REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 






José Pinto Casquilho.....

 José Bonifácio – notas para uma pesquisa

 

Resumo

José Bonifácio nasceu português e morreu brasileiro, cidadão do Império. Foi um político notável a ponto de ser nomeado como ‘patriarca da independência’ do Brasil. Era um naturalista e humanista de formação, a que se associava uma visão inspirada no despotismo esclarecido. A envergadura do seu pensamento e da sua agenda política é tal que foram sucedendo ao longo de dois séculos reformas que preconizava, e ainda hoje tem aspectos que estão na ordem do dia. O objetivo deste trabalho é embasar um projeto de pesquisa centrado no peso da componente conservacionista dos recursos naturais, nomeadamente florestais, na agenda política de então.

Abstract

José Bonifácio was born Portuguese and died Brazilian citizen of the Empire. He was a remarkable politician, appointed as ' Patriarch of independence ' of Brazil. As a naturalist and humanist he combined a vision inspired by the enlightened despotism. The scale of his thinking and his political agenda are such that they were reforms succeeding over the last two centuries which he recommended, and still today there are relevant aspects. The objective of this paper is opening a research project focused on the weight of the conservationist component of natural resources, concerning forest resources mainly, in the agenda of Bonifácio.

Résumé

José Bonifácio est né portugais et est mort brésilien, citoyen de l'Empire. Il a été un homme politique remarquable à tel point qu’il est nommé `patriarche de l'indépendance' du Brésil. C'était un naturaliste et un humaniste de formation, à laquelle s'associait une vision inspirée dans le despotisme éclairci. L'envergure de sa pensée et de son agenda politique est tel qui ont réussi au long de siècles des réformes dont il faisait l'éloge et encore aujourd'hui il y a des aspects que sont dans l'ordre du jour. L'objectif de ce travail est baser un projet de recherche centré dans le poids de la composante de conservation des ressources naturelles, notamment forestières.

Nós não reconhecemos diferenças nem distinções na família humana: como brasileiros serão tratados por nós o china e o luso, o egípcio e o haitiano, o adorador do sol e o de Mafoma.

José Bonifácio de Andrada e Silva

Faz anos que ouvi falar de José Bonifácio. Há pouco tempo chegou-me uma menção directa que me instigou: esboçar o vetor da agenda política de José Bonifácio, datada de cerca de 1821 – depois de ter retornado ao Brasil em 1819, com 56 anos de idade - nas suas componentes civilizadoras, seguindo o novo paradigma instituído pelo marquês de Pombal: mudar evangelizar em civilizar e proceder. E de entre o contexto, procuraria focar os enunciados florestais e avaliar o peso relativo no vetor transformador. Vector é uma palavra derivada dos termos latinos vehere, vectum, que se reportam a mensageiro. Não sei se a melhor maneira de estruturar a agenda política de José B. será um vetor ou um tensor.

Acho as matas tropicais uma beleza. Ocorre-me, faz muitos anos, que fui ao palácio do Ramalhão onde morara Carlota Joaquina - exilada da corte por recusar jurar a Constituição de 1822 -, e lá, na sala do fundo, estavam imagens da mata atlântica estucadas até ao tecto, com um encantamento enebriante. Disseram-me que os frescos poderiam ser atribuíveis a um dos decoradores de Queluz, assunto que nunca fui aprofundar. Fiquei tonto a andar às voltas olhando os enleados nas paredes acima com cipós e bromélias imaginárias, que ainda hoje revejo. Depois já tive oportunidade de tocá-las de verdade, atlântica ou amazônica.

Deriva

José Bonifácio de Andrada e Silva, nasceu José Antônio em 13 de Junho de 1763, dia de Santo António, filho de uma das famílias de comerciantes mais ricas de Santos, na região de São Paulo, Brasil. Depois trocou o nome pelo de seu pai, coronel.

Nasceu português e morreu brasileiro, cidadão do império, tendo-lhe sido atribuída mais tarde a designação de ‘Patriarca da Independência’, uma menção que não deixa dúvidas sobre a marca deixada na História do Brasil e de Portugal. O Brasil era reino autónomo desde 1815, alcançaria a independência como império em 1822, tomando o Ipiranga como marco, antecedido pelo Dia do Fico a 9 de Janeiro de 1821 e finalizando combates com portugueses a 2 de Julho de 1823, na Bahia.

José Bonifácio era um homem multi-versado, combativo e diligente, de escrita treinada em vários domínios e uma verve acutilante. A principal fonte em papel que consultei foram inéditos, transcritos, reunidos (e comentados) por Miriam Dolhnikoff [1]  e designados no conjunto como Projetos para o Brasil. Num de seus escritos Bonifácio faz um elogio da vontade algo schopenhaureano, ora leia-se:

A vontade é a força primordial verdadeira do universo, a que só pode morar nos grandes espíritos. Querer, querer outra vez, e querer sempre é o atributo das grandes almas, e da verdadeira masculinidade. A razão deve ficar entre esta vontade e os apetites, e da sua recíproca afinidade, coordenação e subordinação depende tudo o que há de sublime neste mundo humano.(...)

Da sua força de vontade e perseverança atestam os múltiplos graus académicos, e a quantidade de títulos e funções que desempenhou: naturalista, pesquisador, cientista, académico visitante, lente, director do Real Laboratório da Casa da Moeda, secretário da Academia das Ciências de Lisboa, combatente, tenente-coronel, desembargador, intendente-geral do Reino, ministro, banido e exilado, tutor de Pedro II, preso e julgado, e sei lá que mais [v. 2].

Na área de pesquisa da mineralogia é-lhe atribuído um papel importante na identificação, estudo ou classificação de quatro minerais, num caminho que se seguiu na descoberta do lítio. José Bonifácio foi maçon, até foi grão-mestre em 1822 do Grande Oriente do Brasil, embora aparentemente sai de seguida e funda outra loja: o Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz. Pouco tempo depois é nomeado ministro do Império. Em 1823, com sessenta anos, é banido, deportado para a Europa por seis anos, mas retorna em 1829, e fica tutor do imperador Pedro II em 1831, a convite de Pedro de Alcântara (imperador Pedro I do Brasil, rei Pedro IV de Portugal) com quem antes se tinha incompatibilizado. Nesse ano também é empossado como deputado (suplente) pela Bahia e em 1833 fica em prisão domiciliária por conspiração e perturbação da ordem pública. É absolvido em Março de 1835 e falece em Abril, em Niterói. Aparentemente terá conhecido bem na sua própria vida o exercício de compreensão da máxima hermética e alquímica, depois maçônica, a lei da analogia: tanto em cima como em baixo.

O retrato de José B., na figuração de tutor empreendida por Benedito Calixto, mostra um discípulo do legado do marquês de Pombal: cruz de Cristo notória, espadim de corte, mão direita soerguida, olhar introspetivo, sério, pena e papel, ... O despotismo esclarecido tinha a sua marca no naturalista e no humanista.

 José Bonifácio inseria-se numa linhagem intelectual iniciada pelo marquês de Pombal em Portugal, com raíz nas Luzes, no naturalismo e na linguagem maçônica, que tem um marco imprescindível em Domingos (Domenico Agostino) Vandelli, - mestre de Bonifácio com quem vem a estabelecer depois uma relação familiar -, contemporâneo e orientador das viagens do bahiano Alexandre Rodrigues Ferreira, um naturalista português que empreendeu um reconhecimento notável por vastas áreas do Brasil [v. 3].

Andrada e Silva, figurado por Benedito Calixto (r.  1902), Museu Paulista (fonte:Wiki) - José Bonifácio: 1831
 

Já em 1789, ano da revolução Francesa e em que a rainha D. Maria I refaz os símbolos de representação dos reis de Portugal, Vandelli fizera publicar na Academia Real das Ciências pelo menos quatro memórias, uma designada como: Memória sobre as produções naturais do Reino, e das Conquistas, primeiras matérias de diferentes fábricas, ou manufacturas [v. 4, 5].

Bonifácio, antes António, mas em qualquer caso José, nasceu no reinado de d. José, primeiro e único rei de seu nome de Portugal (r: 1750-1777), José Francisco..., nomes com forte remissão católica a que se juntava o título de sua majestade fidelíssima (SMF) que João V, seu pai, tinha obtido junto do papa Bento XIV, em 1748, para os reis de Portugal, após a instituição do Patriarcado de Lisboa cujo titular podia passar a reconhecer o título real.

Tópicos do programa iconográfico da estátua equestre de D. José

Se nos queremos colocar no espírito da época vivido pelas elites talvez o melhor símbolo sintético seja a estátua equestre de D. José na Praça do Comércio em Lisboa, antiga porta de entrada na “capital serpentina” – e maior marca da reconstrução pombalina do Terreiro do Paço derrubado pelo terramoto de 1755 -, como praça monumental enquadrada no programa iconográfico da alegoria do Arco da Rua Augusta.

Vale aqui recordar que o signo comporta uma forma e uma injunção [6], o que tanto se aplica a símbolos isolados como ao sema em que participam, sejam sintagmas de pedra ou de bronze. Recorde-se que, quando a capacidade de aplicação ou a referenciabilidade das mensagens deriva simplesmeente de seu poder de sugestão que brota de seus aspectos sensoriais, qualitativos, estaremos falando de ícones [7] e, em qualquer caso, servir de alguma coisa como signo é reportar-se a uma dada cultura [8].

A estátua, de bronze sobre pedestal de pedra, foi inaugurada em 1775 com autoria de Machado de Castro, segundo esboços de Eugénio dos Santos, considerada pioneira no seu estilo em terras lusitanas e no império português.  O marquês de Pombal espreita no medalhão de bronze sob as armas reais na estátua do rei, e também está representado de corpo inteiro numa das figuras da alegoria do arco triunfal das virtudes da R. Augusta. O cavalo do rei passa impávido sobre as serpentes da ignorância, também dizem do conhecimento, ilustrando a natureza paradoxal da verdade.

E no topo do arco triunfal da R. Augusta, a Glória coroa o Valor e o Génio, na interpretação mais corrente, ou Cibele recompensa Apolo e Minerva, a luz e o conhecimento, noutra, ou ainda, a Ibéria coroa a pátria e o anjo S. Miguel, patrono de Portugal. Haverá outras, em qualquer caso remetem para uma tríade que aponta para o céu, e inversamente desce como uma consagração dentro de uma numerologia: 1 rei a cavalo como figura imperial, quase um centauro alado no enquadramento, 3 virtudes, 4 pilares da pátria feitos homens (entre os quais o marquês), e 2 rios que amparam o conjunto.

 
 

Estátua equestre de D. José em Praça do Comércio/ Terreiro do Paço (foto: a.)

 

Enquadramento da estátua equestre no arco triunfal (foto: a)


Os símbolos podem ser arbitrários ou motivados, aqui a motivação é a simbólica imperial de raíz clássica e romana - imperador originalmente queria dizer um magistrado investido de comando militar por mandato divino ou de outra força superior. Já Orósio de Braga (sec. VI), referia que o império (romano) surgia como a garantia política da paz e da unidade, ou como lugar da reunião dos homens, e é assim que a idéia de império perdurará na Europa [v. 9].

O rei é representado com o bastão de comando indicando uma direção, um vetor, encimado pelo Olho da Providência, um reminiscente do Olho de Hórus integrado no radiante do Espírito Santo. No ombro direito transporta uma fivela com um simulacro do Braganza e sob o manto espreita a cruz de Cristo. O olhar do rei e a indicação do ceptro apontam genericamente Sul, puxando alguns graus a Oeste, numa rota misteriosa. O cavalo traz nos arreios do peito a réplica de um diamante mais tarde chamado em França de (novo) Espelho de Portugal [v. 10], que provavelmente também será conhecido por Regente. Que mistério se esconderá no brilho do olhar infinitivo do rei?
 

Estátua equestre de D. José – porm. (foto: a.)

 

    .      Valores

O Valor e o Génio eis pois os valores superiores em que Bonifácio foi orientado, recordando que se nomeia a valência como o valor do valor [11], que numa primeira acepção remete para valentia, e posteriormente para o conceito de ligação química simulando o plano da articulação do sentido em geral de úm signo. Como método, refere-se que Bonifácio utilizava sobretudo o método de análise das regularidades permanentes, ou estáticas, que emanava da matriz baconiana que tinha como função resolver problemas práticos, numa visão onde o conhecimento científico também servia para gerar riqueza  [12].

Não será deslocado dizer que José B. acalentava a princípio um projeto de império luso-brasileiro [13], conceito bicéfalo que não encontrou solução; e considerava que cabia ao Estado dirigir o processo de formação da nação [14], afirmando-se ainda que o Brasil fez-se Império antes mesmo de se fazer nação [15].  As reformas propostas por Bonifácio preconizavam o fim da escravidão, as reformas agrária e educacional indispensáveis para a construção de um país constituído por uma população integrada [16], e pode dizer-se que eram muito avançadas para a época: por exemplo, a abolição do tráfico negreiro atlântico no império português só começou realmente a partir da legislação proposta em 1850 pelo brasileiro nascido em Angola, senador Euzébio Queiroz [17], quase trinta anos depois de Bonifácio ser ministro. Ainda hoje, dois séculos volvidos, tópicos vários das idéias dele, na reforma agrária, na conservação das florestas, e outros, permanecem actuais.

A agenda política de José Bonifácio

A agenda política de Bonifácio propunha a civilização e integração dos indígenas na sociedade, através da miscigenação, da aculturação e da reforma agrária, para a qual propunha incentivos precisos como doação de terras, e também prémios para os que dessem liberdade aos escravos e, no imediato, propunha a terminação do tráfico negreiro num caminho que visava a abolição progressiva da escravidão. Há quem afirme que ele representou a liderança mais firme e lúcida no processo de independância [18].  Vejamos palavras de José Bonifácio:

Da escravidão

A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objecto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos;

A perspectiva pragmática de José Bonifácio procurando mostrar a utilidade da empresa e assim cativar os opositores tembém se entende no seguinte excerto:

Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura africana; mas com isto não está tudo feito; é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação. (...) Torno a dizer porém que eu não desejo ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos (...) Este é não só o nosso dever mas o nosso maior interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes.

Os índios e a reforma agrária

A meu ver a perspectiva política geral, e operacional, do relacionamento com os índios e as terras e promoção da miscigenação e da aculturação, articulada programaticamente, está visível nos dois pontos que se seguem:

4º Procurar com dádivas e admoestações fazer pazes com os índios inimigos, debaixo das condições seguintes, quais as que o governador Mem de Sá estabeleceu em 1558. 1º) Que não comam carne humana nem mutilem os inimigos mortos; 2º) Que não façam guerra aos outros índios sem consentimento do governo brasileiro; 3º) que se estabeleça um governo, digno, um comércio recíproco entre eles e nós, para que comecem também a conhecer o meu e o teu, a-rogando-se o uso indistinto dos bens e produtos da sua pequena indústria.

5º Favorecer por todos os meios possíveis os matrimônios entre índios e brancos, e mulatos, que então se deverão estabelecer nas aldeias, havendo cuidado porém de evitar que pelo seu trato e maus costumes não arruínem os mesmos índios; proibindo-se que não possam por ora comprar suas terras de lavoura, sem o consentimento do pároco e maioral da aldeia, e determinando-se que nos postos civis e militares da aldeia haja pelo menos igualdade entre ambas as raças.

Nota-se a noção de processo articulado com os recursos naturais e as instituições, jogando com paridades, bem como um conhecimento histórico das disposições anteriormente tomadas para contrariar abusos, referidas nesse excerto:

Desde d. Sebastião conheceram os reis de Portugal todas as injustiças e horrores, que com eles praticavam os colonos, matando-os, cativando-os, e vendendo-os até para mercados estrangeiros; e para favorecerem a liberdade, e porem termo às injustiças cometidas, legislaram em 1570, 1587, 1595, 1609, 1611, 1647, 1655, 1680, e finalmente em 1755. El-Rei d. Pedro pela lei de 1680 cortou pela raiz os quatro casos de que abusavam os colonos para continuar com a escravidão dos índios, que ainda permitia a lei de 1655: a saber, que poderiam ser escravos: 1º) os tomados em justa guerra; 2º) quando impedissem a pregação evangélica; 3º) quando presos à corda para serem comidos pelos seus contrários; 4º) quando enfim fossem tomados em guerra pelos outros índios.

No enunciado que segue vê-se a preferência que José Bonifácio dá à pequena e média propriedade rural, na estrutura fundiária e na sua articulação com a geração de emprego e o comércio, conservando as antigas matas virgens, a que atribui um estatuto de herança sagrada.

É pois evidente que, se a agricultura se fizer com os braços livres dos pequenos proprietários, ou por jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas essas terras, mormente nas vizinhanças das grandes povoações, onde se acha sempre um mercado certo, pronto e proveitoso, e deste modo se conservarão, como herança sagrada para nossa posteridade, as antigas matas virgens, que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país.

Das matas e das terras

Bonifácio faz o elogio da natureza e das terras do Brasil num cenário a tender para o apocalíptico da saarização, uma hipérbole:

 A natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos a favor da natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas, que temos roteado, são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; (...); nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação, e alimentem nossas fontes e rios, sem que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia.

Mas também reflecte sobre o assunto com um otimismo exultante:

Demais, uma vez que acabe o péssimo método da lavoura de destruir matas e esterilizar terrenos em rápida progressão, e se forem introduzindo os melhoramentos da cultura européia, decerto com poucos braços, a favor dos arados e outros instrumentos rústicos, a agricultura ganhará pés diariamente, as fazendas serão estáveis, e o terreno, quanto mais trabalhado, mais fértil ficará.

Discussão

A discussão que proponho permanece necessariamente em aberto, pois que eu próprio não organizei as citações de José B. que transcrevi, em forma cronológica por exemplo. Obviamente que li os textos de onde as extraí, mas não esgotei o contexto.

No entanto desde já avanço que, na minha opinião, José Bonifácio era um humanista convicto - um espírito penetrante embasado numa larga formação científica e clássica, e vasto treino em lugares de administração pública e política, de onde emergiu o político que tentou induzir os vetores de uma agenda civilizadora no Brasil, concebida nos moldes da época em que o despotismo esclarecido era traço consentido, ou até enaltecido. A prova das suas convicções é que foi banido e exilado por uma vez vários anos, e dois ou três anos depois de regressar é preso domiciliarmente e julgado por conspiração contra a ordem publica. Bonifácio, na sua escrita intimista de desabafos no exílio e outros, não é nada meigo com as palavras, com os povos ou com poderosos, mas é sempre num horizonte de progresso convivial da condição humana que ele avança nos temas, não vejo como poder negar isso.

Sobre a perspectiva conservacionista refere-se que Bonifácio olhava para os recursos naturais de modo a que pudessem ser explorados, mas não dizimados [19]. Bem, numa das transcrições que coloquei acima ele lança o epíteto de herança sagrada quando se refere às matas virgens - é um termo muito forte que vai além do extrativismo, admite a coexistência de uma outra ordem que não a profana. Porventura, usando o método das regularidades, distinguia situações regulares de replicação da paisagem numa lógica de extrativismo, de outras, singulares, não enquadráveis nas primeiras.

José Bonifácio era autor de obra científica e técnica florestal em Portugal: em 1815 publica na Academia Real das Ciências, em Lisboa, a Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portugal, particularmente de pinhais nos areais de beira-mar; seu método de sementeira, costeamento e administração, onde retoma um tema caro à nacionalidade pelo menos desde Dinis, o rei Povoador, e Poeta, também chamado o Pai da Pátria, por força de um reinado longo de mais de quarenta anos, casado com Isabel de Aragão, a Rainha Santa, grande impulsionadora do culto de Espírito Santo, de origem franciscana [v. 20]

Existe notícia de que já em 1802, por recomendação de Bonifácio, foram baixadas as primeiras instruções para reflorestar a costa brasileira [21], e em 1822, a conselho de José Bonifácio, o Imperador extinguiu o sistema de sesmarias, deixando de prevalecer o prestígio dos títulos de propriedade em favor da posse e ocupação das terras. Assim fica demonstrada a insistência e prossecução na multiplicidade de direções que constituiam um feixe consequente de agenda política. O peso da atitude conservacionista nas lógicas de produção é algo que é evidente, embora não consiga de momento estimar - nalguns escritos Bonifácio parece referir-se à conservação expressa de uma sexta parte da área, mas por certo as matas virgens teriam um lugar separado nesta contabilidade, e existem escalas de referência onde se aplicam uns enunciados e não outros, tema a pesquisar. Existem métodos que permitem perscrutar a relação entre valores e proporções de ocorrência, no tema das variedades de equilíbrios de composição da paisagem, a propósito da noção kanteana de valor contribuitivo [22], que talvez se apliquem no diagnóstico ou elucidação do tema.

 

Agradecimento: a Rodrigo Azevedo, Professor da Unilab, que me acolheu durante mais de um mês em Acarape, onde pude tomar contacto com a obra de José Bonifácio e conversar uns bons pedaços.

 
Referências:

[1] José Bonifácio de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil (textos reunidos e comentados por Miriam Dolhnikoff), São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000.

[2] Perfil biográfico de José Bonifácio de Andrada e Silva, Wikipedia,

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Bonif%C3%A1cio_de_Andrada_e_Silva

[3] Perfil biográfico de Alexandre Rodrigues Ferreira, Wikipedia,

http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Rodrigues_Ferreira

[4] Graça Louro, Maria do Loreto Monteiro, Luís Constantino, Margarida Tomé e Francisco Rego, 2011. Evolução do material lenhoso de pinheiro-bravo e eucalipto. Silva Lusitana 18(2): 133 – 149.

[5] António Amorim da Costa, Domenico, (Domingos) Vandelli (1730-1816), s/ data, http://www.spq.pt/docs/Biografias/Domingos%20Vandelli%20port.pdf

[6] José Augusto Mourão e José Pinto Casquilho, O desenho e a interpretação dos signos: o Parque Biológico de Gaia, Lisboa: RCL (2010) 41: 79-87.

[7] Lucia Santaella, Semiótica Aplicada, São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

[8] José Augusto Mourão, Signo, in Dicionário Crítico de Arte, Imagem, Lingugagem e Cultura, CECL&IGESPAR, 2010.

http://www.arte-coa.pt/index.php?Language=pt&Page=Saberes&SubPage=ComunicacaoELinguagemLinguagem&Slide=82

[9] José Pinto Casquilho, A metamorfose das armas do rei de Portugal na dinastia de Avis, Monografias.com, 2008,

http://br.monografias.com/trabalhos913/metamorfose-dinastia-avis/metamorfose-dinastia-avis.shtml

[10] José Pinto Casquilho, A história de um símbolo – o Espelho de Portugal. Monografias.com, 2008,

http://br.monografias.com/trabalhos913/simbolo-espelho-portugal/simbolo-espelho-portugal.shtml

[11] Jacques Fontanille e Claude Zilberberg, Tensão e Significação, São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/ FFLCH/USP, 2001.

[12] Alex Gonçalves Varela in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 30, 31.

[13] Miriam Dolhnikoff, in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 20.

[14] Márcia Miranda in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 6.

[15] Ana Rosa Cloclet in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 10.

[16] Maria Emília Prado in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 34.

[17] Isabel Castro Henriques, A (falsa) passagem do escravo a indígena, in Crises em Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos), Centro de História da Universidade de Lisboa, Coleção Colóquia, Lisboa, 2002, p: 81-97.

[18] Cecília Helena L. de S. Oliveira in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 37.

[19] José de Castro Meira, Direito Ambiental, BDJur/STJ (biblioteca digital jurídica),

http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/141/Direito_Ambiental.pdf?sequence=1

[20] José Pinto Casquilho, Esteios da lusofonia - Do culto do Espírito Santo, Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, Nova Série, nº 7, 2010,

http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_07/jose_casquilho/index.html

[21] José Murilo de Carvalho in IHU online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 03 de Setembro de 2007|edição 234, p: 22.

[22] José Pinto Casquilho, Composição do Mosaico de Paisagem e Índice de Valor Contributivo Médio. Silva Lus. 2010, vol.18, no.2, p.197-203. 

José Pinto Casquilho. Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL), Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com
(CECL/UNL).