A TRANSMUTAÇÃO NA MEDICINA TRADICIONAL CHINESA (3)
A.M.C. Araújo de Brito

COSMOGONIA
 

FORA DO DAO NASCEU O UM

FORA DO UM NASCEU O DOIS

EXISTINDO O DOIS NASCEM OS CONTRÁRIOS

ESTES ENTRAM NA MANIFESTAÇÃO AO NASCER O TRÊS

O UNIVERSO MANIFESTADO TEM O YIN ATRÁS E O YANG À FRENTE

PELA INTERPENETRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

OBTÉM-SE A HARMONIA.

POR ISSO TUDO DIMINUI E COMO TAL AUMENTA,

AUMENTA E COMO TAL DIMINUI.

DAO-DE- CHING

Diz o Imperador Amarelo : “ A vida tem o número cinco, os sopros, o número três “

Antes da existência do Universo havia o vazio e nesse vazio existia em potência a energia criadora : Ching Sheng Li ( Wu Chi ). Quando houve manifestação surgindo o Yuen Chi primordial, essa energia dividiu-se, ou melhor, cindiu-se para originar duas outras a que se chama Yin e Yang. São esses os sopros que continuamente atravessam tudo o que existe e que na Terra depois de atingir o centro, tendem a regressar ao céu donde provêm. Poderíamos encontrar aqui algumas analogias com outras Tradições : a imagem Bíblica do sopro divino ( RUACH ), na Induísta como o Prana.

Temos assim o número três : o Yuen, o Yin e o Yang, estes últimos já numa forma polarizada. Poderíamos, em linguagem alquímica referir o enxofre espiritual de Filaleuto que engendra o enxofre-Yang e o mercúrio-Yin.

O Um engendrou o Dois.

O UM engendrou o DOIS, logo ficaram TRÊS. Este 3 é a “ Tripla Unidade “ ou “Os 3 Puros em UM” ou os “ 3 Puros “. Relacionam-se com as três energias primordiais que têm correspondência ao nível terreno com o Céu, a Terra e o Homem. Para os Taoístas deístas, estes 3 vão corresponder a uma Trindade de deuses que são estrelas gigantes irradiando para o Universo. O TRÊS engendrou o QUATRO, chamado TAI-I. O TAI – I engendrou o CINCO. Do CINCO nasceram os 10.000 seres.

Verifica-se nesta Cosmogonia uma certa caracterização hologramática, o que veio a ser tomado como tese por Dennis Gabor, David Bohm e Karl Pribam.

A descrição desta “ dança cósmica “ é aproximadamente a seguinte :

A energia ainda indiscriminada Wu ( Vazio ) Chi ( Absoluto ) Ao gerar a Tripla Unidade faz com que esta orbite à sua volta. A Tripla Unidade faz com que as 5 energias primordiais ( Wu Hsing ) também a orbitem. A estrela Polar orbita as 5 Energias e todas as constelações visíveis orbitam-na por sua vez. O Sol orbita a Estrela Polar mas tem na sua órbita o sistema solar.

Aparece-nos assim :

Sistª Solar Sol è Estrela Polar 5 Grandes Dinamismos Tripla Unidade WU CHI ( que é o centro absoluto ) 

A vida tem o número cinco. Das energias Yin e Yang e Yuen nasce o número cinco.

Este número cinco é muito complexo porque envolve todas as leis fundamentais da MTC, bem como o resumo das transformação e transmutação.

WU HING – Os cinco dinamismos 

WU também significa 5. Podemos dizer que é da diferenciação dos sopros que aparecem estes movimentos, já que HING significa dirigir, agir.

É na obra filosófica “ Hong Fan “, cerca de 2000 AC que vamos encontrar a primeira referência escrita destes dinamismos.

As quatro estações do ano definem em traçado plano uma cruz de Santo André, determinadas pelos solstícios e pelos equinócios que se cruzam num centro. As estações, 4 principais e uma de curta duração ( o fim do Verão ) têm as suas próprias características dinâmicas de transformação.

À Primavera corresponde o nascimento, o crescimento interior e depois a manifestação. Ao Verão corresponderá a culminação da manifestação da energia. Ao Outono irá corresponder um período de equilíbrio e depois de retracção.

Ao Inverno corresponderá a fase menor da manifestação ou da coagulação, onde se situa a culminação do inactivo. O “ Fim do Verão “ é uma situação de passagem que acontece nos diferentes ritmos circanuais ou circadianos.

Para os chineses, como para a Tradição, o início do ciclo anual não se vai situar exactamente no Solstício de Inverno ou no Equinócio da Primavera, mas num ponto entre eles. Num calendário lunar-solar, simbólico, de 72 dias em cada estação, teremos 360 dias para o total do ano, se considerarmos as 5 estações. Pode-se então facilmente ter uma representação geométrica correspondente ao círculo.

Verifiquemos agora algumas leis.

1 – Todos os fenómenos da vida são cíclicos e obedecem às suas leis.

2 – Todos os ciclos se regem por cinco dinamismos :

2 de natureza Yang ( crescimento e culminação centrípeta )

2 de natureza Yin ( retracção e culminação passiva )

3 – Há um dinamismo referencial.

4 – Cada um dos dinamismos corresponde por um lado a um movimento particular das energias Yin – Yang, no seu aspecto quantitativo e a uma qualidade ( particularização dos sopros ).

5 – Nenhum dos ciclos é idêntico embora sejam todos análogos.

No Ocidente, porque a cada um destes dinamismos foi atribuído um emblema semelhante ao que existia desde Aristóteles para os 4 elementos, resultou que lhes chamassem “elementos” o que provoca confusão e até alguns disparates.

Os cinco dinamismos são os seguintes representados pelos seus emblemas:

MADEIRA – ( MU ) – Nascimento e crescimento

FOGO – ( HUO ) – Culminação activa

TERRA – ( TU ) - Referência de variação dos sopros

METAL – ( TCHIN ) – Equilíbrio entre as culminações activa e passiva dos

Sopros

ÁGUA – ( CHUEI ) – A grande dissolução ou regeneração dos sopros.

O I Ching representa estes dinamismos, pela sucessiva utilização da dualidade, representando o Yang por um traço contínuo e o Yin por um traço descontínuo, nos conhecidos hexagramas :

Outra referência alquímica liga-se às cores da Obra. Na sequência apresentada, as cores são respectivamente: Verde, Branco, Vermelho, Amarelo, Negro.

Parece-me óbvia a simbologia alquímica.

Os metais são : Estanho, Cobre, Ferro, Chumbo, Mercúrio. Em termos astrológicos temos : Júpiter, Vénus, Marte, Saturno, Mercúrio.

Falemos agora dos “ CICLOS “

O CICLO CHENG ou da gestação – geração

A Madeira alimenta o Fogo // O Fogo gera a Terra // A Terra engendra o Metal // O Metal produz a Água // A Água alimenta a Madeira

Assim a cada dinamismo correspondem duas situações, a de “mãe” do consequente e a de “filho” do precedente.

No traçado de linhas equinociais e solsticiais, as obras antigas representavam a Terra no centro, ou seja no cruzamento das linhas, indicando com isso que a Terra era o dinamismo de referência. A Madeira situava-se a Leste, o Fogo A Sul, o Metal a Oeste e a Norte a Água, respectivamente Primavera, Verão, Outono e Inverno, cabendo à Terra a 5ª estação anual.

O CICLO KO ou de controlo

A Madeira submete a Terra cobrindo-a // A Terra submete a Água represando-a //

A Água submete o Fogo apagando-o // O Fogo submete o Metal fundindo-o //

O Metal submete a Madeira cortando-a.

Ao ciclo de controlo ainda é necessário acrescentar dois processos de domínio :

TCH que é o domínio da “avó” sobre o “neto” através do processo TCHWAN

e

K’UN que é a inibição do dinamismo original na sua 3ª geração. O neto inibe a avó

O traçado geométrico representativo é aqui o do pentagrama. 

Nestes dois ciclos que encerram geometricamente o simbolismo de muitas tradições ocidentais, está contido toda a doutrina que serve para a Medicina externa como para a interna, ou melhor dizendo para as duas Alquimías.

O CICLO HUAN – coesão da terra

Este ciclo vai permitir as (trans)mutações, ou seja a transformação de um dinamismo noutro, o que acontece na Terra

O CICLO RAÊ - É o ciclo da revolta, em que o “neto” agride os seus “avós”

A Madeira insulta o Metal // O Metal insulta o Fogo // O Fogo insulta a Água //

A Água insulta a Terra // A Terra insulta a Madeira.

Falemos agora do CHI ou KI, a energia vital no Homem. No modelo ocidental de Medicina, nunca houve o conceito que agora é enunciado. No Ocidente nada há que se lhe assemelhe, já que a interdependência bio-electro-magnética dos diferentes orgãos não é reconhecida.

O CHI é uma componente do “ sopro “ que já foi referido ( Ching Sheng Li/ Wu Chi ) e divide-se em cinco aspectos todos eles interligados e interdependentes : 

CHI – é energia vital recebida do Cosmos, da Terra.

XUE – ( Sangue ) – O sangue actua como o suporte do Chi e é assim, acompanhando a circulação sanguínea que se dá a circulação energética por todo o corpo humano

JING – ( Essência ) – A essência Jing é a energia que recebemos dos nossos pais, acrescida com a que se obtém dos alimentos e da respiração.

SHEN – ( Espírito ) – É a energia que activa os processos mental e emocional. É “armazenada" na esfera energética do coração.

JIN YE – ( Fluidos ) – É a energia que circula em todos as secreções do corpo humano.

JIN – é o aspecto de maior natureza Yang que através do “ Pulmão “ vai alimentar e “humedecer” a pele e os músculos

YE – é o aspecto de maior natureza Yin que é elaborada no “ estômago” e no sistema “ baço-pâncreas “, vai alimentar e “humedecer” os orgãos internos, os ossos, o cérebro e os orifícios. 

Se imaginarmos um cabo de sisal com a madre e os cordões teremos uma imagem do Chi e das suas 5 funções primordiais :

1) crescimento 

2) controlo da temperatura 

3) defesa contra as agressões patogénicas e psicológicas 

4) controlo do Xue e dos Jin Ye

5) metabolização do próprio Chi, do sangue e dos fluidos 

A circulação desta energia, tal como acontece com a circulação sanguínea e não sendo coincidente com esta, processa-se através da ligação entre muitos pontos que definem trajectos virtuais, sendo uns principais e outros secundários,

Estes trajectos virtuais, no Ocidente, são chamados “ meridianos “, dando-se-lhes o nome de uma das “entranhas” ou “orgãos” onde a energia sofre maior transmutação.

Quando anteriormente falei do Pulmão, do Estômago e do Baço-Pâncreas não me referia às vísceras em si, no conceito ocidental, mas ao conceito energético nelas sediado, que é o conceito chinês. Assim um determinado modelo energético dum determinado orgão ( TZANG ) ou entranha ( FU ), terá um nome específico, como por exemplo, orgão SIN – coração que “ responde ao fogo e tem uma dupla função “ e entranha WEI – estômago que é o “ mar da nutrição “.

Depois desta introdução aos conceitos mais elementares para se poder perceber o paradigma filosófico chinês, vejamos agora o processo de transmutação das duas alquimias, a externa e a interna. Antes porém convirá relembrar alguns dados nem por todos conhecidos. 

O Homem comum ( Tsong Jen ) procurará o equilíbrio e a individuação e ao atingi-las será Tchong Jen, aquele que irá optimizar as condições que se lhe deparam para a perpetuação da espécie e para a sua própria longevidade. Tchong Jen quando é desperto pelo Recto Caminho, pode procurar através da via Alquímica atingir o estado de Jenren, o Homem Verdadeiro ou Homem Autêntico.

A Alquimia externa ( Vaidan ) andou sempre de braço dado com a Medicina e a preparação de elixires acompanhou a da herbologia e da aplicação externa de dinamizadores ou redutores equilibrantes do Chi ( Moxabustão, Acupunctura, Massagem, Magnetização, Ventosas, Compressas de unguentos, Nutrição, etc. ).

A Alquimia interna ( Neidan ) posterior à externa , já vai procurar um modelo de circulação energética interna que gere esse elixir no próprio alquimista.

Utilizando o mesmo tipo de linguagem metafórica que mais tarde o Ocidente veio a adoptar, verifica-se desde logo assimilações da Alquimia interna em relação à externa. Para a Vaidan, o chumbo ( Yin do Yin ) é preparado com o Mercúrio ( Yang do Yang ) para preparar a Obra. Na Neidan, chama-se chumbo ao verdadeiro conhecimento do Dao ( Yang do Yang ) que se encontra escondido no indivíduo e que deve sofrer o Solve et coagula até ser liberto. Mercúrio refere-se à mente individual.

O cinábrio ( Yang ) é outro dos elementos fundamentais para a Vaidan já que contém em si o mercúrio ( Yin do Yang ) que extraído é preparado com o Enxofre numa série de nove ( número mágico, do Oriente e do Ocidente ) operações até que se possa obter o Yang do Yang ou o Yang Puro.

Tanto na Vaidan como na Neidan se afirma a obtenção do magnífico elixir do Retorno ( Huan dan ), que não é mais do que o regresso dos elementos tratados alquimicamente em sucessivas operações até ao seu estado primordial. E isto tanto vale para o cinábrio como para o Homem. E ao pensar nesta busca do Adepto chinês, como por encanto surge-nos o célebre V.I.T.R.I.O.L.

Para terminar falemos agora da acupunctura.

Dos 12 Tching Tcheng ou Jing Lo (“meridianos principais”) um existe chamado San Jião Jing ou Shu Shao Yang, traduzido na maioria das vezes no Ocidente por “ Triplo Aquecedor “. Este meridiano tem o mesmo nome que uma divisão tripla do tronco humano que define a existência dum triplo ATANOR.

Estes Atanor que na sua forma esotérica são os TanTien (campos de cinábrio), representam os Três Tesouros que são : Ching, a Essência do corpo e a energia sexual ; Chi, a energia vital; Shen, a energia espiritual. Vão do mais denso ao mais subtil.

O Atanor superior abrange a cabeça e a caixa torácica, onde se encontram o coração e os pulmões até ao diafragma. O médio que tem como parte superior o diafragma situa a sua base num plano de intercepção logo abaixo do umbigo, limita-se pelo estômago e o baço. O inferior, onde se situam os rins, a bexiga, os intestinos grosso e delgado, bem como as vísceras reprodutivas.

Ora é neste conjunto de “ fornos alquímicos “ que se dá a transmutação das energias de que temos vindo a falar.

Vinda do céu a energia Ieung Chi é captada pelos pulmões ( Fei ) e pela pele que está intimamente ligada a Fei. Esta energia além de transportar o oxigénio traz todas as vibrações subtis necessárias ao homem.

Os alimentos vão produzir, nas vísceras deste atanor, a energia Ku Chi.

Os órgãos dos sentidos e a pele recebem inúmeras informações energéticas que por sua vez são transmitidas às vísceras.

Há ainda a energia ancestral, recebida geneticamente e que se chama Iuene Chi.

A mistura de Ieung Chi com Ku Chi sofre uma transmutação devida à acção de Iuene Chi obtendo-se Tsong Chi que é a energia essencial. Nova transmutação é obtida pela acção da energia ancestral de que resulta a energia Tcheung Chi, chamada de verdadeira ou autêntica. Esta energia é então transportada por uma conduta central ( Tchong Mo ) que vai fazê-la passar junto de cada orgão que efectuará troca de informações específicas, transformando o indiferenciado em individualizado ( no caso do pulmão, irá receber as informações do tipo Metal ) e armazenará o que restar dessas informações na entranha que lhe corresponde com o objectivo da procriação. Esta energia armazenada e retém da procriação chama-se Tsing Chi. O excedente da energia verdadeira transportada por Tchong Mo e desnecessária aos orgãos e às entranhas, servirá para outras duas energias que são o resultado de nova transmutação : a energia Yong , que servirá de reserva quantitativa, e a Wei que será a energia defensiva.

Posto isto será fácil conceber a acção externa de elixires, de moxabustão ou de agulhas ( de ouro e de prata ) na condução operativa de transmutações destas energias procurando levá-las de retorno à energia original que circularia no corpo humano.

Acresce que a Alquimia interna se processa pela intensificação da circulação do Tsing Chi nos Jing medianos e longitudinais, Du Mai e Ren Mai, chamados meridianos curiosos, duma forma semelhante ao Kundalâni, só que a circulação é forçada num movimento ascendente do Yang e descendente do Yin, por forma a rectificá-la e a purificá-la constantemente. A esta operação dá-se o nome de “ Circulação da Luz “ que se opera na “ Órbita Microcósmica “ 

Finalizarei transmitindo que toda esta Alquimia ainda hoje é bem viva na China e no Japão, ignorando o que se passa noutros países orientais e que é fruto de vasta investigação Universitária.

Oxalá vos tenha despertado alguma curiosidade e desfeito alguns condicionamentos que algumas corporações ocidentais insistem em produzir.

Gl.ao.GA.du.
 

III Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2001)
IN: MACHADO, Maria Salomé Machado, A.M. Amorim da Costa, A.M.C. Araújo de Brito & António de Macedo (2005) - A Palavra Perdida. Colecção Lápis de Carvão (dir. Maria Estela Guedes), nº1. Lisboa, Apenas Livros Editora.

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