BOI DESCOMEDIDO
Manuel Bandeira (1886-1968), Opus 1
“Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o eu morto,
Eu morto, eu morto, eu morto.
Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o milton morto,
Milton morto, milton morto, milton morto.
Eu morto, eu descomedido,
Eu espantosamente, eu
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é milton morto,
Eu morto, milton morto, boi morto”.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR
botão de ouro
primavera
dente-de-leão
rosa
ervilha
cicuta-menor
campainha azul
dulcamara
orquídea
junquilho
narciso
lírio amarelo
flor-de-lis
sépalas
pétalas
androceu
gineceu
ela e eu.
O Jardim Simultâneo
BREVE E LONGÍNQUO
“… você marcou a minha vida, viveu, morreu na minha história, chego a ter medo do futuro e da solidão que em minha porta bate… eu corro e fujo destas sombras, em sonhos vejo este passado, e na parede do meu quarto, ainda está o seu retrato, não quero ver pra não lembrar, pensei até em me mudar… lugar qualquer que não exista o pensamento em você”. Edson Trindade/Tim Maia
Breve, como breve é a luz da lua cheia
Durante o eclipse solar da vida humana.
Breve, como breve é a sombra da noite
Durante o sono da vida como um lençol.
Breve, como breve é o sonho do amor
Durante o intervalo das ilusões perdidas.
Breve, como breve é a existência do corpo
Durante o trajeto sobre o planeta terra.
Breve, como breve é a presença do espírito
Durante o convívio quando se pensa em anjos.
Longínquo, como longínqua é a essência dos seres
Durante o percurso no trafegar das ruas atribuladas.
Longínquo, como longínquo é tudo o que se vê
Durante o passeio da câmara em panorâmica no alto.
Longínquo, como longínqua é a felicidade íntima
Durante a procura pelo convívio ideal a mais de um.
Longínquo, como longínqua é a música do Yes
Durante o embalo da paixão não correspondida.
Longínquo, como longínqua é a ideia de um Deus
Durante o desespero batendo nas grades da prisão.
O Jardim Simultâneo
CACTOS
No meio da tarde
No meio do mundo
No meio da sala
estamos plantados
como uns cactos.
No meio da vida
No meio do sonho
No meio do amor
estamos atados
como uns escravos.
No meio do caminho
No meio da raiva
No meio do medo
estamos presos
como uns condenados.
No meio de tudo
No meio de nada
No meio sem meios
estamos perdidos
como uns abortados.
No meio da rua
No meio da noite
No meio da merda
estamos sozinhos
como uns deserdados.
No meio de nós
estamos morrendo
como os antepassados
No meio ele mesmo
estamos vivendo
como num trabalho forçado.
Somos uns cactos
num deserto de homens.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
CARNAVAL, BANDEIRA E EU
Quero banhar-me nas águas sujas
Quero banhar-me nas águas sórdidas
Sou a mais solitária das criaturas
Me sinto só.
Confiei às mulheres os meus amores
Caí de quatro pelas sarjetas
Cobri minha alma de decepções
Valei-me Manuel Bandeira.
Vozes da morte contai a história
Da pessoa boa que sempre fui
E eu dormia ouvindo o ruído calmo
Do bambuzal
A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
CHANGING OF THE GUARDS
“eu cavalguei por ruínas
e era preciso ter coragem
para a troca de guarda”
Bob Dylan
Algo me diz que é chegada a hora
da troca de guarda. devo sair.
Estive 35 anos de pé junto ao balcão
vigiando os esquifes dos homens mesquinhos
que idolatravam a coroa de latão que traziam
sobre o caixão de madeira nobre e já podre.
Minha tarefa era vigiar a paz ascética
daqueles defuntos coroados em vida
para que ninguém profanasse as suas
tumbas de mármore e flores de plástico.
Aceitei a tarefa porque estava desempregado
e não tinha coisa melhor para fazer ou que fosse
mais produtiva para a humanidade do que ser guardião
de velhos esqueletos adornados de cobre e ferrugem.
Mas nada é definitivo na vida
e não existe melhor liberdade
do que a liberdade financeira
e então eu fui ficando ali enquanto
me dessem água e comida de marmita.
Agora, depois de 35 anos só fazendo isso
vieram me dizer que eu não sirvo mais
para aquele trabalho de alta complexidade
e que o tempo havia me deixado sequelas
incompatíveis para o exercício da função.
Era chegada a ocasião propícia para a troca
de guarda e que era preciso eu ter coragem
para o acerto de contas. Arquejei-me sob o
peso da sentença de morte que me davam.
Devo ir para a cova mais próxima e simples
nos fundos do outeiro de que fui guardião
de homens célebres durante 35 anos da minha
vigília inútil e desnecessária. Outra pessoa
virá amanhã tomar o meu lugar no balcão.
Antes, porém, ela se encarregaria de sepultar-me
num lugar bem afastado e distante das luzes
que adornavam a ala nobre que vigiávamos,
e eu cavalgaria agora por ruínas pestilentas
que eram devidas pelo meu posto de sentinela.
Da Essencialidade da Água
CHUVA NOTURNA
A chuva no asfalto
leva papéis/cigarros
e o vômito de ontem.
Amanhã novos resíduos
virão para preencher
o vazio do meio-fio.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
CICLO I
A vida,
em todas as suas formas,
revela a sutileza de um mágico
que hipnotiza a todos
para que não vejam seus truques falhos.
Os homens,
em todas as suas crenças,
revelam a idiotice de um asno
que acredita em tudo
por não ser capaz de discernir o óbvio.
Os homens,
com todos os seus mágicos,
revelam a estupidez da espécie
que acredita na vida
como sendo o caminho para a salvação.
A vida,
com todas as suas armadilhas,
revela a esperteza de um camaleão
que dissimula aos homens
a sua completa inutilidade como veículo.
O Acaso das Manhãs
CICLO II
Quando a chuva neutralizar
a esperança das flores, no chão
uma semente irá se desenvolver
à imagem e perspectiva de tornar-se,
sintetizando em si todo o anseio dos homens
para que de seus ossos não se faça apenas
um cemitério, mas também um canteiro.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
CLARO ENIGMA
Chovia. E a música folk
me induzia a dedilhar um
passado de nostalgia. Eu
estava fotografando um
cemitério para selecionar
as fotos que entrariam na
versão final do livro fúnebre.
Anoitecia. E a pintura escura
me impelia a encerrar logo
o trabalho, faltando ainda
algumas covas próximas
ao muro da parte de cima,
mais ou menos a duas alas
antes de se chegar na escada.
Amanhecia. E eu alucinado,
pois havia reconhecido uma
catacumba de uma moça bonita
falecida há pouco e eu não sabia:
quis aproveitar o momento único
na terra fofa que envolvia o corpo.
O Jardim Simultâneo