RODRIGO PETRONIO - A DIALÉTICA DIABÓLICA DA POESIA

Nada mais tentador e, ao mesmo tempo, nada mais óbvio e reducionista, do que começar a exposição do tema proposto por algumas divagações etimológicas. Porém, é difícil fugir delas, dada a naturalidade com que algumas associações nos ocorrem. Comecemos pelo termo híbrido: todos os bons dicionários derivam-no do latim hibridus, que quer dizer algo sem unidade, misto, misturado, compósito, dividido, algo geralmente referido como a união estável e previsível de dois ou mais elementos de natureza diversa. Impossível não associarmos esse étimo, por maiores que sejam as recriminações de filólogos e especialistas, à hybris grega: a divina loucura de que foi acometido Édipo ao descobrir o caráter incestuoso de sua relação com Jocasta mas também, e sobretudo, aquele furor divino que, como diz Platão no Íon, é o que anima toda a poesia e está na sua origem. Nesse caso, o poeta viveria a hybris no momento da criação: deixando de ser ele próprio para ser um outro que canta por intermédio dele, faz-se instrumento de uma voz que o transcende sem, contudo, anulá-lo em sua singularidade. Como diria Sócrates a Íon, para saber o que vem a ser a poesia, seria preciso saber quem canta nele quando ele canta, o que, a despeito dos protestos sem sucesso do mesmo, que reivindica de maneira renitente e inútil a autoria integral de tudo quanto compõe, colabora para quebrar a própria expectativa que o indivíduo faz de si enquanto indivíduo: seria uma forma de romper sua integridade e dissolvê-lo no devir do mundo.

O poeta seria então aquele para quem o exercício do duplo, mais do que algo natural, é necessário, essencial e sua razão mesma de ser: a outra voz de que fala Octavio Paz, que se insurge da voz mesma daquele que enuncia o verbo e anuncia o mundo e o nomeia de novo, age ironicamente contra o sujeito que a profere, dilacerando-o. Porém, sua destruição é divina, pois mostra aos homens que ela é a chave de que necessita o criador para mergulhar na estrutura profunda do mundo e dele trazer Eurídice à tona, como verdade revelada ainda que sempre sabida. Haveria uma relação substantiva e substanciosa entre poesia e loucura, nesses termos, relação que pode ser lida e entendida como uma apologia do alheamento, da divisão, do que desagrega a unidade primeira do mundo aparente para preservar incólume, intacta e íntegra a unidade profunda do mesmo, que se desprende do abismo e encontra na voz do poeta uma intérprete. Mais: um veículo. Sua dissolução está na base da divisão de sua personalidade e na duplicidade de sua voz que se desdobra para cantar o Outro, essa alteridade infinita que não coincide com nenhuma idéia preconcebida ou quaisquer conceitos cristalizados de ordem política, ética, moral, étnica ou outros congêneres. Semelhante à vítima sacrificial, o canto nasce da perda da unidade do sujeito que se estraçalha ou, para dizer com Fernando Pessoa, simplesmente não se achar em nenhum lugar onde quer que esteja ou sequer e muito menos naquele em que se imagina, pois o próprio sonho lhe é hostil, refratário e avesso à hospitalidade. E assim se sente estrangeiro até de si mesmo, para quem todo o mundo é um exílio, e não só um exílio da carne que aspira ao reino celeste, como Camões disse em Babel e Sião, mas sim uma nostalgia do tempo em que essa mesma carne abrigava deuses em si e supunha em si algo além capaz de redimi-la, mas sim o exílio de um homem que não mais se reconhece nem mesmo naquilo que suas mãos produzem: o abandonado dos deuses, para quem a loucura não mais anima e dá vida e unifica as formas sensíveis do mundo, mas apenas faz dele um teatro sádico no qual fomos inescrupulosamente atirados e no qual representamos como marionetes, como disse Rilke.

E aqui entramos em zonas de sombra e em uma floresta de conceitos que merecem maior atenção, com o perdão pela minha insistência de escoliasta e filólogo frustrado. Porque se o furor divino separa, desagrega e divide o indivíduo, fraturando assim a sua própria essência ontologicamente determinada, e exige que ele empreste sua voz particular para que se cumpra o eco ancestral daquela Voz impessoal e eterna que se renova nele, que existe graças a ele e, ao mesmo tempo, apesar dele, seria interessante pensar de que ordem de divindade seja esse deus bruto. Acaso não seria um tipo peculiar de dyabolus, tendo em vista que, na sua acepção original, este quer dizer rigorosamente: aquele que separa? Se o symbolus é uma conjunção de sentidos, uma unidade semântica que refere algo que é maior e mais abrangente e mais espesso que as partes que une e sintetiza, seria a poesia, uma das artes e atividades simbólicas mais antigas da humanidade, regida pelo extremo oposto de tudo o que a estrutura e que dá cor, vida, forma, função, brilho, luminosidade, ordem, movimento, textura, ritmo e intensidade à aparência exterior de sua arquitetura? Seria a poesia um anjo que só alça vôo sob os auspícios do sopro de um demônio? Esse parece ser o paradoxo que instaura seu sentido profundo. Ainda que o furor divino seja o seu primeiro motor, só na condição híbrida do poeta, esse ser onde convivem de maneira limítrofe o Eu e o Outro, ou, numa fusão alquímica mais radical, onde o próprio eu é um outro, como bem disse Rimbaud, a poesia torna-se a zona manifesta de uma operação que vai do Uno à desagregação, ou melhor, que parte dele para nele compor a multiplicidade do mundo sensível, matizado, separado, discernido, distribuído, misturado e plasmado de vários tons e formas, processo fixado por Plotino para superar o dilema e a aporia fundamental do platonismo, baseadas na impossibilidade de conciliação da Idéia com os fenômenos.

Não se trata de uma conciliação de contrários, ou de uma coincidentia oppositorum, como referiu Baltasar Gracián para definir aquele tipo de agudeza própria ao engenho poético mais discreto e arguto, já que nesse caso estamos no interior de um processo circunscrito aos artifícios retóricos e poéticos, podendo quando muito servir de ilustração à unidade da Deus que subjaze às mais díspares manifestações e acidentes sensíveis. Não é uma união entre duas esferas antitéticas do pensamento, como Schelling propôs que se desse entre o absolutamente real e o absolutamente ideal, em uma operação lingüística que, é forçoso convir, guarda uma boa dose de falácias e tautologias. Estamos diante da força demoníaca da poesia, que funciona como espinha dorsal de sua própria natureza: o sujeito, ao incorporar a alteridade radical e deixar o Outro falar por sua fala está se destruindo para preservar a unidade do ser. Esse é o princípio ativo da loucura: a hybris, entendida como desrazão, desmesura, monstruosidade, excesso e desordem, já que o conceito é passível de todas essas acepções, nasce da própria condição híbrida e mista do sujeito sem integridade. E creio que não seja por outro motivo que Nietzsche identificou no cristianismo, esta religião que radicalizou a cisão ontológica entre o mundo ideal e os fenômenos sensíveis, que praticamente opôs esta vida à verdadeira vida situada no futuro, transformando o mundo em uma espécie curiosa de vestíbulo no Além e assim anulando a pulsão vital e todo o impulso dionisíaco de transformação, o início de uma concepção dual do universo: ao contrário do ser permeável, poroso e uno, onde essências e acidentes convergiam e conviviam em um único ato de conhecimento, teremos então a dualidade infernal de um movimento que representa sempre a superação de si mesmo rumo a um ideal perfeito embora não perfectível nesta existência. Outra não é a função de seu Zoroastro moderno, que a de regressar aos rudimentos da religiosidade de Ahura Mazda e da síntese dos opostos, vigente e natural nessas eras remotas.

É claro que há muita generalização nessas premissas, e tomar o cristianismo como uma totalidade só é possível se depois esmiuçarmos suas peças e práticas, pouco a pouco, sistematicamente, o que não é o caso aqui. Mas um horizonte se descortina destas reflexões. E, em um certo sentido, estamos desde Platão presos a uma concepção dualista do ser, que é a causa primeira de nossa doença. Tudo o que para Parmênides é movido pela entelékia e nela e na matéria imóvel se consuma em um círculo harmônico, onde todas as partes convergem para o centro e onde a própria idéia de uma oposição entre causas essenciais e acidentais é de antemão descartada, com Platão e, sobretudo, com Aristóteles, será objeto de cisão: e se há uma metáfora precisa para a queda e para a expulsão do Paraíso, é a imagem do homem sendo expulso do círculo cósmico no qual ele estava integrado às potências anímicas e sua ulterior entrada na história, e, com ela, na relação dual, dialética e material de uma existência que a partir de então visará a consumatio e projetará toda a felicidade terrena e real em um futuro sobrenatural e hipotético, fazendo o pacto luciferino de troca da evidência sensível pela conjectura possível, em um movimento teleológico de conseqüências graves. Aqui inicia a loucura: ela é a um só tempo antídoto e veneno, corresponde àquela acepção preciosa e precisa que Jacques Derrida desvela em Platão, e que repousa na gama de sentidos da palavra phármakos, a um só tempo veneno e antídoto, remédio e doença, cura e degeneração. Porque a cura pelo discurso, ou o ato de filosofar e por meio desta atividade contemplar as esferas puras, cujo correlato político a capacidade de legislar e organizar a República ideal, sustentada pela mediação racional do homem visto como animal político e, portanto, infenso às desarmonias e paixões circunstancias do homem enquanto animal, em nenhum momento pode ser tomado como um ato alheio a todas as artimanhas que todo discurso, como fato de linguagem, engendra em si: a filosofia seria um amor da sabedoria, mas também o amor da serpente, ófis, que se enrosca em si mesma e encontra na autofagia o seu paraíso artificial e sua redenção paradoxalmente semelhante a como Narciso encontrou em si mesmo o seu inferno. É assim, desvendando o vazio conceitual e categórico da razão filosófica, tal qual ela se desenvolveu no Ocidente, pensando os limites mesmos do discurso produzido sobre o ser, que podemos rever sua eficácia e seu sentido. Da mesma forma, a poesia, fonte infinita de ambigüidades, a ponto de podermos dizer que apenas a ambigüidade a funda e estatui seu ser no mundo. E sua ambigüidade maior está posta como sua polaridade originária e original: sendo a voz que canta e celebra a unidade, ou a Substância de todas as substâncias, como diria o magnífico poeta Augusto dos Anjos, só por meio do dilaceramento do cantor é que ela se efetiva entre os homens em toda sua plenitude e que se instaura no mundo com toda sua glória. Loucura sagrada e divina, por paradoxal que pareça, porque em sua dimensão ética está implicado o seu fim e não os seus meios. Loucura que começa exatamente com a polarização da experiência humana em um horizonte fenomênico dividido e hierarquizado, cuja pedra-de-toque é, em primeiro lugar, Platão e, em seu encalço, o cristianismo, entendido como platonismo para o gado, como já disse Nietzsche.

Assim a poesia pode, como fato privilegiado da linguagem, desmascarar a própria verdade, vista como uma linguagem que se naturaliza a si mesma e disfarça falaciosamente os artifícios de seus mecanismos de enunciação. Penso em Heidegger, em sua descoberta fundamental, colhida em algumas linhas dos filósofos físicos da Antigüidade, segundo a qual uma das acepções de alethéia, ou seja, de verdade, seria: aquilo que aprece no discurso, no logos. A verdade seria então um epifenômeno lingüístico, uma aparição e, em última instância, um fantasma que se instaura sob certas condições e dentro de certos regimes de sentido. Há uma série de razões subliminares nesse pequeno encadeamento etimológico, a começar pela revisão drástica da herança substancialista de toda uma tradição filosófica devedora do idealismo. Mais ainda: há aqui uma subversão da própria filosofia, criticada como atividade que, ao invés de se propor como ciência das ciências, formulando e perscrutando as suas próprias causas e implicando o sujeito cognoscente em todo ato de conhecimento, se contenta com a repetição de certos agregados de conceitos mais ou menos convenientes e convencionados pelas práticas e pela rotina do ofício, deixando de lado a amplitude noética, de mergulho vertical na estrutura do mundo, que é, em suma, justamente o que a caracteriza. Questionamento radical e, sob certos aspectos, último, temos aqui uma reversão de tudo quanto foi pensado em termos de dualismo desde Aristóteles, e também um passo fundamental para revermos a polaridade balizada no Górgias e em tantos outros diálogos, cujo itinerário entre nós é milenar, e que consiste numa oposição sistemática e exclusiva entre a doxa, a opinião, reino dos discursos sofísticos, e a busca dos universais inteligíveis e puros, ocupação maior de toda a filosofia. Porém, ter a ciência desse processo não nos leva a incorporá-los pacificamente à nossa consciência. E será Hölderlin o poeta que arderá nas chamas da loucura mais profunda por ousar cantar o efêmero como eternidade e a louvar a unidade panteísta do mundo que se lhe afigurava em seus momentos de delírio, pois em nada disso ele reconhecerá o mundo tal e qual ele se ordena em sua exterioridade cotidiana, e tudo lhe passará sempre como um sonho bom que quer perdurar sem sucesso, sonho este que, mais tarde, será lido e politicamente utilizado pelos poetas fin-de-sciècle como refúgios para os sentidos e como paraísos artificiais.

Esse movimento de destruição epistemológica não é gratuito e muito menos tem como finalidade reduzir o pensamento a um jogo formular de frases e efeitos. Quer sim abrir uma via de acesso ao que não tinha sido pensado ou meditado pela tradição filosófica racionalista, seja ela aristotélica, cartesiana ou positivista. A partir de então o pensamento se ocupa de suas próprias margens, abre-se um leque amplo e inaugura-se um campo fecundo para uma das questões mais belas do espírito: o imponderável. Reflexão que se faz a partir do coração do próprio ato reflexivo, inserção no mundo que se dá como radicalização de uma visada metafísica, entendida aqui naquela acepção especialmente tocante e comovente que Heidegger desenvolve em sua famosa conferência na universidade de Friburg, em 1932, ou seja, entendendo-se a metafísica como aquele tipo de conhecimento de um objeto onde, em última instância, o próprio sujeito que conhece está implicado e posto em xeque, eis que os limites entre razão e linguagem se desmancham, e estamos às voltas com a matéria incandescente da vida em sua nascente. Eis em suma no que consiste a queda no ser, o desvelamento do ser que emerge do Dasein, o homem recomposto e doado à sua infinitude de origem e o sujeito reconciliado com o Outro, com aquela alteridade infinita que funda a própria possibilidade de existência do Eu, enfim, o homem reconciliado com o ser, por tanto tampo esquecido, bloqueado ou obnubilado por conta de projetos escatológicos. Nessa fissura se inaugura uma nova passagem para o infinito e para a Unidade. Não aquela candente e devedora de névoas transcendentais que tantas vezes eclipsaram o que há de maravilhoso em todas as religiões e ludibriaram a nossa inteligência com jogos engenhosos de sentido e de artimanhas, mas vazios de sustentação empírica. Não aquela que se faz à revelia e à reboque do homem, oprimindo-o para poder finalmente se revelar por intermédio dele, ou, pior ainda, aquela que se refunde no homem e lhe enseja o simulacro de um poder ilimitado, fazendo dele um pequeno deus capaz de deliberar sobre o curso das coisas, dos seres e de seus próprios semelhantes. Falo da Unidade que é o reino do ser implantado neste mundo, do horizonte transcendental onde o homem se encontra como criatura que reconhece o Criador que cria por meio de suas mãos terrenas de barro sem dividi-lo ou cindi-lo ou anulá-lo em sua especificidade ontológico. Nesta dimensão, provavelmente o movimento natural do dyabolus será regressar ao ventre da relva e ao seu sono eterno, e a loucura, a hybris enfurecida, não mais será necessária para cantar o Uno, porque este já estará bem aí, onde quer que estejamos, sempre idêntico a si mesmo e coincidente conosco em cada um de nossos atos, quando suprimidas as contingências do pensamento que ainda nos prende à razão dualista que quer a qualquer custo se preservar hegemonica e ideologicamente bem estruturada no poder, para assim perpetuar o império da loucura por outras vias que não a da transfiguração poética.


Rodrigo Petronio é escritor, autor de Transversal do Tempo (ensaios) e História Natural (poesia), entre outros. Contato: pseudopetronio@directnet.com.br