Tomando como objecto a paisagem
geográfica há autores que procuram equacionar
como o imaginário da natureza é
descodificado em valores simbólicos economicamente materializados [4],
considerando que as paisagens são os modos mais eloquentes de compor e
decompor imagens através do discurso científico culturalmente centrado.
O caso das gravuras de Foz Côa [5] é
exemplar de um confronto de valores na paisagem: a descoberta de
inscrições no xisto que fornecem uma cronologia muito vasta, com núcleos
fortes em gravuras paleolíticas e da Idade do Ferro, levou a que o valor
da conservação da memória e da origem se sobrepusesse ao da geração de
energia na barragem e investimentos associados - anulou-se a obra e
indemnizou-se em muitos milhões de euros.
De alguma maneira se julgou que a
conservação do legado gráfico reportado há cerca de 25000 anos atrás, em
sulcos zoomórficos e outros inscritos em placas de xisto, valia mais do
que os investimentos previstos para a região. Tratou-se de uma decisão
política movida por uma elite cultural que se inscreveu como um
sentimento dominante e vingou.
Mais: as gravuras não foram retiradas
para outro local para viabilizar a obra mas sim conservadas no sítio,
nos locais, na sua paisagem de inserção, o que se pode interpretar como
uma forma de apropriação de território [6], onde o monumento é o próprio
vale. A paisagem do Vale do Côa tornou-se assim um objecto de valor
propriamente dito com grande profundidade histórica, grande magnitude se
utilizarmos um atributo vectorial. Trata-se afinal do maior espaço
aberto de arte paleolítica conhecido até hoje [7], e actualmente
denominado como parque, a que corresponde uma figura jurídica de
ordenamento do território.
Valores
O conceito de valor tem várias
conotações, denotando facetas distintas de objectos em diferentes áreas
de estudo. Pesquisando o denominador comum tem-se que originalmente o
termo de origem latina ‘valor’ aplicava-se ao valor de um guerreiro,
associado à sua coragem e valia na defesa ou expansão do território.
Está relacionado com o termo virtus, raiz de virtude, equiparada
a força, tendo radical em vir, também usado na acepção plural de
‘forças’, vires, a que se associa o termo virens gerador
etimológico da palavra ‘verde’.
Em Química a valência de um átomo
define-se como o número de ligações que pode estabelecer com outros
através da partilha de electrões da última camada, as chamadas ligações
covalentes.
Fontanille e Zilberberg utilizam o
conceito de estrutura tensiva [8] para falar de valor: referem-se
à valência como o valor do valor e invocam a analogia química colocando
o valor de um objecto como sendo expresso num confronto entre
intensidade e extensão, ou valores de absoluto e de universo,
respectivamente associados a eixos ou gradientes num diagrama cartesiano
no plano; a representação mais frequente ocorre como uma figura que se
pode interpretar como um ramo de hipérbole e a aplicação deste esquema
ao problema de equacionar o valor da paisagem foi esboçada no confronto
entre estrutura tensiva e módulo [9].
De maneira mais concreta podemos pensar
que uma valência é expressa num eixo ordenado, e várias valências em
vários eixos que formam um espaço. O valor de um objecto é então
representado como um vector nesse espaço, ligando um ponto à origem.
O modelo de valor associado a esta
interpretação por via da geometria analítica comporta assim pelo menos
duas componentes, ou coordenadas, necessárias para localizar um ponto no
plano: (x,y). Ou ainda se poderá propor a sua representação por um
número complexo z=x+iy ou (x,iy), candidato a descrever com maior
nitidez a existência de duas dimensões à partida incomensuráveis: valor
físico real e valor simbólico representado no eixo imaginário. A
existência de isomorfismos entre o plano real e o plano complexo permite
confrontar esses dois espaços na demanda de significados recíprocos.
Pode-se dizer que um valor simbólico expresso no eixo imaginário proveio
de uma injunção do real, uma marca física, conjuntos de significantes, e
a ele regressa, ou pode regressar, por via do significado, feita uma
incursão num espaço imaginário - histórico ou mitológico - de uma dada
cultura.
Informação
A representação de valores por números,
em particular números reais, tem uma história longa [10] que se prolonga
até hoje e que foi consagrada a partir da dicotomia de valor de uso e de
valor de troca, na Economia.
Essa dicotomia foi posteriormente
transposta para a Linguística por Saussure onde a propósito de valor
linguístico ficou estabelecida o par significante/significado [11], o
primeiro relativo ao suporte físico do signo e o segundo de ordem
cultural, ou mental. Que não há significado sem significante é um mote
corrente, e portanto existirá um suporte, um corpo, mesmo que seja uma
massa de ar em vibração para produzir som, ou um plasma tocado por
electrões, de que emanará o significado, que no entanto só se faz
presente, actualizado, numa cultura, o mais das vezes mediante um
código, que até pode ser um código privado, um ideolecto.
Só o significante não chega para
compreender o significado: foi necessário o código expresso na Pedra da
Roseta para os ocidentais conseguirem entender o significado dos
hieroglifos egípcios. O significado é tido como um incorporal desde os
Estóicos [12]. Esta dicotomia físico/mental parece irredutível, apesar
das remissões múltiplas em vários níveis entre os dois campos.
Que a informação é física é um
enunciado reclamado com grande latitude [13], embora Eco nos recorde que
esse aspecto refere-se apenas à informação na fonte, quantificável, e
não à informação onomasiológica e semiosológica que se estabelece entre
significado e significante, ou entre símbolo e significado. O conceito
de funções de informação [14] - proposta a partir das funções de onda da
mecânica quântica - é interessante porque consistindo em modelos de
probabilidades tem ainda a particularidade de que ao observar-se o
objecto mudar o valor que lhe está associado; dir-se-ia que aconteceu
algo assim no Vale do Côa.
Em geral, na apreciação probabilística,
ou frequencista, dos acontecimentos ou estados de um sistema,
considera-se que quanto menos uma situação é provável, ou mais rareia,
mais ela é intrinsecamente significativa [15], e maior é o seu valor de
informação. A informação deve ser
entendida sob formas gerais e variadas [16], e não existe uma medida
absoluta de informação, ou de valor de informação, mas antes várias,
válidas consoante diferentes fins e contextos.
Linguagem
A linguagem da paisagem comporta
uma multiplicidade de discursos consoante a valorização preferencial de
um ou outro campo, mas em qualquer caso há quase sempre uma
representação icónica subjacente ou associada, e uma linguagem icónica
para remeter ao objecto, na descrição da sua composição e de nexos de
contiguidade e de correlação ou de causalidade; seja por exemplo o
modelo de composição matricial da paisagem de Forman [17] cujos
elementos são, para além da matriz, se existente, o conjunto das linhas,
manchas e pontos, apelando a uma representação topológica planar do
objecto, cartográfica.
Umberto Eco [18] analisa linguagens
icónicas de dupla articulação - fazendo um paralelo com a linguagem
verbal onde a palavra articula-se com o nível inferior da sílaba, ou
fonema, e com o nível superior da proposição, ou sintagma, onde adquire
sentido num código gramatical; no caso, o signo icónico possui
propriedades visíveis do objecto, ontológicas e convencionadas. Num tal
paralelo gera-se um código de que o gráfico é o exemplo, reproduzindo
propriedades relacionais de um esquema mental. Designa-se por semas
os signos icónicos que se articulam num nível inferior em figuras e num
nível superior em esquemas, integrados num código; os signos só denotam
inseridos no contexto de um sema e o sema icónico é um idiolecto. Também
as gravuras assim podem ser perspectivadas.
Uma representação planar de um mosaico
de paisagem pode ver-se como um sema icónico. Uma paisagem ainda pode
ser entendida como um superícone, definindo-se esse termo [19] como um
objecto dotado de uma multiplicidade icónica de atributos.
Numa representação plana de uma
paisagem as manchas de habitats e outros elementos da paisagem são
figuras que ainda se podem decompor em unidades nucleares; essas
unidades já não têm de ser de ordem prioritariamente icónica, antes
focando-se no plano semântico de alguma das valências associada ao
objecto paisagem; por exemplo, uma determinada unidade de habitat, seja
um hectare de matagal numa dada região (correspondente à imagem de um
quadrado homogéneo de pixeis numa representação digital), tem valores de
riqueza ecológica medida pelo número de espécies do sítio - tem pois
valores característicos nesta ou noutra dimensão.
A linguagem da paisagem como objecto
geográfico expressa-se em valências: económica, ecológica, histórica e
estética. A estas valências poder-se-ia associar dois eixos: o eixo de
valores reais relativos ao território, centrado nos atributos
mensuráveis do subconjunto {ecológico, económico}, e o eixo de valores
simbólicos, relativo ao subconjunto de atributos que se expressam nas
outras valências, incluindo no campo histórico o legado mitológico.
Neste contexto o discurso matemático
sobre a paisagem será entendido como uma construção multissemiótica,
utilizando os termos de O’Halloran [20], agregando linguagem, simbolismo
e imagens visuais. ‘Imaginário’
não tem aqui qualquer conotação de irrealista, trata-se da designação
utilizada desde Descartes e depois difundida por Euler relativa aos
números complexos. Riemann preferiria que tivesse sido substituída por
números ‘laterais’ - uma idéia que subsistia desde que o abade Buée
tinha defendido que a unidade imaginária era o signo da
perpendicularidade [21], dos números ‘verticais’.
Sobre a paisagem como objecto de decisão
económica e política incidem duas retóricas principais: a retórica da
conservação dos recursos, naturais e culturais, onde se valoriza mais o
que existe do que a sua alteração; e a retórica da produção onde
normalmente se propõe o caminho inverso: altera-se o que está em nome de
um bem considerado maior para o progresso da região.
Conclusão
Uma paisagem consiste num conjunto de
valores ordenados numa visão [22], e constitui um objecto culturalmente
sedimentado tendo a função de garantir os quadros de percepção do tempo
e do espaço.
Discutir e situar a paisagem como
objecto de valor, a partir dos semas - ou enunciados verbais e
icónicos com que é caracterizada nos discursos ou retóricas - é um tema
de investigação. A paisagem como signo comporta uma sintaxe, uma
semântica, e ainda convoca ums dimensão pragmática, utilizando as três
acepções derivadas da propriedade tricotómica do signo que Morris
desenvolveu. A semiose é a acção do signo. Uma paisagem como signo opera
assim uma injunção sobre os actores, sociais, políticos, e outros, onde
se impõe o interpretante, que Peirce estabeleceu ccomo sendo uma
propriedade geral do signo que se manifesta objectivamente.
O valor simbólico do território do Vale
do Côa, integrando a dimensão do tempo e da História mas também a da
Ecologia, numa paisagem geográfica e cultural, fez valer a retórica da
conservação do legado da memória - incluindo a musealização -, integrada
num território ora designado sob a figura de parque.
As gravuras foram a marca, a cicatriz da
memória, o significante, de um vasto mergulho no tempo, a cuja magnitude
se associa um grande valor. No caso, poder-se-ia falar da insídia
milenar - ou da sedução – do xisto.
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http://www.ipa.min-cultura.pt/coa/sh__research_articles__folder/Zilhao98.pdf
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http://www.triplov.com/casquilho/2009/Numeros/index.html
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[22] Anne Cauquellin. 2004. A
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