SURREALISMO E TECNOSSURREALIDADE: RESUMO As rotas do Surrealismo e da tecnossurrealidade parecem convergir em vários pontos. O Surrealismo que rima com "recusa global", liberdade, onirismo, alquimia das palavras, colagem, absurdo, "automatismo psíquico", está a informar a literatura contemporânea, da ficção científica, à narrativa digital. Por seu turno, a tecnossurrealidade está a mergulhar-nos na "alucinação consensual", na identidade "cyborg", na comunicação ubíqua que o ciberespaço propicia. Esta convergência é da ordem da alucinação ou da realidade?
Nenhum movimento nasce de pé. O Surrealismo, cuja aparição se situa por volta de 1917, sucede a duas ou três décadas de experimentalismo estético e de polémica, quer na criação literária quer na criação plástica. Dentre as famílias literárias, uma das mais fortes, na poesia, é a dos "malditos", isto é, a geração que chega a nós através do romantismo, do modernismo, do surrealismo e a Beat Generation, que não se pode vincular directamente ao surrealismo. A subversão, a luta contra o preconceito, a ortodoxia, o historicismo, é a sua espada, o amor, a poesia e a liberdade são o seu estandarte. Não só na literatura, mas aí principalmente, se subverte a noção de género, ou de estilo ou de configuração estética. O "cadáver esquisito" dos surrealistas, o cut up dos dadaístas, e depois de Burroughs, ou a escrita experimental dos anos 70, para lá da inovação que representam os livros de Faulkner, Joyce ou Borges, introduzem-nos nesse rio que nenhuma margem domestica e que tem hoje ramificações na literatura contemporânea, incluindo a ciência ficção. O mapa do surrealismo é tão desvairado como as suas expressões. Floriano Martins demonstra-o relativamente à América Latina e a todo o continente americano (3). Entre nós, sem grandes expoentes românticos, tivemos alguns marginais no simbolismo e decadentismo, entre os primeiros modernistas e, depois, no pós-guerra, grupos a que Luiz Pacheco chamou o "surreal lisboeto", reunidos à volta das tertúlias de café, muitos deles não sendo propriamente surrealistas, identificados muitas vezes como decadentistas. Herberto Helder, na sua "Edoi Lelia Doura" tenta encontrar uma genealogia da poesia portuguesa moderna não coincidente com a "nomenklatura". Também a "Sião" (1987) criou uma família própria com nomes raramente citados: Manuel de Lima, Pedro Oom, Jorge Fallorca, Álvaro Lapa, entre outros mais obscuros, mas todos na nebulosa surreal ou beat ou abjeccionista, onde falta Melo e Castro e Alberto Pimenta. Não falta a esta família o pendor abjeccionista, a declaração veemente, o romantismo exacerbado e a invenção verbal, o elogio ao "amour fou", com laivos de lirismo e raiva ou sexo. Ora, de que falam estes poetas malditos? Da "porcaria da vida", escreve Alexandre Melo no prefácio a "Sião". Ou da "magia", o termo é da preferência de Herberto que fala de uma "arte do fogo e da noite" no prefácio a "Eloi Lelia Doura". Nesse tempo a literatura e a vida misturavam-se e a vida política inquietava. A poesia era uma forma de conhecimento, o poeta um visionário, anarquista e libertário. O surrealista tem uma relação singular com o "real", logo com as coordenadas essenciais em que o real se move: o espaço-tempo. O absurdo, a tradição do "verbal nonsense" que Samuel Backett, Albert Camus, Harold Pinter, entre outros, praticavam, a mistura de realismo com a mais desvairada fantasia e com elementos mágicos são elementos que transvasam para o Surrealismo. O real surrealista é um espaço de intervenção ou subversão, com ortodoxos (Breton e Péret) e heterodoxos (Éluard, Cesaniny e O'Neill). António José Forte (1931-1988) que aparece com "Uma Faca nos Dentes" (4), é afinal um surrealista menor, com um programa claro de acção poética, mas apresenta os traços da poesia surrealista mais ortodoxa: torrencialidade, uso da anáfora, procura de uma beleza convulsiva, oscilação entre a violência e o lirismo, imagens fortes e insólitas, um tom de estranheza, desespero, revolta. Cito de "O Poeta em Lisboa" um poema luminoso:
Poeta menor, mas imbuído do espírito romântico e que nos faz compreender o surrealismo português, que foi o que de mais moderno teve durante décadas a nossa literatura.
A ideia do automatismo segue o surrealismo como uma sombra: mais do que a ideia de jacto, a ideia de colagem, ou de cut up. Floriano Martins, escrevendo sobre "Surrealismo & Estados Unidos", não deixa de nomear Kamrowski, que teve uma destacada importância na experimentação da escrita automática surrealista, ao lado de William Baziotes (1912). Mas há surrealistas que não perfilam esse aspecto. Olga Orozco (1920-1999) escreve: "Estive próxima deles mais por amizade do que por identidade. Creio que tive em comum o sentimento de outros planos da realidade que não são estes, a valorização do onírico, a emoção exaltada da liberdade, a justiça e o amor, mas nunca fiz automatismo nem poemas subconscientes." Aquilo que Borduas e Riopelle fazem derivar da noção de automatismo é a necessidade duma arte não figurativa. Borduas define o "automatisme surrationnel" como uma "écriture plastique non préconçue" e descreve o processo: "une forme en appele une autre jusqu'au sentiment de l'unité". Desde o começo há ruptura com o figurativo. Borduas rompe com este parti pris e romperá com a retórica onírica da pintura surrealista (6). Jorge de Sena lembra que o tão celebrado automatismo das primeiras definições que Breton dá do Surrealismo peca por ignorar os estudos de linguística moderna e os estudos de psicologia da linguagem que mostram a que ponto um automatismo romanticamente "inspirado" corre o risco de ser apenas um psitacismo baseado na fragmentação heteróclita de memórias literárias (7). André Lamarre, em diálogo com Floriano Martins, diz que o Surrealismo teve um efeito desencadeador no nascimento da "Action Painting" e na evolução estética da Escola de Nova Iorque. Não podemos esquecer que mais ainda que a colagem, o objecto é uma criação típica do Surrealismo. Sarane Alexandrian recorda que G. C. Lichtenberg (1798) foi o primeiro a publicar no almanaque de bolso de Göttingen o inventário de uma colecção de instrumentos absurdos, que continha "uma colher dupla para gémeos", "uma cama imóvel para poder andar no quarto durante a noite" e "uma faca sem lâmina nem cabo" (8). Este gesto, para lá do seu alcance desconstrutivo e crítico, prenuncia a despragmatização dos objectos que o formalismo russo pratica. O estranho, o nunca visto, o divinatório, o readymade substitui o utilitário, o funcional. Aí está o objecto-poema de Breton (1935), o objecto móvel de Giacometti (A Hora dos Traços, 1930), o objecto encontrado interpretado de Dali (Elefante Surrealista), o Ser-objecto, outra invenção de Dali, a caixa-objecto, de Joseph Cornell, a assemblage de André Masson e Max Ernst (Êtes-vous Niniche? 1956). Não há movimento que não tenha o seu manifesto. Assim o tecnorrealismo, em oposição ao "tecnoutopismo" que seria o tecnossurrealismo. Que diz o tecnorrealismo? Várias coisas simples: as tecnologias não são neutras. A Internet é revolucionária, mas não utópica. O Governo tem um papel importante a desempenhar na fronteira electrónica. A Informação não é conhecimento. A Informação tem de ser protegida. Compreender a tecnologia poderá ser uma componente essencial de uma cidadania global. As publicações do manifesto na Internet provocaram um enorme debate e produziram alguns textos de alta qualidade. A maioria são críticos relativamente aos tecno-utópicos do Wired e do Mondo 2000 e também os chamados "digital elite". Um dos melhores ensaios é "The God of Digerati" de Jedediah S. Purdy, publicado em epn.org/prospect/37/37purdf.html. A tese de fundo é esta: "Life means not carbon-based organisms, but any self-ordering, self-reproducing system, a vivisystem. We are vivisystems but so, too, are computers networks, market economies, and hybrid patches of nerve and silicon". Coda Um fosso intransponível separa o surrealismo do existencialismo, seja ele de cariz heidggeriano, seja de cariz sartriano. Em causa está a função instrumental da linguagem, o carácter idealista que pesa sobre o surrealismo e aquilo a que se pode chamar "a carne do imaginário". Michel Leiris, sublinha André Lamarre, critica a Sartre a sua "execução sumária do surrealismo". Podemos apontar ao surrealismo a sua compulsão neoplatónica: "For this writing to be really automatic, the mind has to succeed in placing itself in a condition of detachement from the solicitations of the outside world as well as from his own individual practical or sentimental preoccupations" (17). Este tema converge com a exigência que fazem as pessoas de uma experiência extática do ciberespaço mediada tecnologicamente. Apropriar-se do surreal, ou entrar na "consensual hallucination" do ciberespaço é transcender os constrangimentos do corpo. Nada foi tão exposto, encenado, decomposto como o corpo no Surrealismo. No caminho para o inconsciente, o corpo era um meio, como a escrita automática, para atingir a unificação da personalidade. E nesse caminho, não raro o corpo atrapalha. Donde a sua decepação, evidente na pintura de Dali, Vitor Brauner ou Magritte. Que há de comum entre o Primeiro Manifesto do Surrealismo de Breton (1924), o Manifesto Cyborg de Haraway (1991) e o Manifesto Tecno-realista (1998)? Antes de mais, a utopia da libertação: da transcendência, da hieraquia, da linearidade, do real, com a entrada em cena da repetição, da multiplicação, do mecanismo, do automatismo, da replicação maquínica, a abolição da contradição lógica, do império do desejo (18). O surrealismo questiona fundamentalmente a noção de real. Mas o real é aquilo que os humanos decidem que seja, do interior dos seus limites. A ideia (romântica) de génio tornou-se suspeita. Não somos Dali que entrava deliberadamente em estados alucinatórios induzidos que ele definia como "Um método espontâneo de conhecimento irracional, baseado na objectivação crítica e sistemática das associações e interpretações delirantes". A noção de "realidade absoluta" de que fala o romântico alemão Novalis é, obviamente, romântica. A democratização da função artística não passava de um sonho rousseauista. Aos surrealistas interessavam formas de criatividade que emergiam do acaso, como decorre da experiência da escrita automática. Mas este movimento privilegiou sempre mais a esfera privada do que a esfera pública: "The approval of the public is to avoided like the plague. It is absolutely essential to keep the public from entering if one wishes to avoid confusion" (19). A subjectividade reconfigura-se (pense-se em Patchwork Girl de Shelley Jackson). A concepção mítica do espaço (20), a escrita automática (Ernest-Jan C. Wit), o estudo das vanguardas, dos jogos, das amostras (Dada), das colagens surrealistas, indiciam uma convergência notória entre o surrealismo e a tecnossurrealidade em que, volens nolens, já entrámos. De facto, o ciberespaço parece promover, mais do que qualquer meio, o mundo da imaginação, do sonho e da alucinação. A inteligência artificial contemporânea (conexionismo) e a vida artificial são engenharias deleuzianas (21). A máquina desterritorializa, como Deleuze e Guattari prevêem (1980). Se a "transcendência é uma doença especificamente europeia" (Deleuze e Guattari 1980: 18), a solução para sair dela é sair do imperialismo da linguagem, da sobrecodificação do Déspota, das ilusões linguísticas (62; 65) e entrar na replicação maquínica que pode ser implementada em múltiplos domínios. A replicação computacional - a vida artificial - é uma outra forma de desterritorialização. Não é já Madame Bovary um romance virtual? E não é o virtual "a própria carne do homem", como nos diz Michel Serres (22)? Gibson descreve o seu ciberespaço ficcional como uma "consensual hallucination" (23) em que "data dance with human consciousness, where human memory is literalized and mechanized, where multinational information systems mutate and breed into startling new structures whose beauty and complexity are unimaginable, mystical, and above all nonhuman" (24). Neste espaço, as alucinações e a realidade como que se fundem. Neste espaço é o sonho que comanda a vida. A realidade torna-se multifacetada, os caminhos bifurcam, Bosch e Eckhart irrompem neste espaço, deslocando os objectos e as imagens em que nos reconhecíamos. Sabe-se que estas duas populações, a dos seres vivos e a dos objectos podem entrar em conflito. Breton acreditava que a resolução do que desde sempre aflige a humanidade passa pelas bodas do sonho e da realidade "numa espécie de absoluta realidade, a surrealidade". Os inventores das novas tecnologias, N. Wiener, Alan Turing e Claude Shannon não deixaram de alertar para os perigos que a cibernética poderia representar para a democracia. Quando se inventa o ascensor, perdem-se as escadas. Que se perde neste trânsito? Como conviver com a colagem, a prótese, o contradiscurso, a comunicação? Criará a boda anunciada por Breton uma nova sensibilidade, crítica, ecológica, amorosa? O Surrealismo pregava a libertação na arte e na vida, dos recursos do inconsciente. A arte, como a vida, há-de ser um movimento que transcende os seus limites, sem os abolir. Ou é alienação. Afinal, a maior virtude do Surrealismo estava em abarcar, assumir e exceder o real. A ciberliteratura não apenas desafia algumas das convenções mais arraigadas que tocam aquilo a que chamamos "realidade", como desafiam mesmo a própria noção de literatura (J. P. Balpe). A tecnossurrealidade invadiu todos os domínios do real. O conflito entre verdade e ilusão, tornou-se, mais do que nunca, o núcleo daquilo a que Heim chama a Metafísica da Realidade Virtual ou então aquilo que Haraway evoca com os termos de "identidade cyborg". O teatro de Artaud visava transformar alquimicamente o espectador de modo a acordá-lo para uma visão inédita do real. Devemos simultaneamente assumir que não somos operários cegos no novo século da cibercultura e devemos estar premunidos contra uma certa ideia de interactividade: ao fim e ao cabo, a interactividade como categoria estética é um puro desenho de interface. Também não podemos ser prisioneiros dos produtores ou dos cientistas que definem a realidade ou do círculo dos criadores que são os críticos. Temo-nos visto sempre de fora, do ilimitado, para falar do dentro, do limitado, como espectadores omniscientes. O signo, no universo da imagem técnica é efémero, em devir, um acontecimento e não uma pura representação. O ciberteatro de Pedro Barbosa, por exemplo, dá ao espectador um espaço de decisão nunca dantes experimentado: sairemos dessa caverna mais alucinados ou mais conscientes dos limites que definem o nosso espaço de decisão? _____________________ 1 Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX siècle, Le Livre des Passages, ed. Du Cerf, 1989, p. 561. 2 Walter Benjamin, Oeuvres, tome II, Folio/Gallimard, p. 130. 3 Floriano Martins, O Começo da Busca, 2001. No prelo, Un nuevo continente, Edições Andrómeda, Costa Rica, 2003. 4 António José Forte, "Uma Faca nos dentes", Parceria A. M. Pereira, 160 págs. 5 Reginald E. Allen, Greek Philosophy: Thales to Aristotle, New York: Free Press, , p. 21. 6 Ver Entrevista de Floriano Martins com André Lamarre: Dialogue autour du surréalisme au Canada, in triplov.com (dossier surrealismo). E também neste número da Atalaia-Intermundos. 7 Jorge de Sena, prefácio a Manifestos do Surrealismo, Moraes Editores, 1969, p. 14. 8 Sarane Alexandrian, O Surrealismo, Editorial Verbo, 1973, p. 145. 9 José Luis Molinuevo, "Entre la tecnoilustración y el Tecnoromanticismo", in Domingo Hernández Sánches (ed.) Arte, Cuerpo, Tecnología, Ediciones Universidad Salamanca, 2003, p. 33 10 L. McCaffery, "An interview with William Gibson", 275. 11 Richard Coyne, Technoromanticism, MIT Press, 2001, p. 192. 12 D. J. Haraway, "Cyborgs and symbionts: Living together in the new world order", XIV. 13 L. McCaffery, "An interview with William Gibson", 272. 14 Richard Coyne, op. cit., p. 190. 15 Max Ernst citado em Breton, Manigesroes of Surrealism, 275. 16 Breton, Manigesroes of Surrealism, 174. 17 Breton, Entretiens, com André Parinaud, 81. 18 O manequim (Chirico), esse obscuro objecto de desejo, vai ser um dos elementos do Surrealismo. 19 Breton, Manifestoes of Surrealism, 177. 20 Richard Coyne, Technoromanticism. Digital narrative, holism, and the romance of the real, MIT press Cambridge, Massachutts London, 2001. 21 Alistair Welchman, "Machinic Thinking", in Keit Ansell Perason (ed) Deleuze and Philosophy. The Difference Engineer, Routledge, London and New York, 1997. 22 Michel Serres, "Le virtuel est la chair même de l'homme", Le Monde, Mercredi 2 janvier 2002. 23 W. Gibson, Neuromancer, 51. 24 McCaffery, "An interview with William Gibson", 264.
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