MARIA ESTELA GUEDES
Enviado para «Ixquic: Antología Internacional de Poesía Feminista»
Milhares de mulheres
Anualmente
Sofrem agressões físicas
Sob a diagnose antropológica
E médica de «mutilação
Genital feminina»…………………………………………..
Não na pátria de Ísis
Não no Iémen
Nem no Senegal
De onde tais práticas são conhecidas,
Sim em França, em Portugal,
No mais civilizado continente,
Este que em Paris fez brilhar como símbolo
Material e espiritual
A Luz que nos esclarece a mente.
E também
Como tremendo disparate
É uso lancetar com lâmina fina
Esse botão de carne sensível
Que endurece e como delicado pénis cresce
Entre certos grupos índios da
Inesperadíssima Colômbia………………………………..
Porque se repetem os gestos antigos
Em partes do mundo outrora sem parentesco
Nem conexão geográfica?
Ter-nos-ão os deuses instruído?
Pelo seu desejo de penetração?
Ou porque em dada altura
Teria sido esse o melhor remédio?
Ou terá sido o nosso ancestro símio
Ainda caudado e repulsivo
O autor de tão macabros autos?
Chamaremos nós Tradição
Ao conjunto de atrocidades
Do nosso Pai, não Adão, sim o Macaco?
Mutilemos a genitalia feminina!
Rasguemos, cortemos a pele frágil,
Na sua humidade tímida………………………………………..
Porquê? Com que objetivo?
Se a cência só sabe que esse botão
A que Orson Welles chamou rosebud
É o órgão do prazer feminino
Eu, com o privativo saber de mulher
Garanto que o clítoris é o órgão
Próprio para a fêmea selecionar o macho.
Escolhe o que não tem pressa,
O que aspira o perfumado botão de rosa
O que saboreia, o que delicadamente
Aflora a pele com um beijo,
O que acaricia, o que nunca afasta do teu
O corpo dele……………………………………………………
Escolhe, ó mulher!, o que te sacia
Sexualmente, o que te dá proteção e filhos
E não o que é dono de searas e carneiros, músculos,
Pénis grosso e comprido!
E assim, impossibilitando a mulher de escolher
A tradição, a religião, o homem, o Estado
Fosse lá quem fosse
Pôs termo à sabedoria feminina
E passou ele a reinar
Mandando capar as meninas.
É certo que tais práticas
Figuram no código penal
Como ofensas corporais
E são punidas pelos tribunais.
Hoje é uma vergonha até
Precisarem esses gestos símios
De menção no livro das leis.
O avanço que sobre a mutilação faraónica
Já tomámos, deuses santos!
Milénios passaram mas, diz-se, os neandertais
Permanecem entre nós…………………………………………………………..
Claro que sim, a lei é mil vezes mais avançada
E democrática do que as práticas ancestrais
Dessa tradição que desculpa o crime
Com razões religiosas e tribais.
Deuses e sacrifícios!
Como se Deus, tendo existido,
O clítoris não tivesse criado
Por ser preciso!
Deus a exigir terror e sangue
Flagelação e mulheres desvairadas
Mortandade………………………………………….
Mas que Deus seria este psicopata
Sedento de sangue e gritos?
Já o Macaco a erguer-se sobre as patas
O cérebro ainda enevoado
As emoções em bruto e o medo de ser
Ferido, roubado ou comido
É mais convincente como autor
De tantas atrocidades.
Maria Estela Guedes (1947, Britiande, Portugal). Dirige o Triplov e a Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências (www.triplov.com). Escritora, cultiva géneros vários, entre eles, poesia e ensaio (diversos títulos, em Portugal e no estrangeiro). Neste campo, tem dois livros sobre o poeta Herberto Helder: Herberto Helder, Poeta Obscuro, Lisboa, 1979; e A obra ao rubro de Herberto Helder, São Paulo, 2010. No ensaio, a referir trabalhos sobre a Carbonária e sobre temas de História Natural. Em 2017 viu publicada uma antologia de poemas bilingue, traduzida em romeno, Dracula draco, com chancela da Academia Internacional Oriente-Ocidente. Como dramaturga, foram levados à cena dois espetáculos seus: O lagarto do âmbar, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1978; e A boba, no Teatro Experimental de Cascais, em 2009, com encenação de Carlos Avilez.