O propósito do livro de estreia de António Telmo não foi depois esquecido. Alguns outros trabalhos do autor vieram dar continuidade à sua intenção inicial de entrosar o sensível e o pensamento, a expressão e o espírito, restituindo à arte em geral e à poesia em particular um papel iniciático superior de aperfeiçoamento do ser. Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981) abre com um texto, “Para um Organon da Razão Poética”, onde deparamos com uma chamada de atenção para as formas de imaginação artistícas destituídas de dimensão interior transmutativa.
O que se pretende é que a arte poética, ou se quisermos o exercício da metáfora, não decaia num jogo gratuito de formas, votado à distracção ou ao aproveitamento do comércio. É preciso, pelo contrário, que a imaginação artística sirva de veículo ao pensamento filosófico, não confundindo a expressão com a técnica das formas. Expresão poética e formas do verso podem não coincidir.
A realidade da metáfora deve ser tão viva que transforme e aprofunde a nossa percepção do real fixo. É pela metáfora, quer dizer, pela observação atenta das coisas e das suas qualidades que se dizem as essências. Só há pensamento, pelo menos pensamento activo, através da palavra. A língua portuguesa pode ser refundada através de uma razão poética. Há que arrancar a linguagem verbal ao estado letárgico da comunicação, restituindo-lhe uma vitalidade criacionista. o real é, como diria Leonardo Coimbra, ideado, não cousado. A criação poética é, pela metáfora verbal, a criação do real ideado. A poesia para António Telmo é criacionista; cria a realidade de que fala.
A metáfora é, segundo Aristóteles, o “transportar para uma coisa o nome de outra”. Mudar de nome é, assim, mudar de coisa. Depois duma metáfora certeira e inesperada, o ente deixa de ser o mesmo. A metáfora é uma metamorfose aperfeiçoadora, capaz de melhorar o real. As metáforas recriam os seres e aperfeiçoam o mundo, levando-o a mudar de plano ou de grau. Dão-nos a ver o invisível; fazem-nos perceber o que antes ainda não tinha sido percebido; revelam o que velado estava; passam do físico ao metafísico. São elas que fazem da arte poética uma arte criadora. Só pela metáfora se descobre a metamorfose interior do mundo e do ser. Eis a parcela de vidência que toda a verdadeira arte comporta e ainda os limites de toda a arte naturalista ou figurativa que não saiba alçar-se à abstracção transfiguradora da metáfora. A metáfora poética altera a natureza; desloca e alarga o seus atributos; modifica as aparências com que vemos o real: cria a essência invisível do particular, que é aquilo mesmo que constitui o objectivo do pensamento.
Telmo parece com isto dizer-nos que existe na linguagem verbal uma verdade superior à vida, à vida dos sentidos. Foi ela permitiu a Leonardo Coimbra soletrar a consigna magnífica do criacionismo, que foi o seu sistema de pensamento : “O homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer.” Enquanto a vida material nos foi dada numa determinação previsível, numa orientação estabelecida, a linguagem verbal deixa o mundo em aberto, deslocando e alterando formas e eventos. Essa verdade superior à vida, capaz de superar as determinantes, é a imaginação.
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