ARTE SAGRADA NA BIBLIOTECA COSMOS: 1. A Biblioteca Cosmos no contexto social da época Em meados da década de 30, dez anos passados sobre a instalação da segunda República (1926), Portugal despertava para a investigação científica, tal com ela já era praticada desde algumas décadas no resto da Europa. Um grande número de investigadores que havia realizado formação no estrangeiro regressara a Portugal dando início um movimento de renovação da ciência portuguesa. São exemplos disso, o Centro de Estudos de Física da Faculdade de Ciências de Lisboa e o Instituto Bento da Rocha Cabral. Neste período, o apoio governamental à actividade científica é já uma realidade, e observa-se até a preocupação de se criarem corpos de elite em diversos domínios da ciência. Porém, a política cultural do Estado Novo não promove a difusão do conhecimento científico à população, podendo-se mesmo dizer que existe uma mentalidade dominante que a desmotiva, como são exemplo algumas citações usadas por Rómulo de Carvalho (1986) na sua História do Ensino em Portugal: «Em 1927 a escritora Virgínia de Castro e Almeida, considerando que existiam então em Portugal 75% de analfabetos, dizia no jornal O Século, que “A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos”. Em alusão aos rurais que aprenderam as primeiras letras, pergunta a escritora, e responde: “que vantagens foram buscar à escola? Nenhumas. Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esqueceram as letras e voltam à enxada”. João Ameal, escritor e historiador muito cotado na época, deixou escrito: “Portugal não necessita de escolas (...) Ensinar a ler é corromper o atavismo da raça.”» É neste cenário que um conjunto de intelectuais portugueses anima um movimento de difusão cultural de que a Biblioteca Cosmos é um dos sintomas. Nas palavras de Bento Jesus Caraça (1901-1949), director do projecto, em prefácio ao Panorama da Ciência Contemporânea, a Biblioteca Cosmos visava «um conjunto de conhecimentos que ao homem-comum, ao homem-da-rua, são indispensáveis para adquirir aquela maneira científica de olhar as coisas sem a qual será sempre deficiente o exercício da cidadania.» (CARAÇA, 1947). Bento Jesus Caraça, professor da Universidade Técnica e personalidade com grande destaque na vida cultural da época, procurou com a Biblioteca Cosmos estimular entre os jovens um conjunto de interesses que o Estado parecia manter exclusividade de alguns. Interesses que fossem «o índice de reais serviços prestados aos seus leitores e, através deles, a uma causa pela qual lutamos há muitos anos: - a criação de uma mentalidade livre e de tonalidade científica entre os cidadãos portugueses.» (CARAÇA, 1947). A Biblioteca Cosmos publicou cerca de uma centena de obras, algumas compostas por mais de um volume, constituindo um todo suficiente para satisfazer os apetites dos jovens, e não só, nos mais diversos ramos do saber. A colecção era composta por sete secções: 1ª Secção - Ciências e Técnicas; 2ª Secção - Artes e Letras; 3ª Secção - Filosofia e Religiões; 4ª Secção - Povos e Civilizações; 5ª Secção Biografias; 6ª Secção Epopeias Humanas; e 7ª Secção Problemas do Nosso Tempo. Lopes Graça e Rómulo de Carvalho são exemplo de outros valores da elite cultural da época que se associaram ao projecto, dando-lhe o prestígio e a sobriedade que conhecemos. Rómulo de Carvalho andava nessa época, como o próprio escreveu, «apaixonado pela História da Química e com a possibilidade de transmitir essa mesma paixão aos alunos do ensino secundário» (RÓMULO DE CARVALHO, 1996). Com a anuência e o interesse de Bento Jesus Caraça, Rómulo de Carvalho iniciou na Cosmos a publicação de um conjunto de volumes que pretendiam historiar o nascimento e os progressos da Química no decurso do tempo. A série começou com A Ciência Hermética, em 1947, que teve o número 118 na colecção. A esse se seguiu um outro, mais volumoso (números 142 e 143) logo no ano seguinte, intitulado O Embalsamamento Egípcio. E por aqui ficou o projecto. Curioso será que daquela que deveria ser a história da Química apenas ficou a história da Arte Sagrada Egípcia. 2. Química: Uma ciência com origens no Antigo Egipto? O fascínio de Rómulo de Carvalho pela cultura egípcia é profundamente notório nos textos que escreveu para a Cosmos, tanto mais que algumas das defesas ao trabalho dos metais pelos sacerdotes egípcios nos parecem de uma liberdade excessiva. Para que se entenda o profundo afecto do autor pela cultura egípcia atente-se nas suas próprias palavras: «(...) parece-nos de fácil aceitação o louvor prestado, nas páginas anteriores, ao saber dos Egípcios.(...)Tem sido costume, mantido de geração em geração, encher todo o passado com o brilho da cultura grega. Ela está presente no pensamento de todos, serve constantemente de motivo a máximas edificantes, a exemplos de toda a ordem, a admiração sem conta e sem medida. Exceptuando as pessoas de cultura mais completa, todos repetem que na antiguidade houve um povo, um só, digno da nossa admiração, povo que esgotou todos os recursos mentais, que pôs em equação todos os problemas, que aperfeiçoou todas as artes. Contudo, se estudarmos a actividade das civilizações que antecederam a nossa, entenderemos que, além da grega, algumas outras avultam esplendorosamente.» O livro intitulado A Ciência Hermética, é aquele que nos suscitou maior interesse, até por se dedicar em grande parte ao conteúdo de um papiro encontrado em Tebas no séc. XIX e cuja proveniência se supõe do século III da era cristã. No texto, que doravante designaremos por papiro X , encontra-se documentada a arte de trabalhar os metais segundo as ancestrais técnicas egípcias que se julgavam para sempre perdidas. Voltaremos ao assunto mais adiante. Uma das questões que também despertou o interesse da referida obra de Rómulo de Carvalho para este trabalho prende-se com o facto de o autor considerar a Arte do Sagrado como a verdadeira mãe da ciência que hoje chamamos Química. Pretende-se aqui discutir as razões apontadas por Rómulo de Carvalho, desta vez evitando os afectos expressos no nº 118 da Biblioteca Cosmos. O autor abre o livro escrevendo que: «A Ciência a que hoje damos o nome de Química chamou-se em tempos remotos, Ciência Hermética, Arte Sagrada, Ciência Divina, Ciência Oculta, Arte de Tote e Arte de Hermes. Todas estas denominações envolveram o estudo primário dos fenómenos químicos numa atmosfera de mistério, o qual, aliás surgiu por si, naturalmente, pela própria índole misteriosa desses fenómenos.» Lembremos que a Arte sobre a protecção de Tote, ou de Hermes, não estava apenas envolta numa atmosfera misteriosa; esse mistério traduzia-se num conhecimento privilegiado e secreto sob o domínio dos sacerdotes dos templos egípcios. Um conhecimento que exigia uma iniciação e um juramento de segredo o iniciado será, para sempre, prisioneiro das forças misteriosas do céu, da terra, da luz e das trevas. Aos perjuros estava destinada a responsabilidade perante Moth, deus do silêncio. E para que se entenda o significado dessa responsabilidade acrescente-se que Moth tem origem no vocábulo hebraico que significa «morte». E aqui se pode encontrar a primeira diferença entre o saber da Arte Sagrada e aquele com que se prende a Química. Esta última desvenda e dá a conhecer, junto com as outras ciências, os fenómenos e as Leis que regem a Natureza e o Cosmos. A Ciência Moderna tem um público que vai muito além de um conjunto de iniciados; é um conhecimento que se aprende e se comunica nos mais diversos espaços: a escola, o museu, etc. Os químicos sempre se esforçaram por dar a conhecer as suas novas descobertas; debatem-nas em congressos, defendem-nas perante os seus pares e nunca a ciência pretendeu estar envolta em mistério ou segredo, ainda que muitas vezes o homem dela se tenha aproveitado para fazer a guerra e dominar outros povos. Mas daí podemos apenas concluir que, no seu íntimo, o indivíduo humano será sempre mais medíocre do que o conhecimento que possui. Na justificação da equivalência que atribui aos conhecimentos acima referidos, Rómulo de Carvalho faz uso de duas expressões que parecem em si ser a total contradição da Química, tal como a conhecemos desde o século XVIII: «A Química recorda sempre as artes mágicas, as bruxarias tenebrosas, os sonhos deliciosos das fadas. Permite admitir a realização de quanto é estranho e inverosímil, a transformação do metal vil em ouro refulgente, a preparação do líquido que se bebe e nos concede a vida eterna, a maçã que se trinca e torna a menina, que era triste e feia, na mais alegre e bela de todas as meninas.» «Criar é a qualidade específica da divindade. Se outros seres pudessem, porventura, criar, deveriam tamanha graça à benevolência do deus que lha tinha concedido. O que se diz do criar dir-se-á do transformar. Transformar a matéria é criar-lhe propriedades diferentes e, portanto, novas. Isso competirá igualmente à divindade.» A primeira, atribui à Química objectivos de riqueza, beleza, e juventude. Não é certo que viveríamos mais felizes num mundo em que todos fôssemos mais ricos, mais belos e eternamente jovens, mas assumir estes como valores sociais é profundamente pobre e assenta numa base de total discriminação civilizacional; não parece que sejam estas as razões porque os jovens acorrem hoje à ciência. Mas também não o será pelo que está escrito na última citação. Homem hábil com as palavras, Rómulo de Carvalho usa aqui a símbolo criar com especial sentido, elevando o cientista ao grau de deus ou pelo menos de sacerdote investido pelos deuses. Contudo, e na estreita racionalidade da ciência, sabemos de Lavoisier que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Num sentido mais abrangente, e juntando-lhe os trabalhos de Einstein, de que a fórmula E = mc2 é a súmula mais explícita, todos os processos químicos do Universo envolvem ou transformações de matéria em matéria, ou de energia em energia, ou de energia em massa e vice versa. Não há portanto espaço para a criação e esta não é uma palavra contemplada pela Química. Em resumo, o que se pode dizer da transformação não se pode dizer da criação e não existe, necessariamente, nos processos químicos o toque do divino. Talvez um dia se venha a provar que esta não é uma verdade absoluta e que os princípios em que se baseia a ciência moderna são obsoletos. Mas enquanto assim não for, reside aqui uma outra diferença entre a Química e a Arte de Hermes. 3. Origens da Arte Sagrada Mas o que é afinal esta arte dos deuses do Antigo Egipto? Onde e como nasceu? Segundo Rómulo de Carvalho «É evidente que o iniciador só poderia ser um deus, um desses deuses que o paganismo ligou à terra e pôs a caminhar ao lado dos homens como se também fossem homens». E aí somos de concordar, afinal toda a construção templária e devota como ela é desenvolvida para isso aponta. A entidade divina a quem mais se atribui o papel de iniciador da Arte Sagrada é Hermes, deus grego que encontra identidade com Mercúrio na mitologia Romana. Mercúrio é o mensageiro dos deuses, em especial de Júpiter, que, para que fosse mais rápido nas suas tarefas, lhe atribuiu asas nos calcanhares e na cabeça. Dos textos existentes que chegaram aos nossos dias, encontramos as primeiras referências a Hermes como patrono da Arte Sagrada, e por isso também designada por Ciência Hermética, nos filósofos da escola de Alexandria . Mas se a Arte Sagrada tem a sua origem no Egipto não é de esperar que tivesse origem em Hermes, deus grego. Nesse sentido, alguns autores apontam para Thot, equivalente de Hermes no Egipto, como o precursor da Arte do Oculto. O nome de Hermes teria então sido usado após a conquista do Egipto por Alexandre . Outro dos nomes que também surge citado como fundador da Arte Sagrada é Phath, chefe da dinastia divida, primeiro rei do Egipto e criador do Mundo, aquele que fez o homem a partir da terra e o moldou com as suas mãos. Pahth é o pai de Râ, o deus Sol. Depois de criar a Humanidade, Pahth abandonou o trono e cedeu-o a Râ, tornando-se este na imagem do pai na terra. A Râ coube o dever de assegurar a continuidade da Humanidade na terra, tal como o expressa a Grande Enéada de Heliópolis. Também a Osíris, descendente de Râ na terceira geração e a sua esposa, Ísis, se tem atribuído a criação da Arte Divina. Infelizmente, a falta de documentação precisa impede-nos de averiguar com clareza o autor das artes do Antigo Egipto. A perseguição decretada por Diocleciano às artes sagradas, em 290 d.C., por um lado, e o incêndio da biblioteca de Alexandria por outro, levaram para as chamas os textos que podiam esclarecer sobre esse assunto. Assim sendo, também não se pode precisar quando foram iniciados os saberes sagrados do Egipto. Segundo Rómulo de Carvalho, podemos remeter para o tempo em «que o homem aprendeu a utilizar-se dos metais, a dar-lhes forma útil, a aquecê-los, a fundi-los, a martelá-los e a aplicá-los segundo o seu interesse». E essa parece ser a hipótese mais credível. 4. O papiro do fogo secreto A designação de Arte Sagrada conhecemos desde os primeiros tempos da era de Cristo, sendo os documentos mais antigos aqueles que incluem o papiro já referido. No início do século XIX, Anastasi, vice-cônsul da Suécia em Alexandria, conseguiu reunir um conjunto de peças e documentos do Antigo Egipto, de valor inestimável, e, entre eles, diversos papiros que em 1828 foram entregues ao Governo dos Países Baixos. Hoje encontram-se depositados no Museu de Leida e são, por isso, conhecidos por papiros de Leida. Entre estes, que abordam um conjunto variado de temas, existe um com particular interesse no que respeita ao trabalho e tratamento dos metais. Catalogado pela letra X é então vulgarmente designado por papiro X. Foi datado como pertencente ao século III d.C., pelo que pertence a uma época já bastante avançada em relação ao apogeu do Egipto. Curioso é que tenha escapado às chamas do Imperador Diocleciano, facto por que nos congratulamos. Não somos indiferentes ao facto de que X representa a grande incógnita universal, o fogo secreto. E por isso, não somos de estranhar que associadas ao papiro X estejam questões para as quais não encontremos nunca resposta. O papiro X mais não é do que uma descrição de técnicas e observações de fenómenos produzidos quer por interesses utilitários quer por natureza contemplativa. Uma análise da Arte Sagrada exclusivamente com base no papiro X podia mesmo levar-nos a crer estar presente uma forma ancestral da Química e remeter o início desta ciência para tempos tão remotos como a fundação do Egipto por Pahth. Mas a verdade é que o papiro X é apenas um entre muitos textos, com abordagens muito variadas e que fazem parte duma mesma forma de construir saber. Berthelot (1827-1907), que no século XIX estudou e traduziu o papiro X para francês pensa que o documento terá sido o caderno de apontamentos de um artífice, cujo conteúdo reúne técnicas de tratamento dos metais, desde os tempos mais remotos até à presença grega no Egipto. O documento é constituído por dez grandes folhas, de 30x34 cm, dobradas em dois no sentido da largura. Das 20 páginas apenas 16 estão escritas, a língua usada é o grego. Fosse o romano e ficaríamos tentados a pensar que as 4 páginas não escritas apenas lá estavam para que o todo fosse XX e o fogo mais pujante. A comprovar que o documento foi escrito após a conquista do Egipto por Alexandre da Macedónia surgem várias referências ao mercúrio e ao cinábrio (minério de mercúrio), substâncias que, segundo se pensa, não eram conhecidas pelos egípcios. O documento é composto por: 75 receitas referentes à Metalurgia, composição de ligas, soldaduras e composição superficial dos metais; 15 formulas de fazer letras em ouro e prata, sobre pedra e sobre papiro; 11 receitas para tingir estofos e mais 10 notícias sobre os minerais cujos nomes constam das receitas anteriores. As últimas são extraídas da obra de Discórdio sobre matéria médica. 5. Rómulo de Carvalho vs Berthelot ou Hermetismo vs Iluminismo Em A Ciência Hermética, Rómulo de Carvalho vai dar especial atenção às receitas que se referem aos metais e, entre estes, as que são sobre o ouro, a obtenção e transmutação de outros metais neste (p.e. prata, cobre, chumbo, etc.), resultado natural das convicções alquimicas do autor. Daremos aqui atenção especial às receitas que dão conta das formas de aumento do ouro por serem aquelas em que a opinião de Rómulo de Carvalho entra em conflito com a tradução francesa do papiro X, de Berthelot. Este faz uso vulgar das palavras “fraude” e “fraudulenta” em tradução do documento original. Por exemplo, na receita 17 escreve: «17 Fraude do Ouro “Misy” e vermelho de Sinope em partes iguais para cada parte de ouro. Quando o ouro deitado no forno tenha adquirido uma bela aparência, juntai-lhe estes ingredientes. Então retirai-o, deixai resfriar e o ouro estará duplicado» . Rómulo de Carvalho considera abusiva a tradução de Berthelot, sugerindo em substituição de fraude a palavra “imitação” e defende-se: «Para os antigos, o ouro não era só aquilo a que chamamos propriamente ouro. Tudo quanto era amarelo era ouro. Ou ouro melhor, ou ouro pior, era sempre ouro. Os operários conhecedores do seu ofício distinguiam o ouro verdadeiro das outras substâncias amarelas, mas isso não impedia que essas substâncias também fossem olhadas como ouro, embora de pior qualidade». E acrescenta: «Não há aqui a ideia premeditada de fraude, aquela que mais tarde se desenvolveu para satisfazer a ganância de alguns falsários da Idade Média. (...) Os outros, porém, os trabalhadores infatigáveis e ilustres, convictos e sinceros, que pretenderam a obtenção artificial do ouro dentro de critérios científicos, não eram falsários; eram homens de ciência». Mas Rómulo de Carvalho não se sente seguro apenas com a defesa e ensaia ainda um ataque a Berthelot: «Parece-nos que Berthelot não procedeu com a cautela necessária ao apreciar aquilo a que chamou, persistentemente fraude. As referências, espalhadas pela sua avultada obra, ao pensamento e à acção dos antigos na tarefa de dar aos metais o aspecto do ouro verdadeiro, são sempre feitas com animosidade. (...) O desenvolvimento espectacular da Ciência durante o século XIX, de que ele próprio foi um dos mais extraordinários representantes, criaram-lhe um determinismo cego, a convicção rígida de que a Ciência abrira caminhos da mais extrema segurança, os caminhos únicos e firmes da Verdade». As palavras proferidas por Rómulo de Carvalho em relação a Berthelot não se devem, pensamos nós, apenas à discordância quanto à tradução do papiro X, mas também e muito e, muito em especial, às palavras escritas por Berthelot no prefácio a Les origines de l’Alchimie: «Os seus primeiros adeptos [da Alquimia] foram alucinados, doidos, charlatães, e este estado de coisas durou até ao século XVIII, quando a verdadeira doutrina substitui a Alquimia». Rómulo de Carvalho, sendo adepto da doutrina alquimista, não pode aceitar a afirmação. Aliás, também a nós parece demasiado abrangente e pouco cuidada, embora própria daqueles que no final do século XIX viveram o esplendor da emergência de uma ciência de base empírica e materialista. De Berthelot, fervorento Iluminista, não se pode esperar outra visão sobre a doutrina que tantas marcas deixou no Renascimento. No entanto, também Rómulo de Carvalho nos parece descuidado ao reconhecer tão prontamente os critérios científicos dos sacerdotes egípcios. Os textos de Rómulo de Carvalho para a Biblioteca Cosmos estão, efectivamente, complementados com um conjunto de afectos que, pensamos serem próprios da própria “ciência” alquimica. Curiosamente, não é assim tão raro vermos os cientistas, esses da ciência moderna, envoltos no mesmo tipo de afectos pelo seu trabalho e pelas suas descobertas. Razão, talvez, para acreditar-mos que não estamos assim tão distantes nos métodos e nas técnicas, talvez apenas nos discursos. 6. Espaço de Culturas e Doutrinas Tivesse a Cosmos continuado e Rómulo de Carvalho teria escrito outros textos de uma outra Química, mais moderna, e possivelmente mantendo para com ela os mesmos afectos. Mas Bento Jesus Caraça, consciente opositor do regime político de então, foi, como muitos outros, demitido do seu cargo de professor universitário, e com isso cessou toda a sua actividade no domínio da divulgação cultural. A Biblioteca Cosmos teve aí o seu termo, e com ela muitos projectos daqueles que, em sacrifício das próprias vidas, se esforçaram por fornecer às gerações mais novas a mais valiosa arma para lutarem pela sua liberdade - a cultura. Talvez resida na cultura a verdadeira Pedra Filosofal. Muitos dos autores da Cosmos não chegariam a saber que, uma vez derrubado o regime, nenhuma elite cultural ou científica viria a retomar tão entusiasticamente as preocupações da Cosmos e que a democracia seria, até aos nossos dias, exercida sem a pureza de uma mentalidade livre e de tonalidade científica entre os cidadãos portugueses. A definição de cultura proferida por Bento Jesus Caraça (1978), numa conferência apresentada em 1933 e intitulada A Cultura Integral do Indivíduo - problema central do nosso tempo, é explícita daquelas que viriam a ser as preocupações da Biblioteca Cosmos: «O seu grau de cultura [de um povo] mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e da facilidade que ao indivíduo se deve dar para viver; pelo modo como nele se compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados os progressos da ciência; pelo modo como entende a organização das relações sociais e pelo lugar que nelas ocupa o homem.» A Biblioteca Cosmos, através dos muitos autores que nela colaboram, ajudou gerações de jovens a lutar por uma expressão de livre pensamento e a sonhar com uma multiculturalidade e uma diversidade que ainda hoje têm um pouco de sonho. É que afinal, também é pelo sonho que vamos. BIBLIOGRAFIA CARAÇA, Bento Jesus (1947), in Panorama da Ciência Contemporânea; Biblioteca Cosmos Gigante, 1ª Secção, Vol. I; Lisboa:Cosmos. CARAÇA, Bento Jesus (1978), Conferências e Outros Escritos; Lisboa. CARAÇA, João (1993), Do Saber ao Fazer: Porquê Organizar a Ciência; Colecção Trajectos Portugueses; Lisboa: Gradiva. GAGO, José Mariano (1990), Manifesto para a Ciência em Portugal; Lisboa: Gradiva. RÓMULO DE CARVALHO (1986), História do Ensino em Portugal; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. RÓMULO DE CARVALHO (1996), A Ciência Hermética; Lisboa: Relógio d’Água.
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