A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR
OU QUE ARES ANDAM PELA RELIGIÃO?
PAULO MENDES PINTO

Nesta era pós 11 de Setembro (o de 2001, é claro), tomou-se efectiva consciência de como o fenómeno religioso não estava, ao modo positivista de ver a evolução humana, posto de parte.

Habituámo-nos a ver a religião como um aspecto cada vez mais periférico do nosso Mundo Ocidental, um campo retrógrado, ultrapassado; no fundo, o tal ópio do povo que proclamava Marx há mais de um século – mais tarde ou mais cedo, o sentido das sociedades era o esquecimento das religiões, a sua subalternização face a novos desafios da humanidade. E, de repente, aí estava ela.

A afirmação de Malraux, ao dizer que o século XXI seria religioso ou não seria, ganhava foro de plena realidade.

Mas a situação de um certo, e plenamente confirmado, «retorno do sagrado», já havia sido longamente equacionada por inúmeros filósofos, teólogos, antropólogos, entre outros (por cá, basta salientar o livro homónimo em que colaboraram dois investigadores deste Centro: Ana Luísa Janeira e José Augusto Mourão).

Que a tão proclamada morte de deus redundou em ressurreição parece não haver dúvida. Desde os anos sessenta que se assiste a um contínuo e sustentado crescimento de grupos religiosos até então quase inexistentes.

Mas este retorno do sagrado a que é que corresponde, no quadro dos saberes? É aqui que nos centramos. Por exemplo, nos tais anos sessenta a que me refiro, viu-se o(s) meio(s) católico(s) portugueses a afirmarem a necessidade de um local, de uma instituição, que desenvolvesse o trabalho e a reflexão no campo teológico. Esta busca terminaria com a criação da Universidade Católica e com a instituição de um curso de licenciatura que não se destinava apenas ao sacerdócio.

Actualmente, a situação parece paralela no sentido em que muito de religioso se busca e se vive, mas é significativamente diversa quando auscultamos a necessidade que as pessoas sentem em investigar, em obter conhecimento sobre as religiões.

De facto, a licenciatura que na Universidade Católica se criou para dar formação em teologia católica tem tido poucos alunos. As várias escolas e seminários protestantes estão a viver difíceis dias, quase não tendo alunos (algumas fecharam mesmo). Por fim, a única licenciatura que existe em Portugal e que se centra sobre o fenómeno religioso fora de qualquer campo confessional, a licenciatura em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, também corre o risco de fechar as portas por falta de alunos.

Ora, este quadro parece-nos claro: vive-se a religião, vivem-se as práticas religiosas, mas essa vivenciação em nada implica uma busca de conhecimento (nem conhecimento teológico, confessional, nem conhecimento científico).

* *

Como podemos compreender melhor este quadro? Vejamos mais alguns tópicos de reflexão.

Em Portugal está consignada a liberdade de ensino no que concerne ao espaço confessional na escola. De facto, e trata-se de um princípio constitucional, todas as confissões se podem candidatar a um espaço escolarizado, no ensino secundário, para uma disciplina de «Religião e Moral».

Há cerca de dez anos que o mundo evangélico efectivou esse direito, a par com a tradicional prática de católicos.

Na recente reforma curricular, ambos os universos religiosos antes apontados, católicos e evangélicos, repudiaram a saída da disciplina confessional do espaço curricular. Isto é, apesar de a disciplina já antes ser opcional, o facto de ela sair da formulação base do curso secundário mereceu o seu desagrado.

Porquê esse desejo tão forte de manter a religião dentro do espaço escolar? Será que só se consegue manter esse espaço através da força dos decretos, dos diplomas legais?

Ora, as confissões em causa parecem não perceber que desta forma apenas estão a perpetuar uma cada vez mais fraca relação com a sociedade civil. A religião não é aceite por todos, é imposta. Torna-se guetto.

Obviamente, só vão a essas aulas os que já estão confessionalmente integrados. Ora, grande parte da população portuguesa não está, de facto, confessionalmente integrada. Isto é, grande parte da população nacional não fica com cultura religiosa alguma a não ser, eventualmente, a transmitida pelos media.

Mas mais. E onde estão todas as sensibilidades que não encontram na mediatização a sua forma de expansão? Enfim, quer umas quer outras, estão confinadas a si mesmas, numa não dinâmica de conhecimento que resulta no quadro antes apontado.

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Podemos percorrer mais um campo de reflexão para melhor compreender a situação.

Recentemente, já em Setembro deste ano de 2003, teve lugar uma importante reunião ecuménica. Mais uma vez, a 17ª, a Comunidade de Sto. Egídio, reuniu um grupo significativo de religiosos ou simples interessados pelo fenómeno religioso, para debater temas próximos do ecumenismo e da sã convivência religiosa. Desta vez o local escolhido foi Aachen / Aix-la-Chapelle, na Alemanha, e o tema central é «Entre guerra e paz, religião e cultura encontram-se».

Ainda há pouco tempo, o palco foi Portugal, com especial acolhimento da Fundação Mário Soares – figura pública que também participou no encontro que agora decorreu.

Desde 1968, no clima do pós Concílio Vaticano II, que esta comunidade realiza estes encontros. Têm todo o sentido num mundo que actualmente cada vez vê mais a religião como uma parcela significativa da guerra e dos fundamentalismos, e cada vez menos como uma parte e peça fundamental da paz e das culturas humanas.

Na antiga capital de Carlos Magno, lá se encontram líderes religiosos de muitas confissões, centenas deles, entre os quais alguns iraquianos que equacionam profundamente o destino do seu pais.

Mas a situação destes encontros leva-nos ao equacionar de um problama que nos parece central: qual o peso destes encontros na verdadeira vida das confissões e dos seus crentes. O que destes tão bem intencionados encontros passa para os efectivos líderes religiosos, para a sua relação com os crentes de outras religiões, para a relação entre credos que, de facto, deveria ser pacífica e garante da paz entre as nações?

Já 17 vezes estes encontros se deram. Já muita gente morreu em nome de Deus desde então.

Que falha? Estaremos perante uma aberta tentativa de ecumenismo, ou estaremos simplesmente perante um grupo pioneiro que pouco eco tem dentro das suas confissões?

Mas mesmo a escolha de Aix é complicada pelo peso simbólico que tem. Sede do poder da Carlos Magno (na passagem do século VII para o IX), aí se centrou administrativamente a nascente luta entre o Islão e a Cristandade (O Islão chega à Península Ibérica em 711). Nessa época, ecumenismo era palavra que nenhum significado teria. A guerra pela expansão da fé era um dado adquirido por ambas as partes.

Mas é também na corte de Carlos Magno que terá sido forjada a famosa Doação de Constantino que legitimava o domínio temporal do papado sobre parte dos territórios da Península Itálica, abrindo assim caminho para um centro da Igreja cada vez mais desejoso de poder temporal, como qualquer efectivo reino.

Carlos Magno, pela sua chancelaria, dava ao papado a legalidade territorial através de um documento falso feito cinco séculos depois da sua data oficial; o papado dava ao monarca franco o Império, o título imperial que receberia em coroação na noite de Natal do ano 800.

Muito se começava a jogar religiosamente no campo do poder territorial e militar. A noção de cristandade consolidava-se nesse quadro. O Islão era o inimigo a aniquilar, antes que nos aniquilasse.

É complicada a reflexão sobre a cultura da paz numa cidade como esta. Será que estas buscas de ecumenismo, à imagem da cidade onde decorreram, estão votadas ao fracasso?

De facto, somos permitidos a tal equação. Que fazer, que significado prático encontramos em acontecimentos como este? Pegando no ponto anterior, parece que as religiões saem do tal guetto nestes momentos ... mas, e os restantes momentos dos restantes anos que vão correndo? Os anos dos crentes, das pessoas?

* *

Inevitavelmente, a religião está aí, está actuante, clama por espaço e tempo, mas o lugar que lhe entregamos é, simplesmente, o dos fundamentalismos.

Levar, confinar a religião ao puramente religioso é esquecer que durante milhares de anos tudo teve no elemento religioso o mais forte englobante, o mais forte elemento de criação de identidades.

Quando um fenómeno religioso não é integrado, desenvolvem-se fundamentalismos. Destes, estamos já cheios.

Mas é o próprio horizonte das religiões que cimenta esse seu local. São muito poucas as iniciativas efectivamente de abertura religiosa e de apresentação pública de princípios.

Significativamente, muitos dos movimentos religiosos com maior expansão de crentes e praticantes, não surge na escola, não toma parte nos programas trelevisivos constitucionalmente instituidos, não tem lugar, nem nas cerimónias protocolares, nem nos encontros inter-religiosos.

Sim, porque, se há um grupo enorme de crenças que se colocam numa situação de fecho, outras há que quase nem se sabe que existem.

Efectivamente, nada há de errado nessas duas posturas. O que não está certo é que, civicamente, a religião, enquanto fenómeno humano tranversal, está cada vez mais afastada das pessoas, da cidadania, cada vez mais de costas voltadas para o mundo.

Os fundamentalismos são isso: uma não integração, pela não aceitação, do mundo.