O MAGO, METÁFORA DO POETA
1. Poetas e magos Entre os ensaios que examinam ou sugerem relações entre literatura e o saber oculto, é indispensável constar El Arco y la Lyra, O Arco e a Lira, de Octavio Paz, onde são apresentadas semelhanças e diferenças entre o poeta e o mago. Seus capítulos examinam, cada um deles, diferentes características da poesia, ou, melhor dizendo (e interpretando Octavio Paz, atribuindo-lhe intenções), componentes do valor poético. Serão comentados trechos do capítulo intitulado O Ritmo, porém comparando-os a outras passagens e obras de Octavio Paz, e a outros autores. Precedendo-o, no parágrafo final do capítulo sobre A Linguagem, há uma passagem freqüentemente citada:
Há duas idéias evidentes nesse trecho. Uma delas transparece na repetição da palavra original, remetendo a um estado originário, um illo tempore marcado pela unidade entre a palavra e a coisa, ou o signo e seu significado, perdida ao longo do curso da história. Outra, correlata, conseqüência de haver um estado original da linguagem, é a da sua autonomia. Signos têm um anterioridade; portanto, uma existência própria, não se limitando a ser meras conseqüências ou reflexos de propriedades das coisas, ou das impressões provocadas pelas coisas sobre os sentidos. Por isso, representa uma recusa do empirismo, situando-se no oposto diametral do positivismo, do cientificismo ou da defesa do realismo e naturalismo em literatura. Octavio Paz não é um pensador religioso. A “outra” linguagem, originária, não está situada em um tempo mítico, um Paraíso anterior à Queda, porém na História, em nossa cronologia, e até mesmo em nosso tempo, nas culturas ditas primitivas, nas sociedades tribais. Tanto é que, em outro de seus ensaios, Conjunções e Disjunções, cujo tema central é a sublimação, busca evidência antropológica para mostrar como era a linguagem na Antiguidade, ou, para ele, as antiguidades, posto que são várias:
Tomando este trecho como poética, interpretando-o como pensamento sobre a criação literária, temos, é evidente, a fundamentação das sinestesias baudelairianas. E mais: resumida, aí está toda a crítica simbolista e decadentista a uma decadência da linguagem, entendida como perda de seus sentidos originais, da sua dimensão sensível, em favor da utilização instrumental, empobrecendo-a. Adotar essa postura, e mais, falar em purificar a linguagem, remete a Mallarmé, representante, quando não o avatar na tradição literária ocidental, da defesa da autonomia da linguagem poética. Subentende seu tornar mais puras as palavras da tribo. Referindo-se ao autor de Igitur e Um lance de dados, qualificado como o mais elevado dos poetas herméticos, que ainda retornaria à sua obra ensaística, reconhecido como influência marcante e figura referencial, Paz afirma, em O Arco e a Lira, que:
Daí, da postulação da autonomia da linguagem, vem a importância dada ao ritmo, entendido como visão de mundo e não só como medida; e, por isso, como elemento constitutivo do poema e não apenas seu atributo. O ritmo precede o poema:
A defesa da autonomia da linguagem está a um passo da atribuição de valor mágico. O autor de O Arco e a Lira dá esse passo:
Falar em natureza animada já é celebração nostálgica da unidade, do Paraíso Perdido, recuperação do paganismo, do mundo íntegro, indiviso, impregnado pelo sagrado de outros períodos históricos ou de culturas e civilizações distintas da nossa. Afirmar a correspondência entre palavras, e mais, de seus ritmos com aqueles que regem a natureza e o cosmos, é entender a analogia não apenas como um modo de pensar ou de expressar-se, mas como princípio geral:
O paralelo entre poeta e mago é quase um corolário, a conseqüência de uma poética e uma filosofia. Também o é a argumentação de que ambas, poesia e magia, decorrem da ascese, de uma transformação interior:
Criação poética, ou, para usar os termos de Octavio Paz, revelação poética (título de outro dos capítulos de O Arco e a Lira), é uma operação do sujeito, resultado de uma atividade psíquica, mas que acaba chegando, através de um movimento paradoxal, uma dialética especial, à anulação do sujeito. Portanto, a aproximação não é apenas entre magos e poetas, mas também entre poetas e magos e os místicos. Ao fazer tais paralelos, aponta limites e mostra diferenças:
Um componente da analogia entre poeta e mago, de interesse para presente argumentação, é a afinidade na rebelião luciferiana. Ou prometeico-luciferiana, pois nela o anjo caído e o doador do fogo são identificados. A valorização do anjo rebelde está em crenças gnósticas e em seus reflexos no ocultismo do século XIX, lembrando que um dos livros de Stanislas de Guaïta é intitulado Le Temple de Satan. Reingressa na literatura de modo mais evidente através de William Blake, autor indispensável no presente contexto (porém antecipada, na ótica do próprio Blake, por O Paraíso Perdido de Milton). De forma mais evidente, está em suas ilustrações para O Paraíso Perdido, com representações de um Lúcifer apolíneo, olímpico, como se tomasse o lugar do Cristo de Miguelangelo; e em O Casamento do Céu e do Inferno, ao intitular aforismos e descrições de visões de Provérbios do Inferno e A voz do Diabo. Com plena consciência desses arquétipos e de um tal background, Octavio Paz observa que:
O empreendimento do mago seria estéril, além de solitário, pois teria como finalidade o poder, o domínio sobre os homens e o mundo, nisso diferindo da rebelião prometeica, que é uma doação.
Na poesia, o exemplo da solidão, da posição auto-reflexiva, auto-referente, seria, ainda segundo Octavio Paz, o projeto poético de Mallarmé:
Paz pode estar se referindo à crise de Mallarmé em 1866, que se seguiu à criação de seus primeiros e enigmáticos poemas em prosa, como O Demônio da Analogia, quando o poeta teve a visão abissal do Nada e declarou que via seu pensamento se pensando a si próprio. Mas esse poema em prosa, O Demônio da Analogia, pode ser interpretado como crítica ou alerta desta auto-consunção, antecipando Igitur. Nele, Mallarmé advertiria com relação ao solipsismo nas experiências místicas ou místico-poéticas, a perda ou errância sem chegar a lugar algum em um labirinto de símbolos, uma vez perdidos seus referentes externos. Examinar em detalhe as afirmações de Paz sobre poesia e magia justifica-se por várias razões. Em poucos textos tratando de literatura a questão foi posta com tal clareza e tão bem sintetizada. Contudo, reconhecer sua estatura não implica adotá-lo irrestritamente. Especialmente, no que diz sobre a solidão do mago e o caráter especular de seu empreendimento. Historicamente, a atuação de magos, e mais, de movimentos fundados ou encabeçados por magos, ou que se apresentaram como fundamentados no Oculto, proclamaram a comunhão, a fraternidade a traduzir-se na ação coletiva; enfim, tudo o que, para citar um expoente do gênero, Éliphas Lévi em seu Dogma e Ritual de Alta Magia, corresponderia à egrégora, requisito para a realização da magia, ou, ao menos, para o acesso ao conhecimento oculto. A coexistência do pensamento mágico e modos de sociabilidade é evidente em maçons, rosacruzes e tantos outros grupos, ordens, seitas e fraternidades. O mesmo vale para os poetas. O próprio Mallarmé acabou, perto do fim de sua vida, em 1896, sendo proclamado Príncipe dos Poetas, com status, portanto, de celebridade. Está ligado a algo coletivo, o simbolismo, associado por sua vez à interlocução com outros autores (no caso de Mallarmé, basta lembrar seu diálogo com Villiers de L’Isle Adam), e ao círculo literário que comparecia às reuniões em sua casa, os célebres mardis. Vultos como Lautréamont, os “malditos” Rimbaud e Corbière e o brasileiro Souzândrade destacam-se pelo isolamento ligado ao que seus empreendimentos poéticos tiveram de avançado e transgressivo, e também a traços e idiossincrasias pessoais (a exemplo das provocações sistematicamente encenadas por Baudelaire), e não necessariamente à condição de magos ou ocultistas, ou à identidade com o Oculto. O mesmo vale para místicos e magos que são pilares do pensamento analógico na tradição ocidental, como Paracelso e Jacob Boehme. O médico e mágico sofreu expulsões e perseguições por ser idiossincrático e entrar em choque com autoridades e potentados locais; o místico foi confinado e viveu recluso, em virtual exílio por suas idéias serem tidas como heréticas; portanto, sofreu banimento político. Reciprocamente, poetas-magos, efetivamente praticantes ou iniciados, tiveram atuação pública, e até política. Foi o caso de Yeats, do militante nativista irlandês da juventude ao senador da Irlanda na maturidade; ou de André Breton e demais surrealistas, ao quererem unir pensamento mágico e posições políticas; ou ainda, no âmbito brasileiro, de alguém como o simbolista paranaense Dario Velloso, estudioso de ocultismo, rosacruz, discípulo de Péladan, Guaïta e Papus, e também personalidade pública, defensor pioneiro de nossos índios, além de socialista, anticlerical, pacifista e educador voltado para uma modernização pedagógica. Isso, sem entrar naqueles paradoxos tipicamente brasileiros, como o representando por Medeiros e Albuquerque, jurista eminente que chegou a Ministro da Justiça, autor da primeira legislação brasileira de Direito Autoral, e também difusor do simbolismo entre nós, beletrista e, como tal, satanista baudelairiano. Ao tomar Mallarmé como referência, a aproximação entre o poeta e o mago em O Arco e a Lira permite observações adicionais. O autor de Igitur não praticava magia, ao que consta. Embora fosse divulgado através das livrarias e editoras dos ocultistas, figurando na Librairie de l’Art Indépendant junto com outros expoentes de um simbolismo literário, sequer freqüentava os salões ocultistas e cenáculos de Péladan e Guaïta, nisso diferindo de autores que conviveram com ele e compareciam seus mardis. É difícil demonstrar que obras herméticas ou ocultistas houvessem sido uma fonte direta de sua criação e de suas idéias sobre o Livro, o Nada, a Palavra Pura. No ensaio de P.-O. Walzer, no volume da coleção Poètes d’aujourd’hui dedicado a Mallarmé, na passagem que relata sua crise de 1866, é citada uma carta de Villiers de l’Isle Adam na qual o autor de Axel indica para leitura o Dogma e Ritual de Alta Magia de Éliphas Lévi. Ora, se Villiers a indicava, é porque Mallarmé não a conhecia, apesar do enorme prestígio de Lévi, figura central do ocultismo no século XIX. Portanto, há indícios de que o autor de Um lance de dados não precisou de uma formação hermética para vislumbrar o Nada e ver seu pensamento pensando-se a si mesmo, nem para criar textos herméticos como Le démon de l’analogie, já escrito naquela época, ou desenvolver o projeto de Hérodiade. Nada devem, diretamente, a essa fonte. Indiretamente, talvez sim, pelo modo como o ambiente cultural francês da época estava impregnado de idéias ocultistas. No entanto, há diferença com relação a Baudelaire e suas correspondências, ou ao modo como Nerval bebeu, desde a infância, em fontes esotéricas. E mais: nessa mesma carta, Villiers se refere às leituras de Hegel que Mallarmé já estaria fazendo, o que permite a Walzer tentar uma aproximação entre o absoluto hegeliano e mallarmaico. Sabe-se que Hegel foi matéria de estudo de Mallarmé e de outros simbolistas, e, antes, de românticos e de Baudelaire. Segundo seus biógrafos Pichois e Ziegler, Baudelaire e o grupo de jovens poetas que ele freqüentava eram leitores do autor da Fenomenologia do Espírito. E aquilo que, genericamente, pode ser denominado de “filosofia romântica”, de Schelling a Novalis, exerceu influência marcante sobre o pensamento e a poética de sucessivas gerações românticas e pós-românticas. Enfim, na gênese da criação de Baudelaire, no período de formação e criação de seus primeiros poemas importantes, entre 1841 e 46, é como se houvesse, somando-se a sua cultura propriamente literária, uma combinação de leituras de pensadores herméticos, notadamente Swedenborg e Wronski, de prosadores que adotaram o princípio da analogia, como Hofmann e Balzac, e de filósofos, tudo isso combinado com as experiências alucinógenas relatadas em O Clube dos Haxixins de Théophile Gautier e em Os Paraísos Artificiais do próprio Baudelaire. Daí (acompanhando a argumentação desenvolvida em Pichois e Ziegler e também em La mystique de Baudelaire de Jean Pommier) nasce a poesia das correspondências universais e a poética do primado da imaginação sobre as demais faculdades. Portanto, há muitos modos de relação entre poesia e saber oculto, poetas e magos. Mallarmé se insere em uma categoria distinta daquela representada por Yeats, este sim, um iniciado, um praticante sistemático; ou por Pessoa, com seu interesse pela Ordem Rosa + Cruz, sua atividade como tradutor dos teosofistas Blavastky e Leadbetter, sua interlocução com Crowley, talvez fonte importante de seu neopaganismo e objeto de sua admiração (conforme declarou em carta a João Gaspar Simões) e seu conhecimento de astrologia e simbologia hermética. Não mantinha nem mesmo a proximidade com o ocultismo de Baudelaire e Victor Hugo, em seus diálogos com Éliphas Lévi. Em suma, há algo de intrinsecamente esotérico, por ser hermético e cifrado, resultado de uma revelação, na criação poética, que independe da ligação efetiva com o esoterismo histórico, ou seja, o hermetismo iniciático dos magos e ocultistas. Sabem-no, inclusive, especialistas na conexão poesia hermetismo, a exemplo de David Guerdon, autor de Rimbaud, la clef alchimique, onde consta a seguinte observação:
Por isso, esse autor descarta, de modo muito inteligente, em sua decodificação alquímica da poesia de Rimbaud, a insolúvel questão do que o autor de Uma temporada no inferno teria estudado, ou não, nesse campo, e de quais obras alquímicas teriam de fato chegado a suas mãos. Há, sugere Guerdon, uma sincronia entre conhecimento poético e hermético, inspiração e revelação:
Certamente, Fernando Pessoa sabia disso, e o expressou com tamanha clareza em Natal:
Baudelaire também sabia das analogias entre poetas e magos, e o disse em passagens como esta, de Fusées (Projéteis, na edição brasileira): A escrita e a linguagem enquanto operações mágicas, sortilégio evocatório. E, em Meu Coração a Nu, aproximou poesia e alquimia (antecipando Rimbaud e sua Alquimia do Verbo, texto no qual, por sua vez, reconheceria Baudelaire como vidente máximo):
O esoterismo intrínseco, inerente à criação poética, é reconhecido por Octavio Paz em O Arco e a Lira, em passagens freqüentemente citadas:
Assim, ao pôr Mallarmé em cena, como nos trechos já citados, associando-o à defesa do hermetismo, Octavio Paz o trata como metáfora do mago. E vice-versa: o mago também aparece como metáfora do poeta. Simbolizam-se mutuamente. O próprio Mallarmé autoriza esta interpretação, em seu comentário sobre Là-bas de Huysmans, intitulado Magie, ao referir-se a uma paridade secreta entre os velhos procedimentos e o sortilégio que permanecerá a poesia. E mais, ao dizer que o verso, traço incantatório, (...) abre uma similitude com as rondas, no meio da relva, da fada ou do mágico. ______________ Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Presidente da União Brasileira de Escritores, UBE. Co-director da Agulha, Revista de Cultura, onde pode encontrar o seu currículo: http://www.revista.agulha.nom.br/ageditores.htm |