Chico Buarque de Hollanda, que neste 19 de junho completa 60 anos, é um artista ímpar, o mais importante da cultura brasileira na contemporaneidade. E não só isso: trata-se de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. É plural - e de uma qualidade extraordinária em tudo o que faz. Como compositor, dramaturgo e, mais recentemente, romancista está entre os grandes artistas, não só do Brasil, mas do Ocidente. Para repetir o que disse o professor Antonio Candido em texto que me enviou para o livro Chico Buarque do Brasil, que organizei, eu diria, para começar, aos homens de bem deste país: "Louvemos Chico Buarque". Chico, logo no início de sua carreira, foi tido como a "única unanimidade nacional" (conforme frase famosa de Millôr Fernandes). Neste momento a imagem que fica dele é a do "bom moço", o menino que toda família queria ter. Mas logo em seguida, já em 1968, essa imagem é rompida ao ser representada a peça Roda viva , dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Depois, nos anos 70, ele se torna um emblema de resistência à ditadura. E passa a ser o artista mais perseguido pela censura do governo militar. Portanto, duas imagens fortes ficam dele - a do moço (quase) ingênuo, sereno, terno, que agrada sobretudo ao público feminino; e o artista participante, preso até a medula ao seu tempo, que se identifica com as minorias e denuncia a ditadura. Aqui ele agrada sobretudo à esquerda - mas vai muito além dela ao se tornar, por assim dizer, um centro, uma referência ética. Enfim, um artista de duplo engajamento - com a palavra e com a sociedade. A palavra de Chico é muito bem elaborada, como pouquíssimos na MPB e, mesmo, na nossa ficção. E sua visão de sociedade - sempre ao lado dos mais fracos, dos dominados e/ou oprimidos - é profunda, penetrante.
Talvez se perceba uma certa diferença entre o cancionista ou mesmo o dramaturgo dos anos 70 em relação ao romancista mais recente. Nos anos 70, Chico fazia uma arte de resistência, uma arte mais explicitamente engajada. O recado era, em certos casos, mais direto - daí a perseguição da Censura. O romancista de hoje continua intervindo, mas fazendo uma crítica mais implícita. Preocupa-se com o indivíduo isolado, interagindo com a metrópole, no contexto de uma sociedade globalizada. Há, porém, um aspecto que é comum a todos os momentos da produção do autor de "Apesar de você" - tanto nas canções como nos romances Chico demonstra uma grande habilidade com a palavra. Em tudo o que produz, Chico é um artesão da palavra. Além disso, os romances dele, do ponto de vista formal, estrutural, dialogam com o que há de mais significativo na ficção moderna.
Gosto muito dos três romances de Chico, mas tenho uma certa preferência pelo "Benjamim". Acho o protagonista, Benjamim Zambraia, muito bem elaborado. A questão do tempo narrativo é extraordinária nesse texto. O romance é um longo flashback da vida de um ex-modelo fotográfico, que se encontra às portas da morte, diante de um pelotão de fuzilamento. O personagem volta ao seu passado, mobiliza a memória em busca de sua verdadeira imagem, de uma identidade difusa. É preciso, certamente, ter muita habilidade, um grande domínio da técnica literária para se escrever uma narrativa como essa. Sou também ficcionista e sei o quanto isso é difícil.
Em 1973, num dos primeiros ensaios significativos sobre a poesia de Chico, intitulado "Chico Buarque: a música contra o silêncio", Affonso Romano de Sant'Anna mostrava que as composições de Chico podiam, àquela altura, ser divididas em duas fases: "A primeira seria exemplificada por seus três primeiros long playings e a segunda pelo disco [...] Construção . Entre uma fase e outra está a peça Roda viva , encenada em 1968, sinal de ruptura com a imagem de bom moço que o sistema publicitário queria impor ao poeta". Na primeira fase, o poeta "se encontra em disponibilidade, à toa na vida , fazendo considerações líricas sobre os pequenos incidentes do dia-a-dia". Na segunda fase, ele "já não se deixaria levar pelos instantes de festa e música da vida, arrebatado pela banda ou pelos cordões carnavalescos". Aqui se manifesta "o profissional no exercício da construção musical, articulando tijolo com tijolo num desenho lógico ". O "lirismo de 'A banda' cede à dramaticidade do 'Cotidiano' e à tragédia da 'Construção'". Ainda no que se refere à primeira fase: a música é, em várias canções de Chico, uma atividade "destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar as verdades que os homens querem calar". A música é "possibilidade de comunhão", "lembrança do paraíso perdido". Daí aparecerem a banda, o carnaval (ou "um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade") e o samba como metáforas da expansão ou "abertura para a vida".
Em seguida a esse estudo de Affonso, o professor e ensaísta Anazildo Vasconcelos da Silva, em livro publicado em 1974 ( A poética de Chico Buarque ), irá caracterizar a poesia de Chico como "universal" e não "circunstancial". Diz Anazildo: "[...] Enquadrar a poesia de Chico Buarque a uma circunstância, qualquer que seja a natureza desta circunstância, é negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma. Acreditamos [...] que a poesia de Chico Buarque não se prende a um contexto circunstancial, mas a um contexto humano existencial do século XX. Sua poesia, como a poesia de um Fernando Pessoa, de um Carlos Drummond de Andrade ou de um João Cabral de Melo Neto, pretende significar o homem do século XX inserido na trajetória da humanidade".
No início dos 80, o crítico musical Tárik de Souza, fazendo um balanço da atividade do compositor, chamaria a atenção para a versatilidade de Chico. Tratava-se de um compositor bastante diverso, que, até aquele instante, já teria incursionado por vários ritmos e gêneros: tango, marchinha, samba (de preferência), quadrilha sertaneja, vários tipos de valsa... Por sua vez, a professora Adélia Bezerra de Meneses, no livro Desenho mágico - poesia e política em Chico Buarque (1982), vai dizer que a produção de Chico assumiria "aquelas modalidades que restaram à poesia do nosso tempo", ou seja, o "lirismo nostálgico" ("A banda", "Maninha", "Realejo"), a "variante utópica" ("Bom tempo", "Primeiro de maio", "O que será") e a "vertente crítica" ("Pedro pedreiro", "Construção", "Vence na vida quem diz sim", "Sabiá", "Bom conselho"). As três modalidades seriam "uma forma de resistência".
É ainda Adélia Bezerra de Meneses que, discutindo os personagens da canção de Chico, afirma: "Já se tornou um lugar-comum dizer-se que a canção de Chico Buarque privilegia o marginal como protagonista, pondo a nu, assim, a negatividade da sociedade. Desde o primeiro disco, com 'Pedro pedreiro', passando por 'Meu guri', 'Pivete', 'Iracema', 'Levantados do chão', 'Assentamento', os despossuídos têm voz e vez. Malandros, sambistas, pedreiros, pivetes, prostitutas, pequenos funcionários, sem-terra, mulheres abandonadas. Todo um povo que será reunido, por exemplo, num grande 'Carnaval', e que engrossará o enorme 'Cordão' - daqueles que 'não têm nada pra perder'. Ele os torna 'protagonistas da História', dá voz àqueles que em geral não têm voz. É assim que em 'O que será', a grande canção utópica, é com essa gente - os desvalidos e oprimidos - que a grande Utopia acontecerá". Adélia dirá também que Chico teve de quem herdar a sua "radicalidade". E explica o sentido de "radical": "[...] A gente pode dizer que Chico é um 'radical', filho de um historiador, Sérgio Buarque de Hollanda, que é um dos mais significativos representantes daquilo que Antonio Candido chama de 'pensamento radical', que se caracteriza por uma oposição fundamental ao pensamento conservador. E consiste, fundamentalmente, nesta sociedade de tão fundas sobrevivências oligárquicas, na atitude de tirar o foco das classes dominantes e abordar o 'dominado' - mirar antes a senzala do que a Casa Grande".
Chico é também identificado como o cantor da mulher. As canções de Chico que tematizam a mulher, segundo analisei em 1995 em meu trabalho de mestrado (ainda mantido inédito em livro), podem ser divididas em 3 vertentes temáticas: 1) as conformadas ("Cotidiano" e "Mulheres de Atenas"; 2) as prostitutas ("Mambordel", "Las muchachas de Copacabana", em que é enfatizado o aluguel do corpo por questões de sobrevivência; "A mulher de cada porto" e "Tango de Nancy", em que são tratados os desencontros amorosos, decorrentes, em grande medida, da própria condição e/ou do próprio ofício de prostituta); e 3) as desejosas ("Ela e sua janela", "Bárbara", "O que será (Abertura)", "Mar e lua" e "O meu amor" - canções que dão voz ao desejo sexual feminino, mas é um desejo interditado, que não se realiza com o seu objeto, refletindo uma questão cultural, já que a sociedade tende a identificar a agência sexual ao homem; caso único em Chico em que o desejo feminino se realiza plenamente é o de "O meu amor"). Há ainda uma outra vertente que identifiquei e que chamei de "A saída por cima", na qual, no desencontro amoroso com o homem, a mulher sai sempre "por cima" (exemplo é "A Rita").
Por conta da profunda admiração que tenho pelo artista, resolvi organizar um livro sobre sua obra - Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Biblioteca Nacional, 2004). A idéia foi fazer um livro que abordasse a obra de Chico na sua diversidade. Ou seja, textos sobre as canções, o teatro e a ficção do autor. O livro é um balanço interpretativo - o primeiro feito no Brasil - da obra desse, repito, artista ímpar. E, como digo no texto de apresentação, muitos dos significados da obra do compositor/escritor são revelados no livro. Que foi, para concluir, a minha forma de louvar Chico Buarque... |