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JOSÉ CASQUILHO::::......::::

Dos números: entre signo e valor

(…) en employant au lieu des nombres eux-mêmes, des signes ou symboles généraux qui n’aient aucune relation particulière avec les valeurs des nombres qu’ils représentent. Pour attendre ce but on fait usage des lettres de l’alphabet. E. Tarnier  [1]

Number signs probably preceded number words, for it is easier to cut notches in a stick than it is to establish a well-modulated phrase to identify a number. Carl B. Boyer [2]

A meu ver poucas histórias há tão belas como as dos números, conceitos ou entes mentais que se foram construindo num processo gerativo onde concorreram várias culturas, ao longo de milénios, erguendo uma linguagem universal da humanidade.

Do lado do pensamento ocidental já Aristóteles tinha esclarecido que número é número de alguma coisa, um índice específico, enquanto que Platão em A República antecipava [3] que o cálculo e a aritmética versam inteiramente sobre o número e eram ciências próprias para conduzir à verdade.

A propósito da unidade e recordando Euclides: o um é aquilo em virtude do qual cada um dos seres é dito uno, e os números são a multiplicidade constituída de unidades [4]. Falamos aqui dos números naturais, inteiros positivos, herdados do problema da contagem, a que outros na Antiguidade, salientando-se Diofanto [5], o autor de Arithmetica, acrescentaram os números gerados pelos problemas da medida, sobretudo relacionados com comprimentos e áreas, que envolviam o cálculo de frações e raízes na solução de equações. É sabido [6] que os matemáticos gregos, tendo a noção de grandeza incomensurável, mas não tendo a noção correspondente de número irracional, constituíram a matemática sob forma geométrica, considerando em vez de números segmentos de recta, para assim abrangerem as grandezas comensuráveis, os números racionais, e as incomensuráveis.

Na citação em epígrafe de Tarnier vê-se que na álgebra, no final do século XIX, se colocava no lugar dos números propriamente ditos signos ou símbolos gerais que têm uma relação arbitrária com os valores dos números que representam - e assim são substituídos por letras do alfabeto.

O signo, semeion em grego, era para os estóicos uma entidade que significava mediante um incorporal, uma implicação [7], não redutível a qualquer expressão física que lhe estivesse associada; os incorporais não são coisas, são estados de coisas, modos de ser; o lekton, o dizível, é dessa categoria e no seu sentido pleno é uma proposição. Os estóicos quando falam de signo referem-se a algo de imediatamente evidente que se reporta a outro algo não imediatamente evidente.

O signo como aliquid stat pro aliquo - algo que está no lugar de alguma outra coisa -, era a definição clássica herdada que Peirce em 1897 refinou como sendo [8]: algo que está para alguém por algo sob algum aspecto ou capacidade.

As letras do alfabeto são símbolos, definindo-se símbolo como um signo vagamente codificado. Pode-se ver que a utilização diacrónica de letras do alfabeto em matemática vai ficando cada vez mais imersa num campo que lhes adensa o significado: semântico, portanto.

Também se pode apelar a uma redução binária: desde Saussure que o signo pode considerar-se um valor [9] representado num significante físico, a que se associa um significado mental, e ainda ser considerado nos eixos da sincronia e da diacronia; a linguagem seria assim o processo semiológico por excelência onde a semântica é referida como tendo por objecto analisar deslocamentos da relação entre o significado e o significante.

O valor de um número pode assim ler-se como o número propriamente dito inserido num sistema ordenado e expresso num código, por exemplo escrito em linguagem decimal - o conjunto {0,1,2,3,4,5,6,7,8,9} foi adquirido como alfabeto numérico na Europa desde que  Leonardo de Pisa, em 1202, escreveu o Liber Abaci com que introduziu na Europa o sistema de numeração hindu-árabe incluindo um pequeno círculo para símbolo do zero [10, 11]. 

Árvore genealógica do sistema de numeração hindu-árabe

Ainda hoje os primeiros dígitos do sistema decimal não têm a mesma probabilidade de ocorrência nos números encontrados na vida real [12], aparecendo o número 1 com maior frequência, cerca de 30 por cento, enquanto o número 9 apenas ocorre na ordem de 4 por cento.

As letras do alfabeto começam por ser incógnitas na resolução de equações, tomando o lugar de coisa, verificando as ligações sintáticas das fórmulas que as operações envolvidas tornam possíveis, das quais se extraem soluções, incluindo a solução ‘não ter solução’: o conjunto vazio de soluções, representante de uma impossibilidade no campo dos números admissíveis no contexto ou quadro axiomático em que o problema se admite bem colocado.  

Em termos actuais diz-se que [13]: nas aplicações das matemáticas um número real Y é quase sempre substituído por um número racional X, que é um valor aproximado deste; quer dizer que a diferença Y-X está compreendida entre –ε e + ε, em que ε é um número positivo a que se chama a aproximação de Y por X, ou o erro cometido sobre Y; X é chamado um valor aproximado de Y a menos de ε, sendo o próprio Y considerado como o seu valor exacto.

Essas letras do alfabeto, latino, grego ou ainda outros como o hebreu, constituem a designação de (números) variáveis na teoria das funções: aplicações que transformam um objecto do domínio numa imagem que se expressa no contradomínio. Essas variáveis podem vir a constituir variedades [14, 15], estruturas matemáticas elaboradas que podem ser reais ou complexas. A variedade dos equilíbrios de um sistema dinâmico é um exemplo e a variedade de informação segundo uma dada métrica é outro.

Como nos reporta Caraça [16] foi a superação sucessiva de impossibilidades numéricas pelo engenho humano, e a sua internalização no sistema, que permitiu alargar mais e mais o conceito de número; do número natural passou-se aos racionais através do cálculo de frações, depois aos irracionais através de raízes e ainda outras excursões que atingem os infinitos de Cantor.

A essa conquista pela extensão sucessiva dos números reais resistiu a unidade imaginária, a raiz quadrada de menos um, impossível de internalizar por razões de incompatibilidade lógica com o sistema dos números reais a partir do argumento de que não há áreas negativas, mas ainda assim insidiando-se misteriosamente no cálculo de tal forma que é atribuída a Hadamard a citação de que o caminho mais curto entre duas verdades no domínio real atravessa o domínio complexo [17].

Na geometria fractal existe o conceito de dimensão de informação [18], um número real, que mede a variação de informação no comportamento dinamico de um sistema caótico. A dinamica simbólica é usada para analisar a dinamica de funções e uma função diz-se caótica se manifesta dependência sensível das condições iniciais [19], podendo ser fortemente caótica se além de ser caótica tiver um conjunto denso de pontos períodicos e transitividade. Uma aplicação do espaço de fase para o espaço dos símbolos é designada por dinâmica simbólica [20] e consequentemente o caos pode ser visto como um gerador de símbolos se se provir um código no espaço de fase [21]. No entanto, Mandelbrot recordava-nos que quando a medida de complexidade de um conjunto é obtida pelo menor comprimento do (melhor) algoritmo disponível num dado alfabeto se conclui que uma curva fractal imbrincada é mais simples do que um círculo [22]; ou seja, de acordo com essa métrica, o círculo, símbolo da mónada, é mais complexo do que uma complicada linha requebrada.

Alguns reclamam que a informação é apenas física [23], definindo informação quantica como a que é transportada por um sistema físico obedecendo às leis da mecânica quantica. Mas outros observam que a informação quantica, quando ocorre entrosamento, tem como consequência que se observam eventos físicos cuja distribuição marginal não é consistente com nenhuma distribuição conjunta e assim ofende-se o princípio do realismo local [24].

Há autores que esclarecem que adoptar a posição epistémica do realismo científico não implica rejeitar entidades não físicas [25]. O conceito de episteme organizado por Greimas e Courtés [26] define-se como a organização hierárquica de vários sistemas semióticos capaz de gerar, através de uma combinatória e regras de (in)compatibilidade, o conjunto de manifestações cobertas por esses sistemas numa dada cultura.

Também Eco nos lembra que [27] a informação da mensagem não se confunde com a informação na fonte, esta era informação física, computável quantitativamente, e aquela é informação semiológica, não computável quantitativamente, mas definível através da série de significados que pode gerar, uma vez posta em contacto com os códigos. Recorde-se que o código [28] é um sistema de signos que, por convenção e de acordo com regras pré-fixadas, está destinado a representar e transmitir a informação entre emissor e receptor.

O par de informação física/semiológica é relevante da distinção significante/significado e pode-se alegorizar através da Pedra da Roseta: os hieroglifos egípcios estavam lá, marcados na pedra ou pintados, significantes, mas não se conseguiam decifrar e interpretar até ter um código que o viabilizasse.

Em geral, retomando Umberto Eco pode dizer-se que entre o significado e o símbolo incorrem relações onomasiológicas, conferindo determinados nomes a significados, ao passo que entre o símbolo e o significado existem relações semasiológicas, onde determinados símbolos designam significados. Assim acontece com as letras em matemática, conforme o contexto podem ser números constantes ou variáveis e na teoria de funções representar objectos, imagens, e ainda parametros, que cobrem ou resolvem-se em conjuntos de números.

Tableta YBC 7289, coleção da Yale University, dinastia de Hamurabi [29]; o autor refere que feitas as conversões adequadas está representado o número 1,414213 que é a expansão decimal aproximada da raíz quadrada de 2.

Falar de valor real em vez de número real e de valor complexo em vez de número complexo é corrente, sendo que o primeiro é um escalar, representado por um ponto numa recta com origem e sentido de ordenação e o segundo é representado no plano cartesiano como um vector. O valor real é um escalar e o valor complexo é um vector, signo da força, expresso como z=x+iy ou (x,y) supondo a base (1,i), próximo de uma denotação do par informacional físico/semiológica, emparelhado com o par saussureano significante/significado, por sua vez análogo do par valor de troca/valor de uso que se utiliza na economia.

O universo dos números é fascinante. Para além dos números reais e fazendo uso dos transfinitos de Cantor controem-se números surreais [30]; estes últimos formam eventualmente a coleção de todos os números concebíveis pelo engenho humano até hoje, mas não formam um conjunto: seria o conjunto de todos os conjuntos que se demonstra conduzir a uma contradição, violando a lei da cardinalidade.

Referências:

[1] E. A. Tarnier. 1857. Éléments d’ Algèbre. Librairie de la Hachette et Cie, Paris.

[2] Carl B. Boyer. (1968) 1991. A History of Mathematics. John Wiley & Sons, Inc., New York.

[3] J. Guinsburg. 2006. A Republica de Platão. Editora Perspectiva SA, S. Paulo, pag. 279

[4] Ambrogio G. Manno. 1982. A Filosofia da Matemática. Edições 70, Lisboa, pag. 26

[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Diofanto_de_Alexandria

[6] Francisco G. Teixeira. 1934. História das matemáticas em Portugal.Arquimedes Livros, Lisboa, 2006.

[7] Umberto Eco. 1994. Signo. Enciclopédia Einaudi, vol 31, Signo, p:11-51, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa

[8] Umberto Eco. 1994. Significado. Enciclopédia Einaudi, vol 31, Signo, p:52-97, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa

[9] Ferdinand de Saussure. 1916 (1971). Curso de Linguística Geral. Publicações Dom Quixote Lda., Lisboa, 1999.

[10] Giulio Giorello e Marco Mondadori, 1989. Zero. Enciclopédia Einaudi, vol.15:  Cálculo-Probabilidade, pp: 64-99.

[11] http://br.monografias.com/trabalhos915/da-triade/da-triade.shtml

[12] Nuno Crato. 2008. A Matemática das Coisas. Gradiva, Lisboa.

[13] Jean Dieudonné. 1987. A Formação da Matemática Contemporânea (Pour l’honneur de l’esprit humainLes mathématiques aujourd’hui), Publicações Dom Quixote  Lda, Lisboa, 1990.

[14] http://pt.wikipedia.org/wiki/Variedade

[15] http://www.math.ist.utl.pt/~rfern/GD/notaspI.pdf

[16] Bento de Jesus Caraça. 1946. Conceitos Fundamentais da Matemática. Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1984.

[17] cf. Paul J. Nahin. 2007. An Imaginary Tale.  Princeton University Press, New Jersey.

[18] Manfred Schroeder. 1991. Fractals, Chaos, Power Laws. W. H. Freeman and Company, New York.

[19] Denny Gulick. 1992. Encounter with Caos. McGraw-Hill, Inc., New York.

[20] Christian Beck e Friedrich Schlögl. 1993. Thermodynamics of chaotic systems – an introduction. Cambridge University Press, Cambridge, 1995.

[21] Kunihico Kaneco e Ichiro Tsuda. 2001. Complex Systems: Chaos and Beyond. Springer-Verlag, Berlin.

[22] Benoit B. Mandelbrot. 1983. The Fractal Geometry of Nature. W. H. Freeman and Company, New York.

[23] Dénes Petz. 2008. Quantum Information Theory and Quantum Statistics. Springer- Verlag, Berlin.

[24] Thomas M. Cover e Joy A. Thomas. 2006. Elements of Information Theory. John Wiley & Sons, Inc., Hoboken.

[25] Stathis Psillos. 2006. Scientific Realism and Metaphysics. Metaphysics in Science (ed. A. Drewery), Blackwell Publishing, Malden, pp: 14-32.

[26] cf. Jacques Fontanille e Claude Zilberberg. 1998. Tensão e Significação. Discurso Editorial, São Paulo, 2001.

[27] cf. http://www.triplov.com/casquilho/2009/Mensagem/index.html

[28] Miquel R. Alsina. (1989) 1995. Los Modelos de la Comunicación. Editorial Tecnos, S.A., Madrid.

[29] Eli Maor. 2007. The Pythagorean Theorem. Princeton University Press, Princeton.

[30] http://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%BAmero_surreal

José Pinto Casquilho. Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL), Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com
(CECL/UNL).