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JOSÉ CASQUILHO
A guerra florida

“... mas não é acaso necessário que no próprio seio da paz mexicana subsista a Xochiyaoyotl, a guerra florida, para o serviço dos deuses e a glória do Sol?”

Jacques Soustelle

 
1. Há uns bons anos, quando estive no México, tentei entender a razão daquele padrão de civilizações pré-columbianas, que emergiam por vagas sucessivas, com uma lógica sacrificial proeminente. Assim, os Mexica, uma tribo escorraçada de outros lugares, também conhecida por Aztecas, migraram até que fizeram sede nos pântanos onde ergueram Tenochtitlan, hoje no sítio da capital do país. Era perto de Teotihuacan, memória monumental da anterior civilização Tolteca - com as suas gigantescas pirâmides do Sol e da Lua e o templo da Serpente Emplumada. Aí, segundo a lenda da origem, os deuses reuniram-se decidindo construir o Universo, acendendo uma fogueira e nela se sacrificando sucessivamente, para criar o Sol e fazer a roda da vida girar... A Pedra do Sol, exposta no Museu de Antropologia da Cidade do México, simboliza este conceito. Quando Fernando Cortez chegou, a sua rápida e espantosa progressão vitoriosa foi muito facilitada pelo descontentamento entre as tribos subjugadas pelo império azteca, que todos os anos tinham de ofertar um tributo de jovens dos dois sexos, para serem sacrificados aos deuses, assim “alimentando-os” com sangue e corações palpitantes. Segundo os cronistas da época, chamava-se a esse tributo e ao correspondente festival anual: a guerra florida. O deus da guerra Uitzilopochtli era o destinatário maior da matança. Numa interpretação política desse processo, pode dizer-se que os rituais sacrificiais da geração reprodutora são factores de regulação do sistema, controlam a pressão demográfica, sustêm a pegada ecológica e mantêm truncados os bandos de opositores. E assim funcionou este império quase um século, mas dir-se-ia que com baixa resiliência: afinal de contas chegou um bando de fora, com dezenas de homens, cavalos, pólvora e varíola, e tudo implodiu pelo caminho - o aço estilhaçou a obsidiana. O palácio do vice-rei e a esmagadora catedral ergueram-se como símbolos da civilização conquistadora, feitos com a pedra dos templos vencidos.

2. Vem isto a propósito de ter lido notícias de que vão ser realizados estudos sobre o insucesso escolar em universidades de Lisboa e do Porto. Acho bem, pelo menos faz-se um apuramento de dados e de relações comparativas, porque com a panorâmica de normalização induzida por Bolonha, um marcado insucesso escolar significa perda de vantagem comparativa com licenciaturas análogas no mercado europeu - trata-se da defesa da lusofonia. Acontece que mesmo no fechar do milénio passado fui co-autor de um estudo sobre o insucesso escolar no Instituto Superior de Agronomia (ISA), onde então era professor e membro do Conselho Pedagógico. Não analisámos a matriz sociológica do problema, mas apenas as séries de resultados numéricos relativos a uma década, e a um lustro com maior incidência: alunos inscritos nas disciplinas, alunos que compareciam a exame e alunos aprovados, nas diferentes disciplinas das licenciaturas. O método consistiu em entender o sistema de obtenção de graus académicos como um fluxo de estudantes no tempo, escoando em canais e acumulando-se em compartimentos, com perdas e atrasos pelo caminho - um sistema dinâmico, de que se avaliava o desempenho. O ISA tinha atingido então num patamar de saturação, num processo que seguiu estreitamente a curva logística, e concluiu-se na análise dos dados que isso se devia sobretudo ao marcado insucesso crónico de algumas disciplinas básicas, dos primeiros anos das licenciaturas, entre as quais avultavam quatro disciplinas do Departamento de Matemática, onde eu era docente. Esse estudo veio permitir um diagnóstico de medidas práticas a propor para algumas disciplinas como a realização de testes ou a implementação de precedências justificadas, a edição de material de apoio, etc, e, sobretudo, tornou visível um panorama que havia inevitavelmente que corrigir, o que começou a ser feito nos anos subsequentes.

3. Tal como na “guerra florida”, entendida como metáfora de um dispositivo sistémico, a “chumbaria” dos estudantes nas disciplinas de matemática no ISA tinha um aspecto ideológico envolvido – o elevado nível da formação que era ministrada – e uma atenuante invocada, a má preparação dos estudantes obtida no secundário, aliás discutível. Mas também tinha vantagens práticas de outra ordem: fazia crescer o número de assistentes porque eram necessárias mais turmas e assim alimentava a expansão do departamento. Felizmente que hoje, a multiplicidade de mestrados, pós-graduações e programas de doutoramento, pode funcionar como um eixo de diversidade e de resiliência do sistema bem mais saudável do que a liturgia clássica dos “cadeirões”.

 

José Pinto Casquilho, Investigador

   
   

 

 

 



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