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JOSÉ CASQUILHO...
Outro Espelho de Portugal

No Verão de 2003 escrevi uma carta ao director do Público chamada O Espelho de Portugal, juntando o nome de um diamante famoso de que andava à caça (e afinal descobri serem vários), a um texto que escrevi com a alma em brasa, por causa dos fogos do Verão de 2003: arderam cerca de 450000 hectares, perderam-se vidas, florestas, biodiversidade, carbono, riqueza e humanidade, numa amplitude fatal.

Nessa altura eu trabalhava num departamento de matemática em investigação teórica sobre composição de mosaicos de paisagem, por forma a que se pudesse situar soluções em termos de teoria da informação e dizer que tal, ou tal outra, parecia equilibrada ou não. De há muito que eu sabia que se caminhava para um problema estrutural na floresta portuguesa, pois a tentação da eucaliptização maciça, serras a eito, tinha vários cenários de negócio ligados com destino na produção de biomassa para pasta e papel. É sabido que o eucalipto tem um bom desempenho no crescimento com plasticidade ecofisiológica ligada aos consumos hídricos. Um negócio simples, encadeando a paisagem e a indústria numa lógica de rentabilização da fotossíntese em pasta e papel em larga escala.

Pouco se ligou à perda de biodiversidade associada a biótopos pobres muito extensos, e outras externalidades como perdas de solo, erosão. Era ainda a vaga do tempo do ouro verde de Mira Amaral e da pasta do Álvaro Barreto e outros, um dos negócios estruturantes do cavaquismo, herdado de projectos antigos que tinham como horizonte Angola e depois, por força da descolonização, foram readaptados para a metrópole. Estávamos no final dos anos oitenta. Muitos dinheiros da UE para o espaço rural foram orientados nesse sentido.

Devo dizer que inicialmente até concordei com a idéia de promover plantações de eucaliptal, parecia-me uma boa aposta pôr o clima e o solo a render por meio da biomassa para o país, e coordenei meia dúzia de estudos de impacte ambiental para florestações; os limites mínimos que impúnhamos para espécies autóctones no arranjo eram no entanto demasiado elevados para a rentabilidade do investimento na lógica do cliente, as empresas de florestação, e portanto deixei de fazer esses trabalhos já que esse aspecto não era negociável. Escrevi e publiquei várias coisas procurando contribuir para refrear os ânimos da lógica eucaliptária, depois incendiária.

Entretanto tinha tropeçado num escolho temível. Tinha-me sido mostrado o relatório feito para a CE a propósito dos efeitos de plantações de eucalipto na Galiza e no Norte de Espanha, do final dos anos oitenta, que situava o horizonte em termos líquidos e implacáveis: os eucaliptais eram estruturas pirófilas, convidavam ao fogo, não só porque os eucaliptos ardem bem que nem fósforos, mas também porque os incêndios facilitavam muito as margens de lucro do lenho nas operações de exploração e comercialização subsequentes. Era um bom negócio no sentido capitalista puro do termo: pouco trabalho, grandes volumes, muito lucro.

Ora, esta conclusão vinha incidir que nem seta num alvo numa deixa que o meu professor António Manuel de Azevedo Gomes tinha deixado escrita, num livro muito pouco divulgado, publicado em 1985, e que eu tinha então achado a modos que exagerada.

O capítulo 6 desse livro (1) chama-se Relações parasitárias: catástrofe incendiária e lá se diz: «Com o advento da Democracia, interesses económicos sem rosto, sem credo e sem baliza, aproveitando-se de uma transição necessariamente difícil promoveram a transmudação do incêndio na floresta de factor ecológico de ocorrência normal em factor de catástrofe nacional: onde ardiam em média e por ano (período de 1968-73) uns 10 mil hectares passaram a arder cerca de 4,5 vezes mais, sem que haja mudado nem o clima nem a floresta. Dos 1,3 milhões de hectares de pinhal bravo existentes em Abril de 1974 arderam em 12 anos uns 500 000 ha!»

Repare-se que Azevedo Gomes escrevia isto em 1985 e o termo de referência era o pinhal, a solução de rentabilização florestal que o Estado Novo promoveu e que Aquilino Ribeiro nos relata em Quando os Lobos Uivam. Já nesse tempo e a esse propósito se denunciavam largos interesses. Em 2003, 2004 e 2005, no conjunto ardeu mais de um milhão de hectares de povoamentos e matos em Portugal. A análise das áreas ardidas entre 1996 e 2005 mostra sem margem para dúvidas que o principal eixo motriz dos fogos foi o eucaliptal, seguindo-se o pinhal.

A indústria do fogo operou numa escala nunca vista em Portugal, terrível. Catástrofe incendiária é a expressão própria para isto e traduz uma relação parasitária de uns poucos sugando todo um sistema, sem qualquer pejo nem escrúpulo. É verdade que o assunto é internacional, e político além de económico, pois que assim o mostram os incêndios da Galiza há poucos anos sucedendo-se a uma boa década de gestão, na Grécia, em vários estados dos EUA, na Austrália, na Amazónia, mostram que o assunto é global e globalmente rentável.

Como vos poderei falar da minha enorme alegria com a sucessão dos números de áreas ardidas de 2006, 2007 e 2008?

Li noutro dia, que este ano, tomando como termo de referência o final de Setembro, ardeu pouco mais de 10000 ha recolocando-nos na fasquia do fogo como factor ecológico, de acordo com os números referidos acima, e já não a catástrofe continuada. A quantos milhares de homens e mulheres teremos de agradecer, desde os que coordenam as políticas e o trabalho de gabinete até todos os que estão nas torres de vigia e no campo, e não falo só dos incêndios, mas dos intervenientes na requalificação florestal da paisagem, no seu ordenamento e na sua contratualização.

Bem hajam todos os que contribuíram para este sucesso e creio que falo em nome de muitos, muitos, portugueses, para não dizer todos, usando uma abstracção. É impossível, por uma questão de honestidade intelectual, dissociar o actual Governo deste caso. Este é um caso de sucesso do PS numa lógica de prevalência de bem comum contra o PSD numa lógica de apropriação privada e delapidação de recursos públicos. Faço votos de que assim continue por muitos anos.

Infelizmente cada ano tem um risco, e o tecido vascular vai crescendo como remuneração do capital, em ciclos, e lá mais para a frente a colheita pode de novo tornar-se muito tentadora para uns poucos gananciosos. Felizmente agora arder vai custar mais caro, porque onera as emissões em carbono do país, enquanto que fixar carbono dá dinheiro, e isso desencorajará durante uns tempos o processo enquanto se fazem contas num mercado indefinido. Até lá pode dar-se por adquirido que a escala em que Portugal arde é política, e tem a ver com as mentalidades insufladas e os valores dominantes, as modas do sistema, as valências, e as regras de prevenção e de sanção adoptadas.

Trabalho em madeira
(1) António M. de A. Gomes. 1985. Uma alternativa Sectorial. Publicações Ciência e Vida, Lisboa, pag. 27