O REINO DE DEUS, OS TRÊS DA NATUREZA E O DE PORTUGAL
ANA LUÍSA JANEIRA

E O REINO DE PORTUGAL

Apesar de bastante ignorados pela História e Filosofia das Ciências, é indiscutível que os espaços institucionais, onde foram e so produzidas as ciências modernas, têm tido especial importância para o processo da sua existência e ajudam a inteligir melhor a contemporaneida­de, no seu passado e presente [4] . Este último aspecto poderá ocorrer quando se usam modelos teóricos capazes de articular, entre si, termos sig­nificativos - como o são edifícios, objectos, metodologias e estratégias do saber/poder - pertencentes a configurações epistemológicas individualizadas. Ou seja, quando se dispõe de grelhas descritivas capazes de estabelecer nexos, por exemplo, entre plantas arquitectónicas, conhecimentos ensinados e diplomas legislativos, de molde a circunscrever a lógica geral que lhes preside. Quando se aborda a historiografia portuguesa relativa ao posicionamento do conhecimento sobre os Três Reinos­, devemos ter presente os lugares, onde tais saberes foram construidos, originalmente. Até 1837, as Ciências Naturais eram cultivadas, no caso da capital, em sítios dispersos: - Gabinete de História Natural da Ajuda, - Jardim Botânico da Ajuda, - Instituto Maynense, - Academia Real das Ciências de Lisboa. Depois de 1837, sobressai, deste conjunto, a Escola Politécnica de Lisboa: O Museu Nacional de Lisboa virá a ser constituido por 2 secções (10 secção - Mineralogia, 20 secção - Zoologia) e terá a antecedê-lo um importante acontecimento: 1836 - a Academia Real das Ciências de Lisboa tomara a seu cargo o Gabinete de História Natural da Ajuda. Acrescente-se que: -1839 - o Jardim Botânico da Ajuda vai ser anexado à Escola Politécnica de Lisboa; -1858 - o Museu de História Natural da Academia ser-lhe-á também entregue. Os saberes aplicáveis e aplicados em torno da classificação requeriam modos de estar e modos de fazer, onde começavam por se destacar: - a viagem do naturalista, - a missão militar. Ao serviço do saber e do poder, percorriam-se as entranhas das colónias, por onde se alargavam espacialidades sem fim. Das actividades referidas resultavam vivências muito especiais, mas no só. Na verdade, elas possibilitavam a locali­zação e recolha de objectos que iam enriquecer as colecções, para cuja manutenço concorriam trabalhos de descrição e comparação. Nestes trabalhos os naturalistas eram apoiados por conser­vadores, preparadores e ainda por jardineiros, no caso do Jardim Botânico.

O perfil humano e cognitivo do naturalista de oitocen­tos, a sua informação polivalente e formação pluridisciplinar permitiam reunir, numa só pessoa (ex: Domingos Vandelli, Alexandre Rodriguas Ferreira, José da Silva Feijó, Bernardino António Gomes), actividades que separam hoje, entre si, os biólogos dos geólog­os, os químicos dos antropólogos. Além disso, estipulava-se ainda quanto o gesto de classi­ficar era importante para múltiplos sectores profissionais. Classificar, dar nome e coleccionar, descrever e comparar, ou seja, o reconhecimento do mesmo e do diferente, requer uma ordem e organicidade que se exprimiram: - primeiro, como espacialização - no espaço geral da Natureza, animais, plantas e pedras foram dispostos e distri­buidos numa ordem baseada na descriço externa, o fora dos seres; - depois, também como temporalização - no volume da dimenso espacio-temporal, animais, plantas e pedras assumiram uma nova categoria e foram ramificados segundo vectores evolutivos.

De facto, a necessidade de classificar decorria directamente de um face-a-face com o mundo, onde surgisse o múltiplo, com semelhanças e diferenças. Havia necessidade de classificar no âmbito dos Três Reinos da Natureza: os seres vivos foram objecto de classificaçes e estruturados em escalas da Natureza e depois na árvore da vida. Havia necessidade de classificar os saberes e ciências no âmbito da História e Teoria do Conhecimento: os entes científicos foram organizados em árvores do conhecimento, por Bacon, Enciclopedistas e Comte. Enquanto o raciocínio por analogia foi predominante podia remeter-se a heterogeneidade entre os seres e os saberes a uma entidade una. A partir do século XVII, o pensamento ocidental precisou de tentar formas de organizaço mental, fugindo à unicidade e univocidade, e capazes de exprimir novas or­denaçes sistemas de nomenclatura (Lavoisier) ou sistemas taxonómicos (Lineu).

O sistema em causa considerava que os fenómenos naturais só se tornavam valiosos quando: - eram úteis cientificamente; - respondiam a interesses materiais da sociedade que os reclamava. Na verdade, a História Natural dos Três Reinos propunha-se criar conhecimentos aplicáveis à Agricultura, Metalurgia e Medicina, etc. Mas no só. Simultaneamente e paralelamente, assumia-se, de modo inequívoco, a misso de criar saberes que constituissem poder científico e servissem o poder político, nomeadamente no contexto colonial. Em Portugal: - no caso da Mineralogia, Geologia e Zoologia, o espólio museológico de natureza exótica provinha principalmente do Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique; - no caso da Botânica, as plantas endémicas vindas do Oriente, Mundo Novo e Africa enriqueciam os jardins da Ajuda e Coimbra. Aliás a rota das plantas, onde Cabo Verde teve sempre um lugar muito singular, fizera entrecruzarem-se a palmeira e o coqueiro, a pimenta e a mandioca. A estratégia final concorre para conservar e mostrar as riquezas de um Império, e concorre também para criar tácticas, através do conhecimento, para dominar outras terras e outras gentes.