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JOSÉ CASQUILHO..
O belo monstro

“...a obra a realizar, visando objectivos múltiplos, é de uso múltiplo, no sentido mais amplo do termo, e concretiza-se consociando funções diversas nas mesmas áreas e compartimentando áreas por funções distintas, ou grupos de funções, sempre num mosaico que garanta o pretendido fluxo sustentável e graduado de bens e de benefícios indirectos.”

António Manuel de Azevedo Gomes

Estávamos em Agosto de 1988, e o meu professor Azevedo Gomes, deputado, catedrático do Instituto Superior de Agronomia (ISA), oferecia-me um livro que tinha publicado, de onde extraí a citação em epígrafe. Nesse livro apresenta-se detalhadamente uma alternativa sectorial para os recursos florestais em Portugal, em termos doutrinários e legislativos inovadores para a época e ainda hoje actuais. Azevedo Gomes classificava então o fenómeno dos fogos florestais em Portugal como uma catástrofe nacional - “catástrofe incendiária” foi a expressão que utilizou -, tomando como termo de referência os cerca de 50000 hectares que ardiam na altura, quando comparados com a ordem de grandeza de 10000 hectares que caracterizavam o lustro de 1968-73, considerado o montante normal da expressão do fogo como factor ecológico no clima de então. Já o professor Baeta Neves, outro dos grandes mestres do ISA que formou a minha geração, chamava aos fogos florestais: “o belo monstro” - retive a expressão pela sua riqueza de sentido.

Vem isto a propósito de que, neste ano de 2006, presumindo que a fase Delta não nos surpreenderá, se conseguiu baixar significativamente da fasquia dos 100000 hectares, coisa que já não acontecia desde 1999, rondando valores que em 30 de Setembro estavam apurados como menos de 73000 hectares de área ardida, sensivelmente metade de área de povoamentos florestais e outro tanto de matos. O resultado é uma reviravolta na tendência dos últimos anos, sendo que o número de ignições também baixou para menos de 22000 ocorrências, comparado com mais de 35000 que aconteceram só no ano passado. Em termos médios ardeu menos de um quarto da área que ardeu em 2005 (e também da área média dos últimos três anos), neste ano em que o Verão foi um dos mais quentes dos últimos 75 anos em Portugal, com cinco ondas de calor, uma das quais a maior das últimas décadas.

Está o Governo - e todos os agentes de boa vontade, do terreno e dos gabinetes - de parabéns, com o esforço e o resultado, ajudado pela bondade das chuvas de Agosto. Fica-nos a tristeza da perda da mata do Ramiscal no fogo do Gerês, e também nos fica o luto pelo rapaz de Famalicão da Serra, e pelos cinco colegas chilenos, que se juntaram a muitos outros heróis quase anónimos que se foram em combate, ao longo dos últimos anos. O melhor de tudo, é, talvez, pensar que começou a mudar a mentalidade pirófila que vigorou nas últimas décadas em Portugal, muito induzida pelo abandono rural, correlativo da expansão desregrada dos matos e da cultura do eucaliptal. Mas a verdade é que não se pode relaxar: ainda em 2002 era publicado um cenário de futuro para Portugal, relativo a uma componente do balanço anual de carbono, que não só está errado como possivelmente contribuiu para a explosão dos fogos dos anos subsequentes. Por outro lado, neste mesmo ano de 2006, também se viu como uma sucessão de anos bem sucedidos de prevenção e combate aos fogos na Galiza espanhola teve como efeito o ressurgimento brutal do monstro - entretanto tinham crescido os arvoredos, pasto para chamas.

Felizmente há boas notícias: a possibilidade de utilização dos matos em centrais de biomassa, a implementação de unidades agregadas de espaços florestais, com mosaicos de espécies e faixas de gestão combustível, os mecanismos e valores do Protocolo de Quioto, podem (e devem) ajudar ao principal: reconverter mentalidades numa lógica de rentabilizar os recursos, numa perspectiva de fiduciário, minimizando os grandes fogos. A Estratégia Nacional para as Florestas parece uma boa baliza para promover o desenvolvimento do sector. Por mim, no entanto, só considero adquirido que houve inflexão da tendência se, no próximo ano, ainda se conseguir baixar mais a área ardida - o que já aconteceu em 1997, por exemplo. Assim ajude a meteorologia, a inteligência e a coragem de muitos, a que podemos juntar outras virtudes cardeais.

 

José Pinto Casquilho

Engº Silvicultor

Imagem dos fogos de Agosto de 2005 em:
Na foto vêem-se as plumas de fumo que correspondem a plumas térmicas.
 
 
   
   

 

 

 



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