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A PEDRA DE COBRE
QUESTÕES DE VERDADE, 
REALIDADE E NOMEAÇÃO EM CIÊNCIA
Paulo Mendes Pinto

Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma
Fernando Pessoa, A Língua Portuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 1997, [p. 9].

 

Começarei por especificar o que é que nos traz a este lugar e a esta mesa.

O objecto que aqui é o centro das nossas reflexões e dos nossos estudos é O Bloco de Cobre; e começo já por fazer uma distinção que me parece essencial: é O Bloco de Cobre e não Um Bloco de Cobre. E é O e não Um porque é o Bloco de Cobre Nativo e não outro bloco de cobre qualquer.

O que de especial este bloco de cobre tem é esse como que epíteto que o qualifica face à sua origem e que define a sua natureza: foi a natureza que o produziu em grau de pureza e forma aproximada à actual.

Trata-se de uma peça existente no edifício da Escola Politécnica, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e que, conforme o folheto que distribuído, foi descoberto em finais do século XVIII no Brasil, e desde logo qualificado como nativo. Isto é, não forjado pela tecnologia humana. Foi enviado ao governo do reino com dedicatória a D. Maria I.

A apresentação do objecto está feita, façamos a apresentação da questão.

A interrogação que agora se coloca é a de saber, mediante o seu enquadramento histórico e a análise da sua estrutura molecular, se ele é ou não Nativo.

Os argumentos apontados são bastante válidos e resultam na constituição de um quadro de explicação funcional bastante interessante, com um surpreendente sentido.

Mas a questão é que esta interrogação como que despiu o dito Bloco de Cobre habituado ao seu revestimento de Nativo. Será que o dito Bloco de Cobre perde o seu interesse sendo des-rotulado de Nativo?

Ou melhor, será que é efectivamente importante a busca de uma total contradição entre a um possível quadro de fraude tecnológica e uma aparente qualificação que supostamente afastaria esse quadro?

Será que é nessa aferição que reside o interesse actual do Bloco de Cobre?

Ora, nesta breve abordagem vou ser, deliberadamente, um pouco provocatório. Começarei por relançar a questão anterior e que aqui pode encontrar algum desconforto:

Qual é o interesse da peça que aqui nos traz? Ou melhor, o interesse científico da peça reside na aferição de saber se ela é, ou não, Nativa?

Dois posicionamentos começaremos por distinguir na nossa postura e que são a condição base do nosso pensamento. Por um lado a peça teve o seu tempo, o seu momento, enquanto eficácia e funcionalidade em que ela própria foi um discurso que se afirmou enquanto Bloco de Cobre Nativo; Por outro lado, e neste preciso momento, no ano 2000, a funcionalidade dela reside apenas no facto de ser o alvo das nossas deambulações teóricas. Isto é, o Bloco de Cobre Nativo surgiu no tempo e no espaço, que o baptizou dessa forma, com uma funcionalidade específica que, inevitavelmente, não é a mesma que transporta dois séculos depois. Isto é, a funcionalidade política, social, etc., de Bloco de Cobre Nativo com que nasceu já não existe.

Agora, para o nosso actual discurso científico, qual é efectivamente o interesse deste Bloco de Cobre Nativo?

Ora, para mim, o interesse não reside minimamente na busca da verdade e da legitimidade da aplicação actual e contemporânea do vocábulo Nativo. O objecto nasceu discursivamente enquanto tal, de tal forma foi vincada a sua personalidade nesses fonemas que assim viveram dois séculos. Portanto, este nome é a simples verificação de que a funcionalidade histórica Bloco de Cobre enquanto Nativo foi a que se efectivou.

Assim, este caso é um perfeito case study sobre a questão da própria validade do discurso científico, das suas formas, dos seus objectivos e, acima de tudo, das suas variações e riqueza.

Como se pode ter verificado até este momento, o meu interesse nunca seria o aplicar a este Bloco de Cobre uma suposta lógica de Verdade.

Talvez esta aferição entre o Verdadeiro e o Falso, que aqui tem um excelente exemplo, até seja inválida; Talvez seja na sua superação que o discurso científico encontre a sua riqueza e a sua complexidade cada vez mais desejada.

Desde Galileu e Descartes que nos habituámos à relação directa entre Verdade e Realidade. Neste sentido, a Ciência sempre tem sido uma busca da Verdade através da Realidade.

Ora, cada vez menos esta relação é, ela sim, verdadeira, linear e livre de complexidade. Verdade e Realidade são campos de definição impossível de aferir e de atingir mediante os pressupostos cartesianos de exclusibilidade.

O campo da pesquisa científica cada vez menos atinge esses pressupostos de suposta cientificidade. E cada vez menos os atinge porque é a própria pesquisa científica que os torna obsoletos, incapazes de responder à complexidade que foge ao esquema linear de causa-efeito.

Nas Ciências Sociais e Humanas esta alteração de pensamento efectua-se essencialmente a nível da caracterização da noção de representação. No limite, nada é constatado enquanto si próprio, mas sempre enquanto representação. Logo, nada é, vez alguma, tomado na sua verdadeira dimensão.

Assim, a suposta identidade que tudo tem ganha um relevo bastante grande. As formas de conhecimento e de tratamento da identidade das “coisas” são, desta forma, acesso directo à própria coisa pois a representa e, ao mesmo tempo, a sintetiza.

Mas, mesmo no campo do conhecimento da identidade, talvez pouco se possa passar da compreensão de enunciados, verificação de fenómenos e aproximações supostamente reais, quase sempre do campo do virtual.

Enunciar, dar um nome, identificar através de um conjunto de fonemas, nunca foi apenas um acto e modo de transportar aquilo que é representado para outra dimensão que não a da sua existência; enunciar reside no campo das representações e das interpretações que, mesmo sem querer, implicam a marca do fotógrafo e do leitor, do representador/representante, do actor e do receptor. Enunciar é, realmente, como vocábulo indica, um enunciado e não uma cópia.

Enunciar é, também, uma forma de comunicação que, recorrendo a um sujeito representado, apenas dele toma parte para dele partir num sentido cognitivo e representativo próprio, mais do reprentador que do representado. Mais, quão poucas vezes o representado foi responsável por qualquer das suas representações.

Identidade é, assim, um labirinto de multiplicidade de representações cénicas tomadas enquanto realidade, que o não é para o representado, mas que tal assume pelo sentir do representante, pleno dono, de direito, da imagem que coloca no circuito de comunicação.

Aqui, na atitude do representante não consta qualquer vínculo à natureza do representado, nem mesmo a tal subjaz alguma declaração de direitos de autoria ou procuração, mesmo que pré-datada ou efémera. O representado não sabe do facto de o ser, nem supõe, e muito menos domina, os mecanismos e sensibilidades que para tal serão abarcados.

Identidade é uma formulação que raramente parte do representado, que quase sempre é vontade e estímulo do representante. Tudo o resto é etnografia; isto é, relações categoriais em que os representados são como que h(i)eraldicamente catalogados e rotulados de acordo com os acasos dos discursos dos representantes e, mais interessante, a essas especificidades exteriores passam a ser identificados. Muito vulgarmente, a essas representações chamamos Realidade, quando dela apenas têm o impulso inicial da construção mental efectuada pelo dito representante; essas imagens podem mesmo diferir bastante daquilo que supostamente pretendem transmitir.

Assim, o que é realidade, e o que é nomeação, ou representação? Pelo que antes “representámos” de realidade e de representação, realidade é uma vida exterior do signo ou da dita realidade, em si mesma tomada, se bem que tal nunca possa suceder.

Realidade são as versões, donde realidades, representadas e que dela são imagem reconhecida pelo receptor. A imagem, para o ser, necessita mais dos dois interlocutores em questão que de si própria.

Aqui, o código discursivo é a forma essencial para que o discurso entre representante e representado mantenha a aparência de realidade, se bem que nunca a tome: aquilo que é representado não necessita de ser a realidade, desde que os interlocutores compreendam a mensagem; o representante e o receptor é que de tal necessitam para conseguir estabelecer diálogo, sem o qual nenhum deles saberia do que falava - quer o outro, quer ele próprio. Esse código que possibilita a compreensão é a fórmula resolvente do diálogo.

Enquanto ser amorfo, metálico e sem vida, escusado será dizer que o Bloco de Cobre nunca pediu para ser Nativo. As representações do dito é que tal afirmam – ele não é tido nem achado para a questão.

O diálogo funcionou enquanto o(s) representante(s) e o(s) receptor(es) acharam que o Bloco era, realmente, de Cobre Nativo; quando tal algum deles o não afirmou … instalou-se o caos cognitivo.

Ai, se o código não afere os discursos, reza-se à Sacro-Santa-Sciencia para a interpretação correcta da realidade: exames para prova de veracidade. O que aqui pretendemos mostrar é que tal questão nada trazia ao sujeito em questão. O Bloco de Cobre nem muda de cor pelo facto de ser Nativo, ou autóctone de outra qualquer mater tecnológico-científica eticamente menos correcta.

Mais, ele foi, de facto, um Bloco de Cobre Nativo. Ele foi Bloco de Cobre Nativo e como tal viveu, funcionou, existiu e teve significado. Só isso lhe possibilitou o simples, mas essencial, facto de ter chegado até nós. Tal não significa que fiquemos a saber, ou não, se ele é fruto da natureza ou de hábil manipulação humana; o facto é que ele deve ser Bloco de Cobre Nativo, seja-o, ou não. É isso que mostra o facto de ter sido esse o nome que perdurou, que se identificou com ele, que dele passou a ser identidade, ou melhor, que dessa entidade passou a ser identidade.

Estou a resvalar, como já antes apontado, para um tratamento negativo de um tema muito querido à nossa cultura ocidental. Como já disse, quando aprendemos matemática, a alguns princípios nos habituamos. Mas, conhecê-los ajuda-nos a refutá-los e a compreender parte da sua plasticidade – afinal, retoricamente, que é onde esses princípios ainda se vão afirmando, um princípio cognitivo é o que é porque advém da tradição; tal como ele o é, outro o poderia ser, e desempenhar o seu papel. Esses princípios são o da “Não contradição” e o do “Terceiro excluído”.

Naturalmente que, se de factologia se falar, há possibilidades de justificação e/ou compreensão da causalidade do seu nascimento: apalermar/emocionar e convencer um ministro menos interessado em fomentar pesquisas naturalistas no Brasil – a decorrência já ele sabia: Independência ou morte! Era a inevitabilidade do discurso aberto e quase científico dos naturalistas e da descoberta das potencialidades naturais, ou melhor, proto-nacionais. É a inevitável relação entre ciência e política que sustenta a nossa actividade e que só, representativamente, afirmamos não existir.

Acabando, só o facto-discursivo Bloco de Cobre Nativo lhe deu existência, forma e funcionalidade, um nicho e um enquadramento. Só isso fez com que chegasse a nós e tivéssemos a possibilidade de colocar a derradeira questão: será que o dito cobre é nativo? (agora, na nossa discursividade cientificizante, já sem maiúsculas que protejam a sua existência).

Naturalmente que, duzentos anos depois, o Bloco de Cobre será sempre Nativo, tenha sido encontrado no Brasil, tal como a Mãe Natureza o formou, ou forjado num barracão qualquer. Representação após representação, a nomeação passa a fazer mais parte do objecto que a sua própria estrutura molecular interna. Um nome, mesmo quando esse nome supostamente representa a natureza do nomeado, é parte integrante do ser – por vezes mais que ele próprio.

A nível quase museológico a questão até se pode colocar de outra forma; o que é que tem mais interesse nesta peça: o seu valor intrinsecamente material, ou a sua vivência histórica?

Ora, o Bloco de Cobre é uma interessante peça porque é um dos maiores Blocos de Cobre Nativo ou porque, tendo passado por Bloco de Cobre Nativo, tendo como que assumido essa personalidade histórica, pode ter iniciado e catalizado um movimento social e cultural que poderá ter conduzido à independência de um dos maiores países do mundo?

É que, sendo Nativo ou não, ele funcionou como tal. Foi esse o seu nome, foi essa a sua identificação. Foi enquanto Bloco de Cobre Nativo que este bloco de cobre passou para a História e, acima de tudo, fez História.

 
Discursos e Práticas Alquímicas. Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. Online no TriploV.