6. Carta de Manuel Galvão da Silva para o administrador do Real Jardim Botânico da Ajuda. Bahia, 16 de Junho de 1783. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/S-26.
Senhor Júlio Mattiazzi
Amigo do coração; já Vossa Mercê há-de estar informado da nossa viagem, e com todas as circunstâncias que não esquecem aos que embarcam a primeira vez, como são a conta dos dias gastados a chegar a esta ou àquela terra, a bonança dos mares, etc.. José da Costa e António Gomes tiveram ocasião de lhe escrever primeiro do que eu o pudesse fazer, que, embaraçado pelas causas que lhe exporei, não tenho até aqui achado descanso; porque, logo que cheguei, todo meu intento foi ir à Cachoeira, ao lugar onde foi achado o cobre, para cumprir as ordens do Exmº Senhor Martinho de Mello; para o que falei ao Senhor Marquês, que já esperava por mim e sabendo, não sei por que via, que eu trazia esta ordem, recebeu-me afavelmente e ali me demorei desde as três da tarde até às oito da noite, em companhia do Juiz de Fora da Cachoeira, que foi chamado, para tratarmos da segunda porção de cobre, que se tirou do mesmo lugar, cavando-se, como dizem, altura de três palmos; dei o meu parecer; e concluí que, apesar do rigoroso Inverno, e a impossibilidade de descobrir coisa alguma, por causa das grandes chuvas, devia passar ao dito lugar; prometeu S.Exª mandar pôr pronto um escaler, para partir logo que me parecesse; como não eram ainda passados três dias, e a bordo se achava toda minha roupa de uso, e alguns livros, que me poderiam ser necessários, disse a S.Exª me deixasse conduzir uma mala de roupa, alguns livros, a rede de conchas, e um cilindro de lata, fosse revista pelos guardas, que estavam a bordo, mas que não precisasse de andar com bilhetes; não resolveu nada, e me vi obrigado a fazer petições, tirar bilhetes de um cruzado a um guarda para ir a bordo, a conduzir estas coisas para terra; em uma palavra, gastei nestas idas e vindas bons oito dias, porque uma vez não havia Alfândega, em outra não bastava a petição despachada já pelo Provedor, e havia necessidade de bilhete; passado o bilhete, era mister ser outra vez rubricado pelo Provedor; acabavam-se as manhãs, e por conseguinte as tardes, e acabava-se-me a paciência; e creia que, a não ter recebido ordem do Exmo Senhor Martinho de Mello, para ir à Cachoeira, não tiraria de bordo nem uma camisa, por me livrar destas fadigas, tão indispensáveis e justas para conservação dos direitos de Sua Majestade, mas que se me faziam pesadas, pela brevidade que desejava, não sabendo quando partiria o navio, e se partiria daqui, antes de poder ir ver a mina de cobre. Não obstante isto, a minha mala e os livros, logo que chegaram à ponte da Alfândega, foram isentos de qualquer revista, e passaram para onde os mandei desembarcar.
No intervalo destes oito dias fui ainda ao Palácio do Governador, de onde um dia o acompanhei para a Casa da Moeda, onde se fez exame do segundo pedaço de mina, que conserva S.Exª, e que tem de peso uma arroba, três libras, e tantas onças. Constou este exame de fazerem fundir um pedaço de cobre; e um pedaço que pesava uma onça, tirado do cascão da mesma mina, que lá, e cá se supunha ferro: ajuntaram-lhe nitro e bórax, e tiraram do cascão duas oitavas, e tantos grãos de cobre. Ficaram contentes todos os que presentes estavam, e mais que todos o Juiz de Fora da Cachoeira, que por aqui vive há muitas semanas; votaram, deram arbítrios, e eu também disse, quando S.Exª me perguntou, o que me pareceu conveniente, afirmando-lhe ser cobre nativo, e não procedido de alguma fusão; retirei-me para casa, e entrei a tratar de partir em busca desta mina, e quando faziam oito dias da minha chegada embarquei em um escaler, que o Intendente da Marinha mandou aprontar, e parti para a Vila da Cachoeira, onde cheguei às oito horas da noite, tendo largado da Baía às sete horas da manhã, debaixo de toda chuva; aí me hospedaram (por carta, que tinha mandado o Juiz de Fora ao Vereador, que faz as suas vezes) em a mesma casa onde assiste o Ministro, achando uma boa aposentadoria militar, de fogo, água, sal, panelas, e três asseadas camas, e uma grosa de satisfações, que me deram aqueles senhores, como se eu fora alguém, terminando tudo em se desculparem de não terem preparado mais cedo a casa. Logo que se despediram de mim, que passava de onze horas, me deitei para no outro dia continuar a minha viagem. Apenas amanheceu o dia, mandei comprar o que era necessário para dar de comer à gente do escaler, e me embarquei para o Mamocabo, que é um porto pequeno, que serve de desembarque aos que habitam por aqueles sítios em vizinhança da mina. Logo que desembarquei fui buscando o caminho de um engenho que está dali um quarto de légua; no meio do caminho encontrei com dois pretos que traziam três cavalos pelas rédeas, mandados por Manuel Francisco, dono do dito engenho, e a quem também tinha escrito o Juiz de Fora; como a esse tempo íamos eu, e António Gomes, e José da Costa, já muito molhados, e atolados de lama até ao joelho, não tive remédio senão montar, contra o meu primeiro propósito, que era fazer todo caminho a pé, e ir recolhendo as plantas de Inverno que fosse achando; chegados que fomos ao engenho, depois de comermos algum doce e requeijão, que nos deu o dito Manuel Francisco, partimos eram nove horas para a mina, acompanhando-nos um oficial de justiça, guia do tal sítio, e do lugar verdadeiro onde foi achado o cobre. Não lhe contarei os terríveis atoleiros que por ali se formam no Inverno, nem a violenta chuva que sofremos por entre aqueles matos, e enfim sobre o riacho onde se achou o cobre; basta dizer que choveu desabridamente todo dia, e que não havia quem descesse a montanha sem cair, e eu só o consegui depois de três boas quedas, sem me valer o bastão da bússola em que me firmava, nem as próprias unhas com que me segurava. Enfim cheguei ao vale por onde corre o pequeno rio, e fiz todas as indagações possíveis por descobrir ou a mina, ou ao menos alguns sinais menos equívocos da sua existência, e não achei nada; não vi senão quartzos, areia Sabulum e a argila grandoeva de Lineu; só observei que algumas porções deste quartzo rupestre, que forma a montanha onde passa o rio por elas, estavam tingidas de um vapor metálico, que parecia ferro, e algumas porções também estavam com alguma incrustação superficial de ferro. Não me demoro a dizer mais o que observei, que é de pouca ou nenhuma consequência, tendo além disto feito a descrição total no papel, que entreguei ao Senhor Marquês de Valença para ser remetido para Lisboa. Como não achava nada de interessante, deixei o lugar logo que vinha caindo a noite; e tornei a embarcar para ir dormir à Cachoeira, de donde parti ao terceiro dia para a Baía, que não pudémos tomar, suposto o escaler era de dez remos, senão ao fim de três dias de viagem, fazendo duas arribadas: a primeira logo duas léguas abaixo da Cachoeira e ali passámos dia e noite hospedados em um engenho; a segunda à Ilha dos Frades, onde passámos também um dia e uma noite, distando da Baía sete léguas, até que enfim no terceiro dia, à força de vela e remo, depois de muitos bordos, conseguimos tomar o porto pelas cinco horas da tarde, tendo partido às três horas da noite. Nesta ilha há uma mina grande de ferro formada em cós.
O que mais me tem afligido nesta viagem é o não poder fazer um herbário destas poucas plantas de Inverno. Todas que recolhi, além de serem apanhadas molhadas, e não poderem ser preparadas, vinham em tal estado que se não conheciam; pois creia que vi algumas que me pareceram espécies novas; vi géneros descritos já, que nunca tinha visto; mas que hei-de fazer? Se esta mina tem sido a minha consumição, e se esta terra da Baía é o país das chuvas, e não deixa pôr os pés fora de casa.
Depois que vim da Cachoeira, pedi a S.Exª me permitisse repetir as experiências por minha mão na Casa da Moeda, e tendo-ma concedido, e dado juntamente duas onças da parte rubra da mina, que se supunha ferro, ajuntei-lhe as matérias que me pareceram próprias à fusão, e a fazerem reviver as cais metálicas, e tirei de uma onça seis oitavas e meia de cobre; donde se vê a diferença das minhas experiências daquela feita pelos fundidores da moeda, que apenas alcançaram duas oitavas e tantos grãos. Donde concluí que a Mina é a Mina Espatica de Vallerio a que Lineu chama Cuprum rubrum ochraceum induratum. O mais que penso acha-se no papel, que como disse fica entregue ao Senhor Marquês de Valença, que a há-de remeter ao Ill.º Ex.mo Senhor Martinho de Mello.
Em quanto aos peixes, ainda os não tenho procurado, por ter estado, como é verdade, ocupado a escrever da mina; hei-de fazer toda diligência, se me demorar aqui mais alguns dias, para mandar o cilindro cheio, pois não o desembarquei para andar com ele de uma para outra parte, e só por desgraça irá para Moçambique vazio. A respeito de conchas, como não tenho saído para fora da cidade, as não tenho visto. O Senhor Marquês disse-me que seria bom deitar a rede na barra pouco longe de terra, onde há areia, e algumas conchinhas; como a tenho em casa, e agora acabo de falar de todo em minas de cobre, talvez que a vá deitar em alguma parte.
Estimarei que Vossa Mercê, e quanto lhe diz respeito, tenha felicidades e saúde; eu vou vivendo, cansado alguma coisa da viagem, e das noites que dormi sem comodidade, na volta da Cachoeira; precisava vomitar-me, mas o não faço por não ter tempo, e guardar-me para quando tiver mais descanso pelo mar. António Gomes e José da Costa estão bons; como eles escrevem, dirão o como passam na terra onde os tenho agasalhado, conforme as posses de meu pai; é verdade que se ficassem em casa do Comandante seriam tratados com mais grandeza, mas não teriam talvez achado tanto sossego em uma casa de tanta gente.
Tenha saúde, e dê-me notícias suas, que saberei estimar, e faça-me o favor dizer ao D.r Vandelli que lhe não posso escrever por este navio, por isso o não faço.
De Sua Mercê
Bahia 16 de Junho de 1783
Manuel Galvão da Silva
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