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JOSÉ CASQUILHO:
Sobre o casamento homossexual

 Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social
e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Não se confunda o interpretante com o intérprete.
O interpretante é uma propriedade objectiva que o signo possui em si mesmo, um tipo lógico geral, haja ou não um acto interpretativo a seu respeito.
  O devir do interpretante é um efeito do signo como tal, não dependente de um acto de interpretação subjectivo. C. S. Peirce (1.339).
Niankhkhnum e Khnumhotep

O anúncio efectuado por José Sócrates da proposta eleitoral de vir a remover as barreiras jurídicas que obstam à realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo trouxe para cima da mesa um debate que estava camuflado e é bom que aconteça.

Desde logo ocorreu um conjunto de reacções pela parte da hierarquia da igreja Católica, começando por dizer que apelaria ao voto contra os partidos que subscrevessem tal posição por não serem fiáveis, depois recuando, com o cardeal José Martins a dizer que, de acordo com a Biblia, ser homossexual não é normal [1], rematado pela afirmação de que quem é homossexual sofre de problemas de identidade [2].

Dirão que a igreja católica fala para os seus crentes e portanto é seu direito expressar as convicções teológicas; sim, é verdade, o mesmo se aplica a qualquer religião em face dos direitos constitucionais, mas a partir do momento em que a hierarquia da igreja fala alto em público, alcançando todos os que não são católicos, o público tem o direito de reagir.

Da fundamentação natural

O paradigma de racionalidade que podemos invocar para situar o problema relativo a uma iniciativa legislativa num Estado laico é o realismo científico [3], uma tese metafísica que afirma que o mundo tem uma estrutura definida e que as teorias científicas maduras e bem sucedidas são verdade do mundo.

É assim que podemos afirmar que existe larga evidência de que a homossexualidade é natural em muitas espécies animais, faz parte dos comportamentos das populações, em proporções que poderão elas próprias variar consoante contextos, e que visam a metarregulação do conjunto. Conhecem-se casos de casais e triângulos relacionais amorosos homo e bissexuais em pinguins, flamingos, patos, golfinhos, macacos, e muitas outras, de mais de quinhentas a mil e quinhentas [4], de acordo com notícias do terceiro milénio.

Atente-se nisto: está provado que a regulação de populações naturais de numerosas espécies passa por relacionamentos homossexuais num contexto mais vasto de bissexualidade. Não é preciso mais para dizer que a existência de homossexualidade e bissexualidade no mundo é portanto um fenómeno natural.

O problema metodológico que muitos enfrentam é que só conseguem expressar-se em termos booleanos - ou é ou não é - , aliás esquizóides, aplicando este raciocínio ao todo: tudo heterossexual ou tudo homossexual, não sabendo discernir que um equilíbrio populacional situa-se numa variedade de equilíbrios, um conjunto de equilíbrios com determinados atributos, expressos em proporções, uma paisagem sexual a que corresponde um mosaico variável; no caso das espécies com dois géneros sexuais, seja {m,f}, existem três unidades relacionais em pares S={{m,f},{m,m},{f,f}} e admitindo a existência de triângulos tem-se as possibilidades: T={{m,f,f},{m,m,m},{f,m,m},{f,f,f}}}; na linguagem dos conjuntos não interessa a ordem dos elementos e a morfogénese da borboleta permite conceptualizar a coexistência de três modos de equilíbrio estável num sistema genérico [5], seja uma exemplificação do conjunto S. O conceito de equilíbrio em Ecologia [6] está contido dentro do princípio de auto-organização de sistemas complexos.

Também na espécie humana são por demais conhecidas as notícias de que se praticava a homo e a bissexualidade em muitas sociedades: os gregos, os persas, os romanos, os gauleses; até na Antiguidade Egípcia está bem documentado em memorial o amor entre Niankhkhnum e Khnumhotep [7]. A relação estreita de Alexandre com Hefestion está relatada, inspirada na de Aquiles e Pátroclo. Podia-se acrescentar muitas outras histórias. Ainda no século XX essa mescla de relações onde domina a bissexualidade constituia o esteio reprodutivo sustentável de culturas como seja a dos Asmat, com sociedades fundeadas em pares de amigos-fechados [8] que numa época do ano partilhavam mulheres e tinham prole conjunta.

Da diabolização da homossexualidade no mundo ocidental

A diabolização da homossexualidade na Europa só começou a partir do século IV após a conversão ao cristianismo do império romano [9]; foi progressiva e teve momentos altos de punição como as fogueiras da inquisição para os que eram acusados dessas práticas. Ainda hoje a igreja Católica pede sucessivamente desculpa a Galileu, 500 anos depois, por ter sido obrigado a abjurar, procurando fazer-nos esquecer Giordano Bruno, ex-dominicano, queimado na mesma época.

Não é só a igreja Católica: todos os sistemas institucionais se revelam perversos no controlo e repressão da sexualidade, e portanto também da homossexualidade, embora o protestantismo seja muito mais tolerante. É verdade que na Bíblia se pode concluir que a homossexualidade é conotada negativamente, assim acontece nos livros do Antigo Testamento, seja o Levítico 20:13, e no Novo Testamento, na epístola de Paulo aos Romanos, por exemplo.

Uma interpretação simplista mas pertinente do Livro com base no realismo científico pode fazer-se como sucede: a Biblia é uma metanarrativa que tem como função principal defender e expandir o território dos seus crentes ou adeptos sobre territórios cada vez mais vastos - uma lógica de expansão e de domínio -, e assim são induzidos os mecanismos que visam amplificar a reprodução, necessariamente heterossexual, e garantir o cadastro dos laços de propriedade; neste quadro são contrariados e punidos os relacionamentos sexuais não reprodutivos, seja o relacionamento homossexual, ou ainda o incesto por causa dos efeitos deletérios e o adultério por perturbar os laços de transmissão de propriedade.

O comando dado a Moisés em Números para recensear as famílias e os homens aptos para a guerra é ilustrativo de todo o paradigma. Niles Eldredge analisou bem em profundidade algumas modalidades de enunciação dos textos bíblicos e implicações demográficas e ecológicas [10], comparadas com as de outras culturas onde se dava primado à sustentação. O autor, na esteira de muitos outros, pedia no final do milénio passado à população Homo sapiens sapiens que baixasse os seus números, para evitar catástrofes maiores. A expansão desenfreada é um esquema de amplificação a que sucede uma derrocada.

Não confundamos as coisas: a religião, tomada como distinta do objecto da fé, é uma manifestação antropológica e histórica que pode, como qualquer fenómeno humano, ser analisada [11], e qualquer um pode fazê-lo.

Da metarregulação das populações

Foi com Malthus no final do século XVIII que emergiu a primeira grande análise de base quantitativa sobre os problemas e meios de regulação da população humana. Malthus é muitas vezes mal interpretado por causa de algumas posições desfavoráveis à lei dos pobres - de facto ele era um humanista, preocupava-se com o bem comum e o sofrimento das pessoas acima de tudo, e inclusivamente como sacerdote anglicano denegava a existência de Inferno, substituindo-o pelo esquecimento [12].

O autor baseava a sua argumentação nas leis de crescimento [13]: a população tendia a progredir geometricamente quando não controlada, enquanto a disponibilidade alimentar crescia em progressão aritmética, muito mais lentamente do que aquela; o desfasamento entre a potência dos dois modos de crescimento provocava uma tensão que se manifestava em dois planos: o controlo preventivo e o controlo positivo; o primeiro diminuia a taxa de nascimentos e o segundo aumentava a taxa de mortalidade.

De entre o primeiro tipo ele enunciava os modos do celibato, sexo não procriativo e o controlo de nascimentos como os mais relevantes, e ainda a restrição moral como atitude acessível às elites; pela parte dos factores do segundo tipo, as suas manifestações eram a fome e a miséria, as pragas e as guerras; estas aconteciam porque os primeiros tinham sido insuficientes para suster um crescimento excessivo da população face à capacidade de sustentação do meio ambiente.

Quando a capacidade de sustentação dum ecossistema entra em ruptura a população da espécie dominante baixa drasticamente, de uma maneira ou de outra: morre, emigra. Esta tese pode considerar-se comprovada por vasta evidência relativa a sociedades humanas históricas e populações animais, mesmo generalizando as leis de crescimento para a curva logística e outras, ou admitindo-se que a disponibilidade alimentar cresce mais do que a forma linear inicialmente postulada, e ainda estendendo para o conceito de metapopulação.

Já desde o início dos anos setenta do século passado que o Clube de Roma antecipou cenários de esgotamento de recursos e decréscimo da população que se projectariam agora no princípio do novo milénio [14]. A crise que vivemos em cheio, após um século onde decorreram as guerras mundiais de efeito tremendo na eliminação de muitos milhões e milhões de pessoas deviam obrigar-nos a reflectir com maior racionalidade sobre a necessidade de controlo preventivo do excesso demográfico e da pegada ecológica. Desde 1995 que Joel de Rosnay nos legou um belo exercício [15] do que poderia ser o o homem simbiótico, onde afirma que é necessária a construção consciente de uma simbiose entre o homem e Gaia, essa construção é mediada pelo cybionte, terceiro elemento da configuração, o interpretante no sentido da citação de Peirce em epígrafe.

Da semiosfera

A semiosfera é o domínio no qual os sujeitos de uma cultura experimentam a significação [16]. Vivemos num tempo onde a Revolução Digital faz bascular todas as instâncias de poder, a multiplicidade de discursos semeia nos ventos do pensamento e só a verdade resiste à erosão.

Li algures que numa sociedade aberta não seria necessário uma lei positiva que garantisse o acesso ao casamento civil por parte de homossexuais, até porque não haveria notícia de que são discriminados, em casa ou no trabalho. Só por ignorância ou perfídia se pode fazer tal afirmação: há inúmeras notícias de discriminação precisamente em casa ou no trabalho e que inclusivé leva pessoas ao suicídio.

Eu entendo: a homossexualidade sempre existiu, sempre vigorou dentro das instituições, na igreja católica mas também nas instituições seculares como se prova por tantas notícias, até como estratégia de submissão, subordinação e de oportunidades; não é a homosssexualidade em si que é intolerável para as instituições históricas, mas sim a sua existência honesta e declarada na sociedade civil. Pior ainda é a existência de amor entre pessoas do mesmo sexo, o amor que não ousa dizer o nome [17], pois que transposta essa barreira pode afinal revelar-se uma força tremenda, sagrada, para usar o adjectivo do batalhão.

Ainda subsistem aqueles que acham que a homossexualidade pode enunciar-se como uma patologia, embora desde 1973 que essa menção tenha sido retirada da lista das doenças mentais nos EUA. É imediato concluir-se que quem usa essa adjectivação releva, isso sim, de um caso patológico. A homofobia, expressão cunhada nos anos cinquenta e depois aplicada a partir da década de setenta, significa medo irracional, aversão, por pessoas do mesmo sexo - obtida por apócope dos termos homossexual e fobia -, mas literalmente significa em grego: medo irracional em relação ao igual; a maioria das teorias psicanalíticas justifica comportamentos homofóbicos como reacção aos impulsos de atracção por indivíduos do mesmo sexo [18].

Conclusão

Comecemos por colocar os termos da questão: trata-se do casamento civil e Portugal é um Estado laico. O paradigma adequado para analisar racionalmente a questão é o realismo científico.

A homossexualidade e a bissexualidade são naturais no comportamento animal e humano e funcionam como factor de regulação da população e da sociedade, em proporções que se vão ajustando aos contextos. Negá-lo é que é contranatura. Muito há que voltar a aprender com os clássicos gregos, regressar a uma ecosofia.

Em termos de direitos subscrevo a posição de que o acesso ao casamento civil por parte de homossexuais é a única forma de não contrariar a igualdade e a não discriminação expressos no artº 13º da Constituição. Mais ainda, acho que é uma medida política inteligente, desde já muito facilitada pela posição pioneira de Espanha, coragem de Zapatero. Um casamento civil é uma parceria estabelecida entre duas pessoas em forma contratual e pública, a propósito de constituir casa, com as inerentes garantias e obrigações em face da lei, nomeadamente direitos de transmissão. Funciona a dois níveis: em potência e em acto. Obviamente o seu esteio principal é a afinidade, alguma forma de amor.

A existência de casamento civil homossexual flexibilixa, porque desestigmatiza, formas de parceria baseadas nas afinidades e complementaridades das pessoas que potenciam efeitos sinergísticos e de compensação, na vida, e claro que também na economia. É uma boa força de inovação em ambiente de crise.

O PS teve a responsabilidade política de chumbar em Outubro passado uma iniciativa dupla do Bloco e dos Verdes neste sentido. Que garantias temos agora de que a promessa está consolidada? Para quando?

PS: não sou católico, sou pagão; mas sempre andei muito perto da mensagem atribuída a Cristo, meu amigo imaginário e também real; para vocês, católicos, sobretudo jovens, que se angustiam fortemente com os impulsos homossexuais e a sua denegação, queria dizer-vos o seguinte: como se poderia pensar que Jesus Cristo, a quem são atribuídas as mensagens amai-vos uns aos outros como a vós próprios e quem não tiver pecado que atire a primeira pedra vos poderia condenar? É absurdo. Não há só homofobia, também há homofilia e homologia, entre outros.

Pinus, o pinheiro

Notas e referências:

[1]  http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1365663

[2] Os bispos dizem que o prolongamento da homossexualidade “pela idade jovem e adulta denota a existência de problemas de identidade pessoal” Público, 20.02.2009

[3] Stathis Psillos. 2006. Scientific Realism and Metaphysics. Metaphysics in Science (ed. Alice Drewery). Blackwell Publishing Ltd, pag: 14-32,

[4] http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/6066606.stm

[5] http://www.triplov.com/casquilho/2009/Tempo-inverso/index.html

[6] Ricard V Solé e Jordi Bascompte. 2006. Self-Organization in Complex Ecosystems. Monographs in Population Biology 42, Princeton University Press

[7] http://www.egyptology.com/niankhkhnum_khnumhotep/

[8]  Tobias Schneebaum.1988. Onde os espíritos vivem. Edições Antígona, Lisboa, 1991

[9] Embora Constantino se tenha convertido ao cristianismo foi o imperador Teodósio que declarou em 27 de Fevereiro de 380 que o cristianismo católico era a única legítima religião imperial.

[10] Niles Eldredge. 1995. Dominion. Henry Holt & Company, New York.

[11] http://www.triplov.com/paulo/religiao_na_escola/religo_04.html

[12] oblivion é a expressão utilizada.

[13] T. R. Malthus, 1798.  An Essay on the Principle of Population. Oxford University Press,1999.

[14] Dennis L. Meadows.1972. The Limits to Growth (Os Limites do Crescimento, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1973).

[15] Joël de Rosnay. 1995. L’Homme Symbiotique. Éditions du Seuil, Paris.

[16] Jacques Fontanille. 2003. Semiótica do Discurso. Editora Contexto, São Paulo, 2007.

[17] citação de frase atribuída a Oscar Wilde.

[18] D.J West. 1977. Homosexuality re-examined. Duckworth, London.

José Pinto Casquilho. Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL), Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com
(CECL/UNL).