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JOSÉ CASQUILHO::::......::::

 Do inverso do tempo: estrutura tensiva

O homem religioso é sedento de real.
Mircea Eliade [1]

Na catástrofe borboleta [2] vimos que o conjunto catastrófico se expressa num espaço com quatro parâmetros, e refere-se à projecção dos equilíbrios degenerados de uma função potencial, uma função de energia (ou mais abstractamente uma função de Lyapunov) no espaço desses parâmetros. A função potencial é o desdobramento universal de um polinómio do sexto grau numa variável real, um número real (variável-resposta ou externa) e os parâmetros são o mais das vezes representados pelas letras {t,u,v,w} e também se designam por variáveis de controlo ou internas.

O interesse principal da catástrofe borboleta é que tem como espaço dos parâmetros uma estrutura 4-D que se pode considerar análoga ou aparentada ao espaço-tempo, conceito introduzido por Minkowsky em 1907 sob a designação de Zaumreit [3].

O conjunto catastrófico, também chamado conjunto de bifurcação, estabelece a separação entre modos de equilíbrio, estáveis ou instáveis, mas o que importa são os estáveis, são esses que permanecem. Na catástrofe borboleta, adoptado o desdobramento universal expresso de acordo com Petitot [4], o conjunto catastrófico borboleta apresenta uma só cúspide quando t>0, mudando radicalmente quando t se torna negativo: ocorrem três cúspides, agrupadas em dois pontos cauda de andorinha e um ponto tríplice, demarcando regiões com equilíbrios estáveis separados {{A}, {B}, {C}}, simultâneos a dois nas transições {{A,B}, {A,C}, {B,C}}, ou a três {{A,B,C}} na bolsa central.

Secção da catástrofe borboleta, para u=0 e t<0; os pontos de mínimo
definem os equilíbrios estáveis (Saunders).

Transitar de um regime definido por uma só cúspide, que esquematiza a crise, para outro regime onde podem coexistir três modos de equilíbrio estáveis {{A,B,C}} numa região, obriga o parâmetro t a passar de positivo a negativo. Ora o parâmetro t, associado ao termo do quarto grau, designado factor borboleta [5], é identificado com o tempo, expresso como número real. Passamos então de um regime de cúspide para outro de borboleta quando o tempo se torna negativo. Em termos de números reais - um conjunto ordenado identificado com uma recta orientada - um valor real negativo quer dizer apenas: antes da origem.

A origem é representada pelo número zero, que tem uma longa história [6], só tendo adquirido os primeiros direitos de cidadania na Europa por volta do século XIII, com a sua fixação simbólica por Leonardo de Pisa em 1202, terminando com a sua definição axiomática como número por Peano no final do século XIX.

O domínio de existência da catástrofe borboleta é assim um espaço misterioso que pode interpretar-se como ocorrendo num tempo antes da origem, num tempo antes do tempo.

Mircea Eliade define o tempo sagrado como um tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico, em oposição ao tempo profano, destruidor, irreversível. E acrescenta que o sagrado tem uma outra origem porque se trata de um tempo primordial, santificado pelos deuses e susceptível de tornar-se presente pela festa.

Pode dizer-se que nesta acepção coexistem assim duas dimensões de tempo, o tempo sagrado e o tempo profano, que relevam da dicotomia clássica kairos/chronos. A representação simultânea das duas dimensões - se associarmos valores de absoluto a tempo sagrado e valores de universo a tempo profano -, cai no quadro daquilo que Fontanille e Zilberberg designaram por sintaxe tensiva [7]: um esquema com duas dimensões onde a sua conjugação constitui o facto tensivo propriamente dito, resultante da correlação entre a sua intensidade e a sua extensidade. Outros poderão argumentar que o tempo sagrado é o lugar onde se dissolve toda a tensão.

Na catástrofe borboleta, um modelo de morfogénese, sai-se do esquema da crise representado pela cúspide para um modo que permite a introdução de um mediador, um terceiro incluído, um equilíbrio do meio. Ora sendo o número 3 o primeiro representante de muitos fica aberta a multiplicidade. Ou seja: saiu-se da disjunção exclusiva geradora de conflito ou a ou b para a extensão ou a ou b ou c, podendo  c ser apenas nem a nem b.

 

[1] Mircea Eliade. 1957. O Sagrado e o Profano. Livraria Martins Fontes Lda, São Paulo (1992), 2001.

[2] José Casquilho. 2009. Morfogénese: borboleta cauda de andorinha. http://www.triplov.com/casquilho/2009/Morfogenese/index.html

[3] Charles Petzold. 2008. The Annotated Turing. Wiley Publishing Inc, Indianapolis.

[4] Jean Petitot-Cocorda. 1992. Physique du Sens – De la  théorie des singularités aux structures sémio-narratives. CNRS, Paris.

[5] Peter T. Saunders. 1980. An introduction to Catastrophe Theory. Cambridge University Press.

[6] José Casquilho. 2008. Da Tríade. http://www.triplov.com/casquilho/2008/Triade/triade.pdf

[7] Jacques Fontanille e Claude Zilberberg. 1998. Tensão e Significação. Discurso Editorial, São Paulo, 2001.

 

José Pinto Casquilho. Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL), Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com
(CECL/UNL).