A PALAVRA E O SILÊNCIO: O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR
A maior ou menor capacidade de nomear o mundo define a maior ou menor perplexidade e terror em relação ao mesmo. No momento em que as coisas são nomeadas, rotuladas, deixam de ser assustadoras e passam a fazer parte do conhecido, do familiar. O processo de apreensão do mundo pela palavra, contudo, tende a revestir a realidade com uma opacidade embrutecedora que anestesia a nossa percepção e nos induz a ver como óbvio, banal, algo que em sua essência é mágico e misterioso. Dentro desse universo, onde a palavra deixou de habitar o mais íntimo da alma humana e perdeu, para usar uma expressão de Guimarães Rosa, a sua condição de “porta para o infinito” (1), a literatura constitui um elemento de transcendência, um meio de quebrar os condicionamentos limitadores do cotidiano e (re)instaurar o sentido “místico” das coisas. A palavra literária, então, é aquela que está mais próxima da palavra primordial, do primeiro dia da criação, pois está plena da humildade e do cuidado daquilo que se aproxima do mundo para melhor entendê-lo; não para neutralizá-lo. Estabelece-se, assim, uma oposição entre a palavra que está por tocar algo que não “entende”, e a palavra que já rotulou, “entendeu”, e remete o “entendido” para o prosaico e o esquecimento. Através dessa concepção algo metafísica da palavra é possível ver conexões entre a literatura e a tradição esotérica, uma vez que, como lembra Pierre Riffard, a maior parte das cosmogonias ocultas são descritas em termos lingüísticos, seja atribuindo a Criação a um Verbo criador, a um som primevo ou a uma língua primordial, seja expressando-se através de uma linguagem ou escrita consideradas divinas (2). Não existe nenhum esoterismo que não atribua um valor simbólico à palavra, que não busque a divinização através do nome e de uma etimologia oculta. O processo iniciático, que se efetua pela quebra do silêncio, através da atribuição de um nome místico ao neófito, encerra-se sempre com a menção do Nome de Deus, com a recitação dos mitos e com a entoação dos sons místicos, isto é, fazendo da palavra a ligação com o Cosmos. Essa concepção esotérica da palavra encontra sua ramificação mais paradigmática na doutrina religiosa, mística e ocultista denominada “Doutrina do Nome”, segundo a qual o nome é a própria coisa e atribuir um nome equivale a conhecer, compreender, dominar. Pragmática, a “Doutrina do Nome”, através do princípio da simetria, pressupõe uma “Prática do Nome”, a qual se desdobra em planos adivinhatórios (onde a natureza de algo é passível de ser revelada a partir do valor das letras da palavra que o designa); hermenêuticos (a arte combinatória de letras e números, por exemplo); iniciáticos (onde é dado ao buscador os meios de conhecer de cor os textos sagrados e os rituais tradicionais); e mesmo artísticos, onde a “Prática do Nome” é feita através da caligrafia, do desenho na areia, da eufonia e, uma vez mais, da literatura. Mas não qualquer literatura; somente aquela que busca devolver à palavra o seu sentido original, seu caráter iniciático e propiciatório, o qual induz o leitor a um estranhamento com o mundo, com o que está (aparentemente) decodificado, e, assim fazendo, restabelece o mistério das coisas e instaura o espanto do ser que se vê “sendo”. Clarice Lispector parece ter essa concepção da literatura (e do mundo, uma vez que para ela ambos estão intimamente ligados) e fazendo da palavra um meio de apreensão e revelação do mundo, repete o processo da Criação: Clarice brinca de ser Deus. Dentro dessa linha de pensamento, é possível estabelecer pontos de contato entre a atitude de Clarice diante da linguagem e aquela dos místicos cabalistas, os quais concebem a linguagem como o instrumento de Deus (3). Assim como Deus, para os cabalistas, não é uma entidade perfeita e precisa constantemente da ação de suas criaturas para a sua afirmação, bem como para a manutenção e aperfeiçoamento de sua obra, os personagens clariceanos parecem intuir uma imperfeição, um desequilíbrio no mundo e em sua fúria rotuladora buscam (re)instaurar a harmonia. No entanto, se a palavra é apaziguante (na medida em que dá um estofo concreto ao mundo), o equilíbrio que ela proporciona é precário e provisório, e a consciência dessa precariedade constitui o elemento deflagrador da escrita de Clarice; escrita essa que tangencia sempre o limiar do indizível, da não palavra, e que revela sempre a inquietude do sujeito que infere que a realidade não é verbal e que o mundo contém algo que as palavras não conseguem enunciar. A percepção do caráter indizível do mundo e do fracasso da linguagem traz para o texto de Clarice uma certa atmosfera angustiante, que não conta nem ao menos com o artifício tranquilizador da ironia, uma vez que esta pressupõe uma compreensão prévia de uma determinada situação, compreensão que parece ausente em Clarice, na medida em que o predominante em seu texto é justamente o sentimento de perplexidade perante as coisas. É como se ela estivesse permanentemente (re)descobrindo o mundo, daí o estranhamento com as pessoas, com as coisas do mundo, com os objetos do cotidiano. Essa perplexidade com as coisas, que é quase um não saber prosseguir (uma vez que imobiliza o sujeito), reveste-se de um tom metafísico ao longo de toda a obra clariceana, e mesmo em seus textos mais “tradicionais”, onde a estrutura dos gêneros não parece tão ameaçada, Clarice aborda o mundo por um viés “torto”, esquivo, fazendo com que o que é conhecido, óbvio, adquira um tom inaugural insuspeitado. No entanto, é justamente nesse processo de nomeação quase abstrato, onde a linguagem chega a “se falar”, que a palavra entra em crise e, por assim dizer, fracassa, pois para o fim que Clarice se propõe as palavras, banalizadas pelo uso comum, já se mostram gastas a priori. É necessário, então, inventar um novo léxico, o qual, paradoxalmente, só se torna possível através do seu avesso, da não palavra, do silêncio. Por esses dois caminhos contraditórios viaja Clarice. Mas, se são contraditórios, não são excludentes, e por vezes quase chegam a se tocar, quanto mais não seja, pela afinidade que ambos apresentam com o pensamento místico, pois se, por um lado, a via da nomeação, o texto clariceano se aproxima da “Doutrina do Nome”, da cabala (mas também da física quântica (4)), por outro, pela via do “esvaziamento” da linguagem, pela busca da apreensão do instante-já, ele se avizinha de algumas doutrinas orientais como o Budismo e o Taoísmo, por exemplo, nos quais, como bem lembra George Steiner, “(...) imagina-se que a alma ascende dos grosseiros obstáculos da matéria, através de domínios de percepção que podem ser transmitidos por linguagem sublime e exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo (5).” O silêncio, em Clarice, tem tanto valor quanto a palavra e constitui, de certo modo, o fim último e utópico de sua escrita, no entanto, ela sabe que se o silêncio é a expressão máxima do indizível, é somente através da palavra que se chega a essa conclusão:
Ao contrário do Budismo, contudo (e isso não contradiz o que eu disse antes), a matéria, posta em foco pela palavra, não está reduzida, no mundo clariceano, a um “grosseiro obstáculo”. Ao contrário, ela tem tanta carga de mistério quanto o “espírito”, e talvez seja mesmo mais fantástica, na medida em que se constitui no mistério evidente e palpável, enquanto que o espírito reside no reino do inefável, do abstrato. A consciência disso faz com que o texto de Clarice interaja com as coisas, com os objetos, e deles faça parte. Por essa razão, parece-me equivocada uma análise como a de Luis Costa Lima, que vê na obra de Clarice uma desarticulação com a totalidade concreta (7). O que ocorre é justamente o contrário: Clarice adere ao concreto, devolvendo às coisas toda a sua carga de materialidade imperativa e onipresente e, nesse sentido, a fala da personagem Ângela, em Um Sopro de Vida, revela-se como uma síntese da percepção que Clarice tem do mundo:
Como se vê, em Clarice Lispector o próprio ato de observação do objeto é uma experiência mística, na medida em que é a partir do objeto que se constrói a consciência dos personagens: o observador se observa através do objeto observado e assim atinge a iluminação. Obviamente, essa experiência, que não é vivida pela maioria das pessoas, necessita de uma mediação para que seja compreendida pelo leitor; mediação essa que se dá pela palavra transformada, isto é, pela palavra despida das limitações impostas pelos seus significados convencionados. De Clarice, então, se pode dizer o que George Steiner diz de Mallarmé: “(...) faz das palavras atos, não fundamentalmente de comunicação, mas de iniciação a um mistério particular, (...) usa palavras correntes em sentidos ocultos e enigmáticos; nós as reconhecemos, mas elas nos dão as costas (9). Emblemático desse processo de apagamento dos sentidos atribuídos às palavras (e também do processo de fusão com o objeto), o conto-ensaio O ovo e a galinha (10) se constrói a partir do jogo de linguagem estabelecido entre o objeto “ovo” e a palavra “ovo” que o nomeia, numa aproximação lúdica e simultânea da linguagem infantil se esboçando, e da mais abstrata especulação filosófico-metafísica, na qual se busca incessantemente, através da reiteração do nome, definir o objeto, sem que, no entanto, se chegue a atingir essa meta, já que quanto mais se acumulam as definições, mais se distancia a essência do objeto. Paralelamente a essa fúria aproximativa do objeto (11), contudo, há a preocupação do narrador em não entendê-lo, pois se o entender estará errando. A linguagem do conto, então, não se propõe a elucidar o mistério do ovo; quer apenas mostrar que é mistério, e o que se delineava como um processo de apreensão do objeto, no início do texto, no final revela-se como o desapego supremo, “pois o ovo é um esquivo”, e somente quando deixado livre, “impensado”, é que pode se revelar em sua verdadeira essência. O círculo que leva da palavra ao silêncio, e deste novamente para a palavra, encontra nesse conto um ponto de equilíbrio, como se ambos, palavra e silêncio, cada um em um “momento” da circunferência, em um dado momento “escorregassem” para um mesmo ponto do círculo, finalmente se encontrando. Nesse sentido, esboça-se, aqui, um processo de aproximação da música, através do artifício do contraponto, o qual atingirá o paroxismo em Água Viva, onde se evidenciam, explicitamente, aqueles traços típicos da escrita de Clarice que já estavam presentes em toda a sua obra anterior mas que aqui aparecem despidos de toda amarra de gênero ou paradigma que limite o sentido: a recusa da narrativa e a busca do silêncio, o qual, se mais do que inapreensível, é incomunicável, ao menos é passível de ser “tocado” através da aproximação daquilo com que mais se parece: a matéria viva, representada em suas formas mais reduzidas e absolutas, como a medusa, a água-viva. O orgânico-primordial, então, confunde-se com o Absoluto, com o espiritual, e sob esse prisma, o elemento “água”, presente ao longo do texto, longe de se constituir unicamente num sentido químico, agrega a si o sentido a ele atribuído pelos antigos alquimistas: água como “um princípio de fluidez, fertilidade; umidade ao mesmo tempo mórbida e geradora” (12), elemento, enfim, mais sutil que a matéria e a linguagem, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho; água como elo entre o transcendente, o silêncio; e o concreto, a palavra. Essa fluidez de água, da qual o texto busca se aproximar, é também a fluidez polifônica de uma peça musical, pois em Água Viva os temas nascem e se repetem num jogo de variações e fuga análogo ao da música. Assim como a música nada mais é do que uma moldura para o silêncio, uma maneira de tornar perceptível a ausência do som, o texto de Água Viva é um longo adágio, um andamento lento e contínuo para além das fronteiras da palavra:
Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água Viva talvez seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao mesmo tempo em que constitui o auge do paradoxo que funda sua escrita (só através da palavra é que o silêncio pode ser dito), também é o momento de resolução do paradoxo, através da abdicação do desejo de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém, passa a ser, simplesmente, sem explicações:
Oposto à idéia de narrativa, de história por contar, esse minimalismo conceitual põe a nu toda o estranhamento e a singularidade do texto de Clarice Lispector, o qual extrapola a condição do meramente literário para atingir o status de metafísica, cosmogonia oculta. Nesse sentido, criando uma obra que postula seus próprios conceitos e inventa seus próprios paradigmas, Clarice Lispector se coloca, conscientemente, à margem de toda e qualquer tradição literária (15), e se inscreve na estirpe dos antigos alquimistas, que viam na matéria o pretexto para atingir o infinito. 1 Rosa usa essa expressão em entrevista concedida a Günter Lorenz, em 1965, e reproduzida no 1º volume de sua Ficção Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p.47. 2 Cf RIFFARD, Pierre. Dicionário do Esoterismo. Lisboa, Teorema, 1993. Ver, principalmente, a parte introdutória, pp.13-14. 3 Cf. BALBUENA, Monique. Poe e Rosa à Luz da Cabala. Rio de Janeiro, Imago, 1994, p.175. 4 Conforme a física quântica, o simples ato de observar as partículas subatômicas afeta a estrutura das mesmas, de modo que as propriedades de qualquer objeto só podem ser entendidas nos termos da interação com o observador. Cf. CAPRA, Fritjof. The Tao of Physics. Wildwood House, 1975, p.71. 5 STEINER, George. O repúdio à palavra. In:__. Linguagem e Silêncio. São Paulo, Cia das Letras, 1988, p.30. 6 LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H.. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990, p.180. 7 Apud SÁ, Olga. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, Vozes, 1993, p.71. 8 LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p.101. 9 STEINER, George. Op. Cit. p.46. 10 LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In:__. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991, pp.56-57. Esse conto foi lido por Clarice num Congresso de Bruxaria, em Bogotá, o que demonstra o quanto o místico, o mágico, esteve presente em sua vida. Cf. SÁ, Olga. Op. Cit. p.214. 11 Essa fúria aproximativa do objeto encontra um paralelo na linguagem matemática, especialmente no cálculo infinitesimal, que é um sistema de abordagem das grandezas incomensuráveis, dos problemas matemáticos que não admitem soluções inteiras. 12 Cf. a introdução ao Livro das Figuras Hieroglíficas, de Nicolas Flamel, alquimista francês do século XIV. Rio de Janeiro, Editora Três, 1984, p.22. 13 LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de janeiro, Francisco Alves, 1993, p.52. 14 Idem, ibidem. P.33. 15 Um exemplo da pouca importância que Clarice dava à inserção de sua obra em alguma tradição literária é a seguinte declaração, feita durante uma entrevista: “Já ouvi me dizerem, para agradar: “Você faz parte da literatura brasileira”. Mas que inferno, e eu lá desejo entrar em alguma literatura do mundo?” Apud SÁ, Olga. Op. Cit. p.344.
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