MEDITANDO SOBRE O PARAÍSO
Por HELENA LANGROUVA
Doutorada pela Universidade Nova de Lisboa


Modulações da procura espiritual –apatheia-

Na filosofia de Plotino e de Gregório de Nissa, as três noções de apatheia – procura espiritual-, katharotes - pureza - e arete – virtude - estão profundamente ligadas. A concepção de apatheia, segundo Gregório de Nissa, está próxima da de Inácio de Antioquia que a considera como marca da natureza divina no homem, isenta de qualquer apego ao sofrimento dominador, à paixão - pathos (XLVI, 241D). É “ na apatheia que consiste a bem-aventurança” (Cat. XXXV, 14).

Segundo Gregório de Nissa a apatheia designa a vida sobrenatural, a graça divina, a participação da alma humana na vida divina. Não tem a ver com a eliminação das paixões, no sentido físico ou psíquico. Tem a ver com o símbolo do que poderemos chamar o estado paradisíaco e o símbolo do mundo dos anjos.

A apatheia é a bebida de que os homens viviam no estado paradisíaco; está ao lado da semelhança com Deus e da imortalidade, na simbólica da vinha paradisíaca. É como que o regresso à vida angélica, símbolo do mundo do alto, por oposição ao mundo cá de baixo. Diz Gregório de Nissa que “ a alma se tornou igual aos anjos – isangelos – pela apatheia “(XLIV, 777 A) e que “ é preciso imitar pela apatheia a pureza dos anjos” (XLIV, 857 A), in Jean Daniélou, op. cit., p. 95.

Para além da sua relação com a “pureza” - katharotes – e, em particular a pureza dos anjos, a apatheia relaciona-se com a virtude – arete - no que poderíamos chamar – seguindo Daniélou, op. cit., p. 100- o significado paradisíaco do termo. A virtude significa os bens do paraíso, perdidos pelo pecado de Adão- símbolo do homem - e recuperados por Cristo. Trata-se do que se poderia chamar a vida sobrenatural e a sua complexa relação com a incorruptibilidade - aphtharsia -, conciliável com o complexo conceito de imortalidade. Citamos um passo de S. Gregório de Nissa:

“ na sua origem, a natureza humana era florescente, enquanto estava no Paraíso, regada pela água fecunda da fonte.. Tinha como folhas o germe da incorruptibilidade – aphtharsia – mas tendo o Inverno da desobediência secado a sua raiz, a flor murchou, caiu por terra, o homem ficou despojado da incorruptibilidade e a árvore das virtudes degenerou… Mas Aquele que devolve a primavera à nossa alma veio… A nossa natureza recomeçou a florescer e a ficar ornada das suas verdadeiras flores. Essas flores da nossa vida são as virtudes” (XLIV, 1096C).

Não desenvolveremos o assunto relativo às virtudes, deixando apenas a claro que, no pensamento de S. Gregório de Nissa, elas são fruto da acção do Espírito Santo, manifestação da apatheia, não fazendo distinção entre virtudes morais, teologais, frutos e dons do Espírito Santo. Da “força, temperança, justiça e outras (XLIV, 781B) à “caridade, alegria, paz, longanimidade, bondade” (XLIV, 961 B), à “ humildade, longanimidade, doçura”( XLVI, 272 C), todas têm a ver com a vida sobrenatural da alma e com a imagem – eikon – de Deus.

As virtudes são termos genéricos que têm a ver com a perfeição da imagem. O homem feito à imagem e semelhança de Deus e as virtudes definem essa perfeição. Neste sentido, a virtude está no mesmo plano que a apatheia e a pureza- katharotes. As virtudes pertencem à vida sobrenatural dada pela graça divina e são designadas por metáforas e símbolos, além das flores e cores: podem ser ornamentos da esposa, folhas soltas e suavemente agitadas por um suave sopro – pneumati- e expandem-se sob a acção desse sopro, ou seja, as virtudes têm a sua origem no sopro do Espírito Santo. É importante notar que não há distinções entre categorias de virtudes: interessa que cada uma e no seu conjunto imitem a natureza divina, designem a imagem – eikon- de Deus:

Neste sentido, as virtudes são sobrenaturais porque são resultado da Incarnação do Verbo de Deus.

“Deus pintou a imagem da sua própria beleza aplicando como cores as virtudes”(Gregório de Nissa, Tratado da Criação do Homem).

A pureza - katharotes - não tem a ver com a ideia de ausência de sujidade ou de mancha de natureza física ou moral. É a característica da vida divina assim como katharsis é não a eliminação de impurezas terrestres mas comunicação da graça divina. Gregório de Nissa considera que o único conhecimento que temos de Deus é aquele que temos quando nos conhecemos enquanto imagem de Deus. A apatheia e a katharotes designam a vida divina da alma, em geral, a graça que santifica e deifica e se expande em virtudes que são valores espirituais que acentuam a semelhança com Deus.

Os conceitos de apatheia – que também tem a ver com a privação de qualquer paixão- e katharotes- a pureza -, são plotinianos, o pensamento é cristão. No seu conjunto a vida divina na alma humana, a graça divina é a participação dos humanos no mistério da vida de Cristo que venceu a morte e pela sua Ressurreição transformou a ideia de incorruptibilidade e de imortalidade para o espírito dos homens que perseveram na procura espiritual e de encontro interior, místico, com Jesus Cristo.

Cumpre-nos notar que a referência que encontramos ao paraíso no discurso do Jesus Cristo situa-se no momento da agonia, na cruz, quando promete ao bom ladrão, seu companheiro de suplício, a esperança de um post mortem de imortalidade, de reconforto, de continuidade de presença divina, de companhia: “hoje estarás comigo no paraíso”. Por isso o apelo a revestir-se do homem novo de que fala São Paulo é o apelo a revestir-se da apatheia, da katharotes de Cristo e a perseverar nas virtudes que são dons do Espírito Santo.

 

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Última Actualização:
09-Aug-2006