divine Vision” - Cf. Blake, Complete Writings (ed. Geoffrey Keynes), London, Oxford, New York (Oxf. Univ. Press), 1969, p.782. (Nas referências a esta obra utilizar-se-á doravante a sigla CW). 5 “What nature was to Wordsworth, works of art and literature were to Blake, the raw material of his poetry.” Cf. Kathleen Raine, Blake and Tradition, vol..I, Princeton, New Jersey (Princeton Univ. Press), 1966, p.xxx. 6 Note-se que, não constituindo a mitologia de Blake uma alternativa sistemática e coerente à tradição bíblica, encontramos, em poemas como Milton (1804-1808) e Jerusalém (1804-1820), por exemplo, referências explícitas ao Éden, mas em termos puramente simbólicos que não implicam a sua identificação com o “ jardim primordial perfeito”. Aliás, já em The Song of Los (de 1795) é bem claro que, para Blake, o cruzamento entre as histórias narradas na Bíblia e os mitos de sua invenção implica um total desprezo pela cronologia pressuposta pelas primeiras: Adão estava no jardim do Éden, ao mesmo tempo que Noé nas montanhas de Ararat, e ambos assistiram à imposição das leis de Urizen às nações – “Adam stood in the garden of Eden/ And Noah on the mountains of Ararat;/ They saw Urizen give his Laws to the Nations”…CW, p.245 7 The First Bookof Urizen é o título da editioprinceps da obra (1794), “First” é omitido posteriormente. 8 Cf. William Blake, Primeiro Livro de Urizen – Versão portuguesa de João Almeida Flor – edição bilingue, Lisboa (Assírio e Alvim), 1983, p.67. 9 Id. Ibid., p.47. Cf. CW, p.233s: He form’d a line & a plummet/ To divide the Abyss beneath;/ He form’d a dividing rule;// He formed scales to weigh,/ He formed massy weights;/ He formed a brazen quadrant;/ He formed golden compasses,/ And began to explore the Abyss;/ And he planted a garden of fruits. 10 Apud Raine, , op.cit. vol. II, p. 38: “The Tree of the Knowledge of Evil was the dark World, which also was manifest on this Tree” 1 Cf. CW, p.112: In futurity/ I prophetic see/ That the earth from sleep/ (Grave the sentence deep)// Shall arise and seek/ For her maker meek;/ And the desart wild/ Become a garden mild. 12 Cf. CW, p.211: “Selfish father of men!/ Cruel, jealous, selfish fear!”… “That free Love with bondage bound.” O pai da humanidade, cruel, ciumento e egoísta, identificado com o próprio terror, que aprisionou o amor livre e o escravizou, representa, tal como Urizen, a autoridade arbitrária (civil ou religiosa), que dita as leis destinadas a suprimir toda a liberdade. 13 Um dos poemas mais conhecidos de Songs of Experience intitula-se “The Sick Rose” - “A Rosa Doente” - (CW, p.213), num outro, “My pretty Rose Tree” - “A minha linda Roseira” – a rosa ciumenta só oferece os seus espinhos (CW, p.215); em “A Poison Tree” – “Uma Árvore Envenenada”, uma maçã provoca a morte… (CW, p.218) 14 Cf.CW, p.215: I went to the Garden of Love,/ And saw what I never had seen:/ A Chapel was built in the midst,/ Where I used to play on the green.// And the gates of this Chapel were shut,/ And “Thou shalt not” writ over the door;/ So I turn’d to the Garden of Love/ That so many sweet flowers bore;// And I saw it was filled with graves,/ And tomb-stones where flowers should be; And Priests in black gowns were walking their rounds,/ And binding with briars my joys and desires. 15 “Thorns and thistles signify a curse and vastation” Cf. Raine, op.cit.vol I, p.6. 16 The lily (…) Boehme contrasts with the “rose” of the natural Eve. Cf. Raine, op.cit.vol I, p. 211 17 Cf. CW, p. 215: The modest Rose puts forth a thorn,/ The humble Sheep a threat’ning horn;/ While the Lilly white shall in Love delight,/ Nor a thorn, nor a threat, stain its beauty bright. 18 Cf. CW, p. 425: Then he rends up his Manacles/ And binds her down for his delight.// He plants himself in all her Nerves,/ Just as a Husbandman his mould;/ And she becomes his dwelling place/ And Garden fruitful seventy fold. 19Vala, um poema datado de 1797, é geralmente conhecido como Vala or The Four Zoas, por Blake lhe ter alterado o título numa segunda versão revista. Cf. CW, p.263 20 Cf. CW, pp. 370-372: “Thou, little Boy, art Tharmas, & thou, bright Girl, Enion./ “How are you thus renew’d & brought into the Gardens of Vala?” (…) “Clear up thy Countenance, bright boy, & go to Enion./ Tell her that Vala waits her in the shadows of her garden.// He went with timid steps, & Enion, like the ruddy morn/ When infant spring appears in swelling buds & opening flowers,/ Behind her Veil withdraws; so Enion turn’d her modest head.// But Tharmas spoke: “Vala seeks thee, sweet Enion, in the shades./ Follow the steps of Tharmas, O thou brightness of the gardens.”/ He took her hand reluctant; she follow’d in infant doubts./ Thus in Eternal Childhood, straying among Vala’s flocks/ In infant sorrow & joy alternate, Enion & Tharmas play’d/ Round Vala in the Gardens of Vala & by her river’s margin./ They are the shadows of Tharmas & of Enion in Vala’s world. |
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