O OUTRO E MESTIÇAGEM CULTURAL NA AMÉRICA LATINA DO SÉCULO XVI: Introdução Estudos recentes sobre a pintura dos Índios da América Latina, em particular dos Astecas do México, revelam a visão do conquistador, por parte do conquistado - Incas, Maias e Astecas, portadores de civilizações ancestrais muito avançadas, dizimadas pelos conquistadores espanhóis (1). Por outro lado, estudos muito recentes sobre a história local da Índia e também de pinturas de autóctones indianos vêm dar a visão do conquistado em relação ao conquistador português e pôr em causa o modo como os Portugueses construíram o seu império (2). Estas questões são atinentes ao Outro e ao Olhar sobre o Outro por parte quer dos conquistadores portugueses e espanhóis, quer dos conquistados em relação aos conquistadores. Um ensaio recente de Luís de Sousa Rebelo actualiza os parâmetros históricos, nos quais os cronistas portugueses do século XVI inserem a sua visão do Outro (3). O aprofundamento destas questões sobre o Outro, no século XVI, e dos cronistas quer portugueses quer espanhóis continua a ser muito necessário. Entre os cronistas da conquista da América, a obra de Diego Durán, escrita no segundo quartel do século XVI e apenas publicada em 1867- Historias de las Indias da Nueva España e Islas de la Tierra Firme (4) - ocupa um lugar diferente e novo, quer sobre a conquista dos espanhóis quer sobre o conhecimento do Outro. O objectivo deste breve trabalho é fazer uma síntese sobre a visão e o conhecimento do Outro através da mestiçagem das culturas, na obra de Diego Durán; comentar fragmentos da sua obra sobre o modo como Mocteczuma (5), rei da cidade do México e imperador dos Astecas, reagia ao que a tradição asteca considerava como sinais da aproximação do conquistador que por sua vez era identificada com o regresso dos deuses antigos, em especial de Quetzalcoatl. 1. Da pregação à analogia e à mestiçagem cultural Diego Durán nasceu em Espanha em 1537, foi viver para o México, para a cidade de Texcoco, com a sua família aos cinco ou seis anos de idade, tendo entrado no convento dos Dominicanos em 1556. Desde muito jovem interessou-se pela cultura dos astecas. Para escrever a sua história, baseou-se em testemunhos orais de índios, pinturas, aspectos materiais da sua cidade, investigou tudo o que era possível, na sua própria época. A sua obra, escrita em 101 capítulos, cada um repartido em fragmentos, abrange a cultura e a religião dos astecas (primeira e segunda partes); a história dos astecas (terceira parte) desde a sua origem (a saída de Aztlán) até à conquista. Concluiu a sua obra em 1581 e morreu em 1588. Incluiu desenhos no seu texto que lhe conferem um maior valor documental. O manuscrito permaneceu inédito até 1867. Realizou uma importante obra como dominicano evangelizador dos índios e fez um estudo muito aprofundado da religião dos astecas. Foi a sua tarefa de evangelizador que o levou a fazer este trabalho aprofundado, pois considerava que só se pode trazer o evangelho cristão se se conhecer a fundo o paganismo, as adivinhações, as práticas idólatras desses povos. Durán queixa-se dos evangelizadores que não conhecem a fundo a língua dos índios, dos que queimaram os livros antigos foi o caso do primeiro bispo do México, Juán Zumarraga - porque dificultaram mais a evangelização -; os que destruíram desenhos, pois caíram na ignorância da cultura e da religião dos índios. A ignorância é o contrário da evangelização, segundo Durán, exprimindo a sua convicção de que o seu livro só poderia contribuir para ninguém poder dar mais o argumento da ignorância da cultura e religião dos astecas (I, 19). Se não se conhecer a língua, nem a cultura, nem a religião, pode-se cair na prática da analogia ou do whisful thinking, o que seria de evitar como caminho único, para um evangelizador, embora acabe por ser inevitável. Partindo do conhecimento e não da ignorância, a sua posição é rigorosa: a conversão ao cristianismo deve ser total e “não nos devemos contentar com as aparências cristãs que os índios fingem adoptar à nossa frente”(I, 8). Segundo Durán, o evangelizador deve mostrar aos índios o seu desgosto perante as idolatrias, para que elas sejam arrancadas pela raiz, pois a pregação procura a condenação da idolatria. Durán dedica uma parte da sua obra a aconselhar que não haja sincretismo religioso, que não se misturem as práticas e festas cristãs com práticas e festas pagãs. Quer saber se quem vai à missa na catedral no México não será para adorar os deuses antigos, uma vez que as colunas da catedral da cidade do México assentavam sobre serpentes de plumas, em pedra. Também quer certificar-se se os espectáculos a que por vezes assiste representam alusões secretas à antiga religião. Se, por um lado, não aceita que se queimem livros, aceita que balneários sejam destruídos porque sabe que a prática de banhos, como a de comer cachorros mudos, oferecer banquetes ou ir ao mercado - todos esses actos têm um significado religioso e deverão ser abolidos. Numa sociedade ritualizada, hierarquizada e codificada como a dos astecas tudo está ligado à religião. Por vezes, aceita que um índio argumente que essas práticas não têm a ver com as antigas tradições religiosas, que eram apenas costumes e maneiras de eles fazerem as coisas. Se Durán não é defensor do sincretismo religioso, todavia o cristianismo mexicano ainda hoje tem marcas de sincretismo, o que é quase inevitável em povos com tradições tão ancestrais. Afigura-se-nos importante abordar o outro lado da questão do rigor da pregação aos índios. Apesar de querer evitar a analogia como companheira da ignorância da cultura dos índios, Durán escreve para leitores europeus e acaba por fazer analogias sociais- a tribo com o nome do seu chefe; o país dividido em regiões como a Espanha; a semelhança na hierarquia religiosa; a semelhança das suas roupas a casulas, das suas danças à sarabanda. Os jogos são muito parecidos com o xadrez- o alquerque, com pedras pretas e brancas. Algumas analogias parecem por vezes forçadas, mas necessárias para o leitor europeu. As analogias mais surpreendentes acontecem no plano religioso. As religiões antigas dos astecas têm semelhanças com a cristã, em particular nos rituais: os índios têm os seus sacramentos; o Lume Novo que eles acendem de cinquenta e dois em cinquenta e dois anos é como o Lume Novo da Páscoa; o grande tambor que tocam ao pôr do sol é como os sinos das trindades: “Consideravam a água como purificadora do pecado. Nisso os índios estavam no bom caminho porque Deus colocou o sacramento do baptismo na substância da água e é por ela que somos lavados do pecado original” (I,19). Refere o mesmo sobre a veneração de uma trindade incarnada de Tezcatlipoca O Nosso Pai (Tota); o Nosso Filho (Topiltzin) e o Coração dos Dois (Yolometl) que, segundo Durán, “honrando todos três separadamente e todos três como uma só unidade.Temos aqui a prova de que esta gente sabe alguma coisa acerca da Santíssima Trindade (I,8). Durán encontra inúmeras semelhanças entre a antiga religião dos índios, a judaica e a cristã. Ele próprio tinha a tendência para a mestiçagem cultural em que a mistura de cultura se faz mais por analogia quer por diferenças. O modo como analisa o encontro entre a civilização indígena e a civilização europeia faz com que Durán possa ser considerado um exemplo raro de mestiçagem cultural do século XVI. Embora condenando o sincretismo religioso, fazia parte do seu ponto de vista, do seu olhar sobre o Outro, encontrar analogias. Um dos argumentos que vai deduzir é que os índios já deveriam ter recebido, em épocas recuadas, um ensinamento cristão pela presença de um pregador que, segundo ele, terá sido a apóstolo São Tomé (I,9). Interrogou os índios sobre os seus antigos pregadores e eles eram cristãos, embora os índios misturem esse ensinamento com a idolatria. Na memória dos Astecas, São Tomé mantém a aparência de Topiltzin, outro nome de Quetzalcoatl. No encadeamento de analogias e semelhanças, encontramos o passo seguinte, na obra de Durán sobre uma prova não documental da presença do apóstolo Tomé, identificado com Topiltzin - O Nosso Filho - da anteriormente referida trindade de deuses: Uma vez que eles eram também criaturas divinas, racionais e susceptíveis de serem salvas, Ele não pôde tê-los deixado sem um pregador do Evangelho. E se isto é verdade, esse pregador é Topiltzin que veio a este país. De acordo com a história ele era escultor e cinzelava magníficas imagens em pedra. Lemos que o glorioso apóstolo São Tomé era um artista nesse ofício (I,1) Nos livros I e II, Durán apresenta semelhanças dos índios não só com os cristãos mas também com os judeus, a ponto de considerar que os Astecas seriam uma tribo perdida dos filhos de Israel. Ouviu falar que tinham queimado um livro escrito em caracteres estranhos, censurou e deduz que terá sido escrito em hebreu. (I,1). As provas são também analogias: astecas e judeus multiplicaram-se depressa, sofreram um terramoto, receberam o maná divino. No início do livro III (III,1) afirma: “No fim de contas poder-se-á afirmar que eles são judeus e pertencem ao povo hebreu. Com isto não nos arriscamos a cometer um grande erro, dada a sua maneira de viver, as suas cerimónias, os seus ritos e superstições, os seus presságios e fingimentos, tão próximos dos judeus que em nada diferem”. No livro II, sobre a história dos astecas refere apenas as semelhanças entre ritos astecas e judeus. É provável que Diego Durán tenha pertencido a uma família espanhola de judeus convertidos e se tenha dedicado a encontrar mais as semelhanças e menos as diferenças entre judaísmo e cristianismo. Ele próprio também tinha uma predisposição para a mestiçagem cultural, tornou-se mestiço de cultura, sobretudo pelo seu interesse profundo pela cultura indígena. No plano religioso, cinquenta anos depois da conquista ainda se mantêm relações entre a religião cristã e a tradicional. Ao censurar um índio por continuar com práticas de idolatria, Durán ouve a resposta que os índios ainda se encontram nepantla = a meio, ou seja, não estando ainda enraizados na religião cristã, estavam a meio caminho entre acreditarem em Deus, na religião cristã e manterem os antigos ritos. Segundo Todorov, que seguimos de perto para esta primeira parte do presente trabalho (6), “Durán, sem se aperceber disso, esboça desta maneira aquilo que é também o seu próprio retrato, ou melhor, escreve a alegoria do seu próprio destino” (7). 2. Partilha de vida, estudo, procura de verdade, tradução, história Diego Durán viveu com os índios, partilhou as suas privações, procurou compreendê-los, como muitos missionários. Não ficou de fora e afirma: “Aqueles que ficam de fora, aqueles que nunca quiseram tomar parte nestes assuntos compreendem poucas coisas” (II,3). Ao integrar-se nas comunidades dos astecas, imita alguns comportamentos e afirma sobre os missionários: “eles tornaram-se animais com os animais, índios com os índios, bárbaros com os bárbaros, homens alienados nossos próprios costumes e da nossa nação” (II,3). Era muito sensível à melancolia de alguns cânticos que eram dançados: ” vi por vezes dançar esses cantos ao mesmo tempo que outros dirigidos à divindade, e eles são tão tristes que me senti repassado de melancolia e pesar” (I,21). Em nosso entender trata-se da partilha da alma profunda de um povo que pode exprimir a sua profunda melancolia em cânticos por vezes dançados (8). Diego Durán imita o gesto de empunhar bordões floridos em vez de velas, numa cerimónia religiosa cristã, como no culto a Tezcatlipoca: “Vejo estas coisas mas fico calado, pois verifico que todos fazem o mesmo. Então pego no meu bastão florido e sigo-os” (I,4). Trata-se do silêncio do respeito pela expressão da diferença, do uso de flores em vez de velas, como acontece noutras religiões, em particular na hindú. Em nosso entender, é este o respeito pela diversidade de expressões da alma profunda de um povo, em gestos e rituais das suas festas, cerimónias religiosas, cantares. Daí essa sua compreensão da diferença e do Outro. Não se trata do híbrido no sentido do monstruoso negativo, do disforme, mas do híbrido como aceitação do diferente, resultante da partilha com a vida e o quotidiano de um povo de uma civilização a um tempo ancestral e avançada. É uma forma de mestiçagem cultural consciente e simples, no quotidiano e nas pausas do quotidiano, através das festas e/ou celebrações. 2.2.O deslumbramento como respeito pela diferença do Outro Durán manifesta dificuldades na tradução de cânticos de nahuatl para espanhol, pela complexidade das suas metáforas. Todavia persevera no estudo aprofundado dos cânticos astecas, quer sobre “coisas divinas” quer sobre “coisas humanas” e ao compreendê-los, admira-os, fica deslumbrado “vejo que se trata de sentenças admiráveis” (I,21). O deslumbramento é uma manifestação de respeito pelo Outro, pela diferença e não pela semelhança. Ao estudar as estátuas de deuses, procura uma explicação, na cultura asteca: “A cabeça de Tezcatlipoca estava rodeada de oiro polido, terminando com uma orelha de oiro com baforadas de fumo”...”isto significava que ele escutava as orações e os pedidos dos desgraçados e dos pecadores” (I,4). Mesmo que não encontre todas as explicações, procura sempre compreender e interpretar de acordo com os sinais da cultura asteca. É dos raros homens do século XVI que compreende a um tempo a cultura europeia e a cultura índia e sabe traduzir sinais de uma cultura para a outra. É-lhe possível estabelecer a comunicação entre as culturas europeia e índígena e interpretar mensagens bilaterais. 2.3. Durán tradutor e cronista da verdade das crónicas indígenas É clara a procura da verdade segundo o relato das crónicas dos próprios índios, a sua própria investigação de manuscritos, iconografia e pintura, sem forjar nenhuma invenção sua. No plano da narração da história dos astecas (livro III), Durán considera-se a si próprio, em primeiro lugar, um cronista tradutor para espanhol da célebre crónica índia conhecida como “Crónica X” (designação de especialistas do século XX), uma narrativa épica da história asteca, escrita em nahuatl cujo original se desconhece mas que serviu para obras de outros cronistas, como as Tezozomoc, cronista índio mexicano, e de Tovar: “A minha única intenção foi traduzir o natural para a nossa própria língua espanhola” (III,18); “Tudo aquilo me parecia tão incrível que, se eu não estivesse a seguir a minha Crónica, e se não encontrasse a mesma coisa noutros manuscritos, pintados ou escritos, não me atreveria a afirmar essas coisas com receio que me chamassem mentiroso” Neste aspecto, Diego Durán procura contar apenas a verdade segundo o olhar e a própria escrita e a pintura do Outro. Todavia ele torna-se o próprio narrador e não apenas tradutor; não há um sujeito narrador intermediário entre ele e a crónica dos astecas. Para além de tradutor, pela sua procura de fidelidade à verdade, segundo a “Crónica X” dos astecas, Durán assume o estatuto de cronista porque procura, como os cronistas épicos, os escultores, os pintores astecas, imortalizar os heróis épicos da sua história (III,1). Durán não é espanhol nem asteca, é dos primeiros mexicanos. O autor da Crónica X deveria ser um asteca, o leitor de Durán seria espanhol; Durán faz a ponte entre todos e é ele próprio uma notável figura cultural. 2. 4. A história da Conquista, na perspectiva de Durán No que respeita à história recente - a história da conquista - Durán vai consultar outras fontes, sobretudo as pessoas que considera dignas de fé. Na história do fracasso do imperador Mocteczuma, a causa desse fracasso é atribuído ao seu orgulho desmedido, o que revela da parte de Durán um ponto de vista cristão. Por outro lado, Mocteczuma é representado, num desenho do manuscrito de Tovar, como uma figura mestiça, com rosto barbudo e expressão europeia, embora com os símbolos de todos os seus atributos de imperador asteca. São duas maneiras de mestiçar a visão de Mocteczuma e o fracasso do seu império. Em dado momento, os seus compatriotas espanhóis são referidos como “eles”; o cronista asteca da Crónica X refere-se a “eles” como os seus compatriotas astecas. Assim aproveita relatos de conquistadores espanhóis que sejam da sua confiança, dando preferência a um conquistador religioso (III, 74) Na sua opinião, o fracasso de Mocteczuma “foi um erro e uma atrocidade tremenda” (III,74). Deste modo, a história da Conquista, na versão de Durán, situa-se a meio caminho entre as narrativas indígenas e as narrativas espanholas como a de Gomara. Nem os astecas nem os espanhóis pensavam como Durán. Por isso ele não é nem espanhol nem asteca, é dos primeiros verdadeiros mexicanos da história. Na sua versão da destruição do templo de Huizilopochtli pelos espanhóis da qual eles conseguirem escapar, Durán considera que foi por misericórdia divina, não no sentido que se esperaria, mas porque deveriam ficar vivos para expiarem os seus pecados. Ao tornar-se mestiço cultural, Durán deixou de ter um papel de mediador entre índios e espanhóis. Ao evoluir ao longo da sua obra, acaba por atribuir aos seus personagens os seus próprios pensamentos como mestiço cultural. Acaba por identificar o seu pensamento com o próprio objecto observado, alterando o próprio processo do conhecer e do saber. Acaba por manter a ambivalência da sua visão do Outro índio por que neles também encontra ambivalências: um povo muito inteligente mas obcecado pelo paganismo; um povo muito bem organizado socialmente mas cheio de crueldade e de violência. Durán deixa tudo em aberto para que o leitor compreenda esta mesma ambivalência, sem tomar nenhum partido; espanta-se como um povo que não é ignorante tem manifestações que considera infantis e detonadoras de ignorância. Será um modo de sentir a sua complexidade sem os julgar, aceitando-os nos seus limites e idiossincrasias. Também havia crónicas que tentavam exprimir as idiossincrasias dos índios Incas e Maias. Foram escritas por índios e por espanhóis. Algumas crónicas tinham uma visão que se aproximavam da visão da mestiçagem cultural, embora não de maneira tão completa como a de Durán. Francisco Cervantes de Salazar escreveu a Cronica de la Nueva España, sobre a conquista do México. Durán não hesita, como Bartolomeu de Las Casas, em condenar o comportamento violento dos espanhóis, ao quererem pregar a fé cristã com a espada e a tortura. Daí considera que, apesar de os índios terem recebido a fé cristã, nunca sofreram tanto como no ano da conquista: "Foi no ano Um Vime (do calendário asteca) que os espanhóis chegaram a estas terras. O benefício para as almas (dos índios) foi uma coisa importante e benéfica, pois receberam a nossa fé, que se multiplicou e continua a multiplicar. Mas nunca eles sofreram tanto como nesse ano” (II,1). 3. Mocteczuma e os Sinais (livro III) É sabida a importância do recurso às práticas de adivinhação e à procura de sinais que, dentro da sua surpresa ou anormalidade, na sua diferença, eram presságio do futuro. Do presságio caminhava-se para a profecia. O calendário e a hora do nascimento também tinha importância para o futuro. Daí a importância da astrologia, da adivinhação e da profecia. É sabido que os astecas viam em Cortez e os conquistadores espanhóis a figura dos antigos deuses, em particular de Quetzalcóatl, os quais voltavam ao seu império, como tinha sido profetizado. Apareciam muitos sinais antes e durante o desembarque dos estrangeiros. Moctezuma reagiu com espanto, medo, justiça e crueldade a tudo o que se relacionou com o aparecimento desses sinais. Diego Durán faz uma descrição muito pormenorizada desses sinais e das reacções do imperador Moctezuma, no livro III da sua obra. Assim, quando apareceu um imenso cometa que o atemorizou, Moctezuma mandou chamar astrólogos, agoireiros, adivinhos, feiticeiros e encantadores que havia em toda a cidade do México e perguntou-lhes se não tinham observado o cometa e como interpretavam esse sinal. Todos responderam que não tinham visto o cometa, razão pela qual foram alvo da justiça de Moctezuma- primeiro encarcerados para morrerem de fome e em seguida mortos, com seus filhos, para que todos fossem exterminados e substituídos por outros que soubessem manter a vigilância dos astros e sinais. Ao mandou chamar o rei da cidade de Tezcuco, ele respondeu-lhe que o cometa já tinha aparecido havia alguns dias a cair sobre o México e era sinal de que haveria grandes calamidades, haveria muitas mortes, a perda de todos os poderes sobre o território mexicano e que era com a permissão do “senhor das alturas, do dia, da noite e do ar”. O próprio imperador Moctezuma chora o seu destino de ter de assistir à destruição do México; despedem-se ambos com muita tristeza, lamentando não serem pássaros para poderem fugir. Segundo o comentário de Durán, os astrólogos, feiticeiros, adivinhos, agoireiros e profetas passaram a ter a devida vigilância sobre as estrelas, de noite, e a prognosticar sobre o cometa, pressagiando mortes, fome, peste, guerras, mortes de príncipes e grandes senhores, “do modo como cada um entendia, ou o diabo lhes dava a entender”. Durán condena todas estas práticas, diz que todos estes intérpretes de sinais é “gente endemoninhada” e que toda a sua obra era mais feita pelo demónio que pelo que designa como “ciência natural” (cap. LXVI, livro III). 3. 2. Tentativa de fuga de Moctezuma Outro sinal que pressagiava a crueldade foi a visão de uma águia que arrebatou um lavrador para um buraco num monte para lhe dizer que se visse Moctezuma e lhe tocasse com fogo num músculo ele não sentiria. Era como um sonho. Porque, na realidade, Monteczuma acordou de um sonho com dor no músculo e teve de ser tratado. Procurou esconder-se numa cova chamada Cicalco, governado por Uemac onde os homens eram imortais, havia muitas águas cristalinas e flores. Enviou por duas vezes corcundas e anões que, por trazerem respostas negativas, foram mortos. À terceira vez enviou principais da sua corte que trouxeram resposta positiva, na condição de Moctezuma fazer 80 dias de penitência, a qual foi cumprida, seguida de alguns cuidados sobre o seu império, para de seguida fugir e esconder-se em Cicalco. Ao preparar a fuga numa canoa, foi surpreendido pelo sacerdote do templo texiptla- que, “era a semelhança do deus- que foi acordado do seu sono para ir surpreender Moctezuma a fugir para Cicalco. Conseguiu convencer Moctezuma da vergonha que seria para ele e para o seu povo se fugisse. Moctezuma pediu segredo ao texiptla para não divulgar a sua tentativa de fuga. Tornaram-se amigos. Segundo Durán, o texiptla manteve o segredo apenas para nem ele nem a sua geração ser toda destruída. 3.3. A chacina de velhos, sacerdotes e feiticeiros O medo do Outro ser invadido pelo conquistador ocidental é desnudado no medo de Moctezumna, nas crónicas índias e na Crónica de Diego Durán. Seguindo a adivinhação e o mau presságio, através do sonho ou da tradição oral de velhos e velhas, de sacerdotes e de feiticeiros, mandou chamar primeiro os velhos e velhas que lhe disseram que tinham tido sonhos sobre a destruição do imperador e das suas terras; seguiu-se a chacina destes velhos e suas famílias, por ordem de Moctezuma. Os sacerdotes disseram que tinham visto um rio com um caudal incontrolável a entrar no palácio de Moctezuma, razão pela qual foram presos e condenados a comerem ração até morrerem. Em último lugar, os feiticeiros de todas as partes do México foram chamados. Com receio de serem mortos, disseram que não tinham sonhado nem ouvido nenhum mau presságio sobre o imperador e o seu império. Foram presos, conseguiram fugir, mas foram de novo chamados e obrigados a fazer declarações que se resumem na chegada muito próxima de quem há-de destruir o imperador e o seu império; foram de seguida todos chacinados, as suas mulheres e filhos, as suas casas derrubadas até brotar a água da terra. Na sequência de tanta chacina para acabar com maus presságios, Moctezuma entristecia-se e culpabilizava-se por saber que mulheres e filhos de feiticeiros estavam inocentes. Há pois uma gradação no extermínio dos maus pressagos e na auto-consciência de Moctezuma da sua própria crueldade e medo. 3.4. A chegada de um navio de Cuba Um importante episódio é o da chegada de um navio com pessoas que não eram do México foi anunciada a Moctezuma por um índio sem orelhas e sem dedos polegares- figuração possível de um monstro, como o inevitável desconhecido - que dizia vir do mundo infernal, foi encarcerado e conseguiu fugir sem deixar rasto. Os principais do reino do México diziam a Monctezuma que podia ter esse índio preso que o que ele dizia era verdade. Então Moctezuma, para tentar dominar o medo, mandou fazer toda a espécie de jóias e das melhores comidas que lhes foram enviadas por Tillancalqui, acompanhado de um escravo, os quais, ao aproximarem-se do porto, se esconderam no topo das árvores e esperaram pela manhã para verem sair os marinheiros dos barcos. Viram sair homens de pele branca e barba, vestidos de cores variadas. Aproximaram-se e comunicaram entre si por gestos para indicar a comida, os presentes e que vinham da grande cidade do México cujo rei lhes pedia que, se quisessem voltar, esperassem primeiro que ele morresse para lhe suceder que ele lhes deixaria tudo. Os espanhóis pediram que os índios começassem por comer as iguarias que traziam, pois eles as desconheciam; de seguida imitaram os índios a comer e comeram de tudo, receberam os presentes e agradeceram. Havia na tripulação uma índia que servia de intérprete pois conhecia a língua dos méxicas. Disse que estes tripulantes do barco não iam ficar nem aportar, mas que partiriam de novo para muito longe. Em troca, os espanhóis deram comida e presentes (9). Ao regressarem com presentes e biscoitos, Moctezuma recebeu as notícias, os presentes e a comida, tranquilizou-se com as notícias. Quando provou um biscoito e viu que era doce, pensou que era comida de deuses, comida de Quetzalcoatl. Os sacerdotes, enterraram-no com incenso, uma procissão e grande solenidade num templo dedicado a Quetzalcoatl, em Tulan. Todavia Moctezuma mantinha o medo secreto até ao dia em que Fernando Cortez chegou a terra com três navios. 3.5. A pintura , o Outro e a chegada de Cortéz Entretanto Moctezuma pediu ao maior pintor e o mais velho do México que pintasse os espanhóis conforme o relato de Tillancalqui, mas que mantivesse o segredo sob pena de ser morto com a sua geração. Pintou-os com pele branca, barbas largas, vestidos de diversas cores, com chapéus na cabeça e espadas à cintura. Este passo da obra de Durán, fundamentado na Cronica X, é fulcral para a visão e a espera do Outro conquistador por parte do Outro ameríndio a ser próximo conquistado. A pintura é um ponto de partida para um processo gradativo de inquirição sobre o Outro conquistador que há-de vir. Moctezuma começa por inquirir pintores de todas as partes do México para ver se conheciam figurações do Outro semelhantes às que mandou pintar sobre os espanhóis, através do relato de Tillancalqui. As respostas sucessivas dos pintores confirmam que não conhecem pinturas semelhantes, mas, por outro lado, descrevem pinturas que constituem a expressão do medo do Outro desconhecido que há-de vir, através de figuras híbridas, de monstros como figuração do Outro diferente, do inimigo potencial e/ou inevitável que os antepassados diziam que havia de chegar e apoderar-se do México: figuras com um só olho “como cíclopes”; outros com um único pé; outros semi-homens e semi-peixes, semi-homens e semi-cobras (Cap.LXX, livro III). Os últimos pintores inquiridos remetem Moctezuma para o ancião Quilaztil, muito entendido em pinturas antigas, disposto a ser morto por dizer a verdade: que os homens que viriam apoderar-se do México seriam homens brancos com barbas, vestidos de diversas cores, com chapéus na cabeça, com outros homens montados em animais como veados ou águias, outros com espada à cintura: fundamenta a verdade numa pintura muito antiga que lhe foi deixada pelos seus antepassados, na qual se vê um navio e os homens assim pintados, coincidindo com a pintura recente dos recém-aportados no México. Moctezuma identifica-os a todos e consola-se por lhe ter dado presentes e por eles terem dito que não voltariam. O velho Quilatzil avisa-o que é mentira e que eles voltarão ao México o mais tardar dentro de três anos, pois vieram descobrir o caminho certo, voltam para trás a meio caminho, para regressarem com mais barcos. À medida que avança a proximidade do Outro, a verdade dos factos próximos sobre a vinda do Conquistador, a crueldade de Moctezuma recua e já não manda matar este ancião, como fizera a todos os a velhos.velhas, adivinhos, feiticeiros, a todos os que foram chamados desde o início da desnudação do medo e da procura da verdade. Quilatzil é convidado para ficar na companhia de Moctezuma. Começou, todavia, a expropriar os senhores das terras para as dar a todos da sua família, não hesitando em continuar a matar e a tiranizar até à vinda dos três navios espanhóis, da armada de Cortez, três anos depois. Segundo a tradição oral dos índios, corroborada por Durán, os espanhóis eram deuses. Assim que as sentinelas do porto de Chalchihucueyecan deram pela chegada dos três navios de Cortéz, os mensageiros caminharam quatro dias e noites para avisarem Monteczuma cuja reacção foi ordenar que todas as terras desde o porto até à cidade do México os recebessem com abundância de comida, boas palavras, pois eram deuses. A mensagem que Moctezuma lhes envia e que é interpretada pela mesma índia que viera com a tripulação de havia três anos - Marina, ou “língua”- é que o trono de Moctezuma está à espera desses deuses para nele se sentarem. Após esta etapa de acolhimento de homens como deuses, o medo volta a apoderar-se de Moctezuma que fecha o círculo das suas diligências junto de agoireiros, feiticeiros, encantadores para que provoquem sono nos espanhóis, enquanto eles vêm a caminho da cidade do México, lhes possam fazer mal ou que sejam mordidos por bichos venenosos enquanto dormem. Os feiticeiros, agoireiros e encantadores nada conseguem, porque os espanhóis estão sempre acordados, matam de imediato os bichos que deles se aproximam para os morder. Não podem fazer nada porque eles são deuses. Moctezuma, ao ver que irá ser destruído, pede que lhe guardem a mulher e os filhos e mantém a esperança dos poderes dos feiticeiros e agoireiros sobre os espanhóis quando eles chegarem à cidade do México. Epílogo Da pregação à analogia e à mestiçagem cultural por analogia ou por respeito pela diferença, partilha de vida, mimetismo ou deslumbramento como respeito pela diferença, Durán, portador de ambivalências e de rara presença de mestiçagem cultural, tradutor e cronista das “verdades” das crónicas indígenas dos astecas, estudioso das pinturas, esculturas, cânticos e práticas de adivinhação e de feitiçaria dos indígenas, sabe que o seu discurso, embora traduza predominantemente a visão do Outro conquistado misturada com as suas próprias ideias, será lido pelo conquistador e o leitor europeu. O presente acompanhamento do texto de alguns capítulos do livro III remete para a importância da ideia de destino colectivo através dos sinais cuja interpretação atemorizam Moctezuma, rei e imperador dos Astecas, no México, desnudam o seu medo e melancolia, o medo e melancolia do seu povo, sem esquecer a crueldade e a atrocidade sobre os seus velhos, adivinhos, feiticeiros, o seu povo, embora mantenha até ao fim a esperança de que os praticantes de feitiçaria possam neutralizar ao vinda e invasão do Outro europeu, monstro porque Outro, desconhecido que paira como medo e potencial inimigo que se vai aproximando da concretização histórica. Os conquistadores espanhóis são monstros no imaginário do medo, figuras prenunciadas e pintadas nas pinturas mais antigas, reconhecidas pelos anciãos, deuses no imaginário do regresso. Esta foi a primeira abordagem que nos foi possível fazer da obra de Diego Durán, nem espanhol nem asteca, mas mexicano, mestiço de cultura, pregador cristão, aberto ao indianismo da América Latina do século XVI. Junho de 2003 __________ NOTAS (1) Vide Serge Gruzinski, L’Amérique de la Reconquête peinte par les Indiens du Mexique, Paris, Unesco, 1991. Esta obra apresenta imagens das pinturas indígenas estudadas por Durán e incluídas na sua obra - Codex Durán -. Vide Serge Gruzinski, op. cit. pp.. 16-17 (O cerco dos Méxicas aos espanhóis refugiados num palácio); pp. 28-29 (A chegada dos Espanhóis a Tlaxcala - Codex Durán, cap. LXXIII)); pp. 38-39 (Os Espanhóis na costa mexicana - chegada de um navio de Cuba Codex Durán, cap. LXIX); p. 50 ( a construção dos bergatins -barcos de ataque naval - pelos espanhóis, Codex Durán, cp. LXXVII). (2) Vide Conferência de Sanjay Subrahmanyan, integrada na Conferência internacional sobre “The Self and the Other”, Institute of Romance Studies, Universidade de Londres, Março de 1997. (3) Luís de Sousa Rebelo, “As Crónicas Portuguesas do Século XVI”, in Fernando Gil e Helder Macedo, Viagens do Olhar, Porto, Campo das Letras, 1998, pp.175-201. (4) Diego Durán, Historia de las Indias de Nueva España e Islas de la Tierra Firme, 2 vols, México, Porrua, 1967. (5) Como há grafias variadas deste nome e de outros nomes astecas, optámos por esta por ser das mais simples, ao longo do presente trabalho. (6) Todorov, Tzvetan, A Conquista da América, Lisboa, Edições Litoral, 1990, pp. 247-256. Até à data da apresentação do presente trabalho, não tivemos acesso à obra completa de Durán, apenas a alguns fragmentos muito importantes que nos foram amavelmente enviados do México por email, por Hector Mandajuano. Por isso seguimos de muito perto o texto de Todorov que constitui uma excelente introdução à compreensão da mestiçagem cultural em Diego Durán. Foi a propósito de estudos sobre o Outro, no século XVI, que fizemos esta primeira abordagem da obra de Diego Durán. (7) Todorov, Tzvetan, A Conquista da América, p. 258 (8) Todorov, op. Cit,. p.258 Considera esta tristeza como a perda de esperança de converter os índios ao cristianismo. (9) “Espanhóis” é o termo usado por Durán
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