MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Comunicação à Tertúlia Artes e Letras, Biblioteca Municipal de Lamego, 21.01.2023. Tema: Líderes e Lideranças
Comecemos por definições de líder e liderança, coligidas no Dicionário Priberan da Língua Portuguesa:
Líder – Pessoa que exerce influência sobre o comportamento, pensamento ou opinião dos outros; pessoa ou entidade que lidera ou dirige.
Liderança – comando, direcção, hegemonia.
Ficámos a saber, com estas definições, que o líder não é obrigatoriamente uma pessoa, nem uma criatura antropomórfica. A importância desta asserção não diz respeito ao facto de se considerarem líderes entidades como Astérix, Júlio César, o mago Merlim, São Sebastião, Nuno Álvares Pereira ou Shrek, no seu espaço literário, sim que existem coisas como cofres, chaves, espadas ou varinhas mágicas, que lideram, dirigem os movimentos de personagens ou mesmo de pessoas. Estes objetos são habitualmente perseguidos por quem pretende beneficiar dos seus poderes, por isso precisam de ser defendidos e muitas vezes escondidos pelos seus legítimos possuidores, e possuidores legítimos são sempre eleitos, escolhidos.
A poção mágica do druida Panoramix está ao serviço do bem, mas pode a coisa liderante ser nefasta, e estou a lembrar-me do romance de Patrick Süskind, visto também em cinema, O perfume. O perfumista é um assassino de mulheres, porém no dia da execução, graças aos poderes inebriantes da essência que destilava com o corpo delas, convenceu a multidão e os executores, não só da sua inocência, como de que era um anjo, um escolhido. O perfume escravizava.
Entre parêntesis, digamos que esta liderança se torna muito mais tangível no policial clássico, quando vemos objetos ou situações mínimas exercerem a sua máxima influência, quer sobre as células cinzentas de Poirot, quer sobre as dos detetives da série Morte no Paraíso, na qual o crime é solucionado graças à revelação do mistério de uma coisinha insignificante; de princípio a fim do episódio, ela ocupa de maneira obsessiva a mente do inspetor, conduzindo-o para a identidade do criminoso. Hoje, por exemplo, vi o episódio em que o detetive descobre por que motivo tinha o cadáver um amendoim na mão. Revelado esse mistério, fica o assassino descoberto.
Estas linhas gerais desenham o entrecho de grande parte da literatura universal, desde a Odisseia até obras dos nossos dias, tantas das quais deram origem a filmes e séries de televisão, como os romances de Dan Brown, os que estão na base dos filmes de Harry Potter ou do Senhor dos Anéis.
O bom líder é um modelo, aquele cujas virtudes desejávamos para nós. Seja Galaaz, um dos cavaleiros da Távola Redonda, seja São Sebastião. Ambos inspiraram D. Sebastião, e não me refiro tanto ao rei, sim ao Desejado da literatura. Tal como a nossa imagem de Pedro e Inês resulta de uma obra coletiva, que ultrapassa as dimensões do nacional e da literatura, as do Desejado e de S. Sebastião também correspondem a personagens geradas pela imaginação coletiva. O imaginário que envolve estas entidades nem sempre é conhecido, e pode até ser ocultado. Pelo menos para mim, a ocultação existiu. Certa vez, em S. Salvador da Bahia, buscava eu a igreja de S. Sebastião, por ser um local muito importante para a comunidade LGBT, que tem S. Sebastião como seu patrono, e para uma peça de teatro que eu andava a escrever. Foi uma investigação cansativa e difícil, ninguém conhecia a igreja de S. Sebastião. Por fim, no átrio de uma das mais majestosas igrejas da cidade, vejo escritas, no tapete de entrada, estas palavras: Basílica Arquiabacial de S. Sebastião da Bahia. Ninguém me sabia informar porque hoje a basílica é conhecida popularmente como Igreja de São Bento. Então, o mistério das identidades é um dos obstáculos à descoberta das coisas mágicas, ou, para este caso, liderantes.
S. Sebastião exerceu fatal liderança na imaginação do escritor japonês Yukio Mishima, que acabaria por cometer sepuku, ou suicídio ritual entre os samurais. Liderança pela beleza física e pelas artes marciais. S. Sebastião é tido pelo mais belo dos santos e Yukio era fraco e feio, sofrera tuberculose em criança. Então praticou artes marciais e até boxe para melhorar o seu aspeto. Continuando a imitação, organizou uma milícia de jovens samurais, com o fim de restabelecer o estatuto divino do imperador Hiroito, perdido após a Segunda Grande Guerra. São Sebastião, lembremos, foi capitão da guarda do imperador Diocleciano. Essa milícia tinha por nome Tatenokai, ou Sociedade do Escudo. O escudo é um dos mais conhecidos objetos mágicos, recordo o de Aquiles, fabricado por Hefesto, para dar proteção a este herói que, já de bebé recebera uma invisível armadura de invencibilidade, à exceção, como sabemos, do calcanhar. Objetos idênticos são as espadas, como Excalibur, cálices como o Graal, chaves como as do filme Matrix, beijos que despertam princesas de sonos de cem anos e transformam sapos em príncipes, harmónicas cuja música anuncia a morte, como no filme Aconteceu no Oeste, gamelas que transformam terra em ouro, como a de Saramago no Evangelho segundo Jesus Cristo, anéis, como os nupciais, e fiquemos por aqui com os exemplos, pois são incontáveis os maravilhosos objetos que levam heróis e super-heróis a sair vitoriosos das mais difíceis tarefas.
O anel apresenta uma versão mais larga, o círculo, ou, se quiserem, o cerco. E é assim que a aldeia gaulesa onde vivem Astérix, Obélix, Panoramix e outros -ixes não foi tomada ainda pelas legiões de Júlio César, não só porque o mago Panoramix, com o gui, a poção mágica, torna mais fortes que Hércules os seus habitantes, mas também porque a aldeia está cercada, protegida por uma cerca, um anel que separa os bons, os gauleses, dos maus, os invasores romanos. A cerca define as formas de um cinto, separa do vulgar o mundo mágico.
Etimologicamente, a palavra, do latim circa, significava em volta, em círculo. Hoje, a cerca pode ser quadrada e não será ocioso dizer que a palavra “jardim”, que tantas flores e até o Paraíso traz ao nosso espírito, em tempos remotos designava apenas um espaço protegido com cerca.
Uma cena bem ilustrativa da separação entre o que está protegido dentro do círculo e o perigo fora dele figura num dos filmes western spaguetti de Sergio Leone, O bom, o mau e o vilão. Os três cowboys preparam-se para se matar uns aos outros numa praça circular. Do lado de fora, fica o cemitério, com uma cova aberta. Enquanto o candidato à cova se mantém dentro do círculo, nada de mal acontece. Porém, vai recuando para fora dele, de tal maneira que, quando recebe a bala mortífera, é projetado diretamente para dentro da cova que já o esperava no cemitério.
Tenho uma história do círculo para vos contar. Uma vez, o superior de uma associação que pratica um rito florestal, La Renouée, convidou-me a visitar o seu templo, na Flandres. Aproveitando um colóquio em Paris, em 2013, apanhei o TGV e segui para Lille, onde me foram buscar. Eu esperava um templo à semelhança de uma ermida, uma casa, enfim, ao menos, uma barraca. Não, o templo é a própria floresta, um recinto desenhado nela pelo guardião, ao andar em círculo entre as árvores, com um varapau. Em suma, é o gesto que edifica o templo. Dentro do círculo, que objetos litúrgicos observei? O meu amigo teve de me chamar a atenção ou eu nem os veria: uma grande bigorna, enferrujada, que nenhum estranho que por ali passasse consideraria mais que ferro-velho, e uma couve esférica, decerto um repolho, pendente como lustre de uma das árvores. A bigorna, que logo me trouxe à memória o livro de Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, Ferreiros e Alquimistas, na tradução portuguesa, fácil seria dizer que era o altar onde o ferreiro-mor fabrica espadas, escudos e cintos mágicos. Quanto à couve, prestava homenagem a Mère Catou, padroeira de La Renouée, que em tempos remotos ajudava os lenhadores e carvoeiros, dando-lhes alimento material e afetivo.
Não poderia acabar sem referir que o mais liderante de todos os objetos, e decerto concordareis comigo, é também de todos o mais material: o dinheiro.