PEDRO DE ANDRADE
O EFEITO PESSOA E A SOCIOLOGIA DOS CONGRESSOS DIGITAIS
Formalmente, este texto não é apenas um texto, mas apresenta-se como dois textos articulados entre si. Assim sendo, deve-se nomear, com mais propriedade, bi-texto ou texto-espelho. O bi-texto desvela-se enquanto entidade híbrida, fronteiriça, dissolvida e dissolvente, na qual nenhum texto predomina, domina ou se entende como uma única domus (casa) da linguagem. Igualmente, consiste numa matéria bífida, na medida em que mobiliza duas línguas, os idiomas estilísticos próprios de cada um desses dois textos. Para além disso, assume-se como texto duofónico que reflecte o mundo, antes de reflectir sobre o mundo. Desta feita, não se confunde com o hipertexto, já que o texto-espelho origina-se amiúde nas dicotomias, para melhor as desconstruir, e não tanto em tricotomias (redes de três pólos) ou pluricotomias (teias de múltiplas polaridades). Quando muito, só pode ser entendido como caso particular do hipertexto, se o considerarmos estruturado numa rede especular, aquela figura de rede hipertextual formada apenas por dois nós, onde as referências se desrealizam na reflexão ad perpetuam desses dois pólos.

Daí que, substantivamente, não nos interesse discorrer sobre um só tema, mas acerca de dois assuntos intimamente relacionados. O próprio título deste ensaio é duplo, encerrando dois títulos (e não sub-títulos) aos quais subjazem duas temáticas. De um lado desta rede especular do bi-texto, falaremos do processo que nomeámos Efeito Pessoa. De outro lado do texto-espelho, aplicaremos a figura epistemológica da reflexividade sociológica, ao procurar meditar, neste ciber-congresso, sobre a possibilidade de uma Sociologia dos Congressos Digitais, em diálogo com a reflexão inicial sobre o Efeito Pessoa.

1. O Efeito Pessoa.

Para discutir a pluralidade do poeta e exegeta Fernando Pessoa, nada melhor do que o ambiente interdimensional da Internet. Nesta rede que tricota todos os tecidos sócio-simbólicos, e mais intensamente do que no mundo não enredado, o efeito é sempre qualquer coisa que surge depois de um evento ou trabalho feito cada vez mais no ciberespaço (e-feito). Para além disso, a cada feito e-feito corresponde um certo e-feitio.

Nesta óptica, o feitio que subjaz a Pessoa é, de raiz, reticular. Dito de outro modo: ainda antes de Julia Kristeva ter falado da intertextualidade, Fernando Pessoa emergiu como um dos mais notáveis percursores (aqueles que conduzem os per-cursos) da Internet, e não apenas do hipertexto. Senão vejamos: a sua personalidade múltipla e intertextual encontra hoje uma confirmação insuspeitada no Efeito Pessoa, particularmente visível no ciberespaço. O Efeito Pessoa é a capacidade, para um infonauta, de construir e viver diversas personalidades digitais através da ciber-escrita, ou escrita efectuada no ciberespaço. Cada uma destas e-personalidades prismáticas encerra uma linguagem plural e uma intertextualidade nativa. Um tal processo de desdobramento pessoano da pessoa autora, ou heteronímia digital, executa-se a partir da possibilidade, concreta e prática, de assinar várias moradas electrónicas de e-mail, ou de manter diversas web pages, ou ainda de participar em múltiplos chats e foruns de discussão, e de edificar um estilo próprio em cada um desses locais da rede (cf. a fig. 1).


2. O ciber-congresso.

Articulemos em seguida o efeito Pessoa, assim circunscrito, ao ‘Discursos e práticas alquímicas’ Colóquio internacional V, que tem lugar integralmente na Internet. O objectivo é contribuir para esboçar um arquipélago de interpretação sociológica que se ocupe das reuniões científicas e culturais residentes no ciberespaço.

Antes de mais, neste colóquio virtual sobre alquimias, passa-se, entre outros fenómenos, alguma alquimia das e-personalidades dos conferencistas digitais. Este processo é fundado, desde logo, na própria cumplicidade dos participantes, fundida em torno de um projecto comum que decorre na rede. Uma tal promiscuidade, em certas condições, pode evoluir para uma verdadeira identificação entre esses infonautas, ou mesmo enveredar na direcção de uma identidade (efémera) comum.

Nesta perspectiva, o congresso reúne uma micro-comunidade global que concorre, entre outros alvos, para a produção da e-democracia cultural, a partir de diferentes estratégias concretas de participação, como por exemplo as seguintes.

Em primeiro lugar, cada um de nós pode assumir a pele virtual de múltiplos conferencistas intervenientes, se utilizarmos o Efeito Pessoa. Para tal, basta usarmos, num fórum de discussão, dois ou mais nomes diferentes, ou enviar duas comunicações ao congresso, por exemplo uma com o nome original e outra com um pseudónimo ou com um heterónimo. A heteronímia digital pode assim ocorrer na escrita de cada ‘autor-actor de congresso’.

Em segundo lugar, no trajecto de um congresso deste tipo, somos capazes de saber, simultaneamente, o que acontece na generalidade dos grupos de trabalho do encontro. Esta ubiquidade do ciber-congressista fá-lo entender melhor o colóquio como uma totalidade. Ou, pelo contrário, permite-lhe compreender mais profundamente cada debate, se, ao mesmo tempo, se procurar informar sobre os temas a ele inerentes, na própria WWW.

Em terceiro lugar, é possível usufruir mesmo do poder de escamotear, como este ciber-congresso pioneiro o faz, as presidências de mesa de certos colóquios que usurpam a criatividade dos participantes. De facto, a exibição das comunicações em linha permite a sua crítica incessante. Depois, na web page de um colóquio digital é corrente a apresentação mais personalizada dos congressistas. Para além disso, um ciber-forum sugere a adaptação e mudança contínuas, imediatas e aliciantes dos temas a debater, de um modo mais global do que um evento (mesmo um ‘congresso internacional’) localizado numa sala concreta desligada da rede. O que mais se aproxima destas virtualidades planetárias, incorporadas e sedimentadas no congresso digital, é a video-conferência empreendida no congresso ‘físico’. Finalmente, o ciber-congressista assume-se, no colóquio reticular, como um sujeito parcialmente co-organizador do mesmo, na medida em que colabora, interactivamente, na modificação tanto dos conteúdos como nos respectivos timings parciais, o que não deixa de influir na agenda do acontecimento no seu todo. Desta forma, o congressista digital não se reduz a um mero fornecedor de conteúdos, como se verifica correntemente nos colóquios tradicionais.

No quadro deste acesso abrangente à pluralidade da informação por parte da generalidade dos participantes, torna-se muito mais fácil exercer uma ciber-opinião genuína, ou seja, a emissão de juízos no ciberespaço, seriamente informados. Assim sendo, a democracia cultural aparentemente alarga-se, no quadro e no território da democracia cultural digital.