JOSÉ PASCOAL
DESMENTIDO
Quero ter os pés no chão,
A cabeça no lugar,
O calor da tua mão,
Uma vista para o mar,
Sem qualquer ilusão.
IDA E VOLTA
Desces as escadas usadas
Pelos bombeiros em caso
De acidente, má doença,
Fogo, fuga de felino,
E voltarás a subir
Ao sol posto no telhado
Com cinco chagas no rosto.
PEREGRINO CEGO
Um homem segue o seu caminho
Sem entender o que se passa
Nos campos grandes,
Nas boas vistas,
Onde a memória decresce
No senso inverso dos cartazes
E das roseiras desnudadas.
SABER PERDER
Perdi peso,
Perdi altura,
Perdi as chaves do reino,
Perdi o cheiro dos jardins,
Perdi o sabor das cerejas,
Perdi amigos de longa data,
Perdi amigos de Peniche,
Perdi o terceiro botão do casaco preto,
Perdi a vontade que nunca tive,
Perdi o sono numa oficina de reparações,
Perdi o espectáculo das marés vivas,
Perdi o meu isqueiro de bolso,
Perdi o meu pai à beira do Tejo,
Perdi o meu exemplar do Amor de Perdição.
FIGURAS FEMININAS
Elas dançam como se andassem
Sobre as águas
E enxugam os meus olhos
Com o fio de cabelo
Que lhes estreita a cintura
E demoram-se no meu sexo
Como num sonho
Descontínuo
E despedem-se
Como se se despissem
No quarto interior
Da criança que já fui
E que fica num quarto
Andar como se dançasse.
José Pascoal
José Pascoal (Portugal, Torres Vedras, 1953). Poeta, publicou: Sob Este Título, Editorial Minerva, Março de 2017. Antídotos, Editorial Minerva, Março de 2018. Excertos Incertos, Editorial Minerva, Maio de 2018, Ponto Infinito, Editorial Minerva, Setembro de 2018. Dirige o blog Gazeta de Poesia Inédita, em: https://gazetadepoesiainedita.blogs.sapo.pt/