O REINO DE DEUS, OS TRÊS DA NATUREZA E O DE PORTUGAL
ANA LUÍSA JANEIRA

O REINO DE DEUS [2]

No momento da chegada ao Real Museu do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, sua primeira morada lisboeta, a sala, onde se encontra o Bloco de Cobre Nativo actualmente, a quem já tinha pertencido e para que servira?

Fizera parte do Noviciado da Cotovia (1603-1759) e ficava nas traseiras de um dos claustros. As instâncias e os fundamentos, que possibilitam correspondências entre a forma como o espaço se organizava e o modo como os discursos emergiam no interior desta Casa da Companhia de Jesus facultam percursos onde surgem situações epistemológicas complexas, como sejam relações bem determinadas entre os saberes, as ciências e o Reino de Deus. Situado no alto do Monte Olivete em Lisboa - zona criteriosamente escolhida  - o Noviciado da Cotovia estava rodeado por uma cerca, um pomar e uma horta. Além disso, olhava sobranceiro quintas e montes (Norte e Oeste), a cidade (Este), o rio e as naus (Sul).

Ao tomar a forma de uma quadra com um pátio espaçoso no centro segundo o projecto arquitectónico inicial, o edifício reproduzia, com dimensões menores, o Colégio de Jesus em Coimbra. Organizado a partir de duas partes opostas, estas áreas estavam sujeitas a uma hierarquia: - a área da acção do Espírito ocupando toda a frontaria; - a área das actividades do corpo e da alma localizada nas traseiras e corpos intermédios; - os corredores serviriam para a vigilância (síndico) e permitiriam a circulação entre as partes opostas. O espaço geral seria geométrico, contínuoe reuniria dois corpos acopulados (parte da frente e traseiras). As áreas assinaladas mantiveram-se no edifício construído. Porém, como a quarta ala, que o deveria fechar, nunca foi erguida, a adaptação às carências financeiras nâo evidencia, tanto quanto seria de esperar, a oposição e a hierarquia deseja­da e idealizada, desde sempre. O pólo central e o eixo vertical do edifício situavam-se na Igreja, maior área independente e maior volume; o equilíbrio, medido na simetria (direita e esquerda), compor­tava ainda dois centros gera­dores secundários: os claustros. A área da acção do Espírito ocupava grande parte da frontaria e assumia o papel de maior superfície. Na Igreja e claustros, o lado direito correspondia à abertura ao exterior pela frontaria e o lado esquerdo equivalia ao espaço comunitário. Nesta área predominava a doutrinação pela  palavra de Deus, proclamada na Igreja, nomeadamente durante o ritual religioso, com destaque para os *Exercícios Espirituais+. A área das actividades do corpo e da alma comportava os cubículos - os quartos destinados a velhos ou doentes ficavam no pavimento inferior - e as oficinas, o refeitório e a cozinha. Nesta zona situava-se o espaço comunitário não-social, onde se provavam as directrizes da palavra de Deus usando a vontade, liberdade e entendimento, ou seja, a meditação e oração, misto de si­lêncio e de meio silêncio. No caso concreto do refeitório, a prática da virtude incluia momentos destinados à pregação e leituras religiosas, à educação da modéstia e compostura, à aplicação de disciplinas públicas. Este tipo de organização espacial traduzia e materializava o perfil antropológico inerente ao pensamento inaciano: o homem é constituído por um composto - o corpo e a alma - aberto ao Espírito. Tomando como discurso significativo A Imagem da Virtude - escrita por um antigo noviço da Cotovia, o Padre António Franco, e publi­cada em Coimbra no ano de 1717 - são de destacar os enun­ciados seguintes: - o período de noviciado correspondia a uma provação de dois anos; - esta provação consistia no domínio do corpo pela penitência, e no estudo da doutrina cristã ou domesticação da alma pela pregação e pela arte de bem dizer; - logo, representava um treino assíduo do espírito moldado pelos *Exercícios Espirituais+. Exercício espiritual concebido, no seguimento da primeira anota­ção, como uma realidade ímpar. O Noviciado estava, pois, programado e orientado para desenvolver vocações de apóstolos destinados ao serviço da Divina Majestade, por várias missões através do Império. No que respeita o corpo, os noviços são descritos como pessoas de olhos baixos, calados nas necessidades e temperantes nos ofícios domésticos. Empenhados em peregrinarem, visitam presos e doentes, comem com os pobres. Quanto à alma, são-nos apresentados como jovens pacien­tes e obedientes na aprendizagem dos bons exemplos e desper­tos­ para o estudo de toda a palavra que possa alimentar o progresso com vista à *Maior Glória de Deus+. Relativamente ao Espírito, o noviciado é identificado com uma  provisão especial de virtudes, enquanto época especial para aquisição de predisposições. A correspondência entre as regras que determinam a separação e a circulação entre as áreas do Noviciado da Cotovia e as regras que valorizam a provação do corpo e da alma, com vista à acção do Espírito, é possibilitada pelo sistema epistémico definido nas Constituções da Companhia de Jesus de Santo Inácio. Na verdade, o discurso instaurador das diferentes Casas da Companhia consigna a exis­tência de uma dualidade: - a ordem do ser (ontológica) e a ordem do devir (gnosiológica); - pelas quais se estabelece um composto aberto ao Espírito. Segundo a ordem do ser, a acção do Espírito é a razão principal de todas as actividades do corpo e da alma: - a circulação dá-se do Espírito ao corpo e à alma; - sendo o Espírito que determinará a origem e o fim da Companhia, pois mostra-se impulsionador da missão, vivida como abertura para o exterior. Segundo a ordem do devir, as actividades do corpo e da alma condicionam a acção posterior do Espírito, enquanto condições vivenciais essenciais e preambulares: - a circulação dá-se no sentido do corpo e da alma orientados se necessário incluir o treino do corpo e da alma, nos exercícios espirituais. Neste contexto, os exercícios espirituais seguem a ordem do conhecer - o corpo e a alma predispõem para a acção do Espírito - mas retiram o seu fundamento primeiro da ordem inversa, a ordem do ser, que pretendem tornar actuante. Sendo a saúde e a doença um dom essencial para o corpo. Sendo a virtude um dom predominante do Espírito. Como se entende o papel da ciência, dom mais ligado à alma?  Embora o estudo das humanidades (latim, gramática, retórica, artes ou ciências naturais, etc.) só fosse feito depois da provação, nomeadamente nos colégios, a perspectiva epistemológica exige que se deslinde quais são e como se fundamentam as relações entre a propedêutica da virtude e o estudo das humanidades. Propedêutica da virtude: banir as afeições desordenadas sob acção da vontade e do entendimento (noviciados). Construir uma formação humana e cristã. Pôr à prova o afectivo e volitivo. Estudo das humanidades:desenvolvimento das actividades racionais e da especulação, como meios e não como fins (colégios). Informação humanístico-cristã. Treino intelectual. A virtude ajuda ao desenvolvimento da ciência. E a ciência só adquire sentido quando serve a virtude.