Carta de Álvaro de Campos para Fernando Pessoa

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


In: Os contos que Pessoa não escreveu, 2018. 


Os contos que Pessoa não escreveu, com organização de Mayda Bustamante e Gabriela Rey Guerra é uma antologia de contos que celebra os 130 anos do nascimento do autor. Publicado pela Huso Editorial (Espanha), em edição bilingue (Castelhano e Português), reúne textos de vinte e cinco escritoras de dez países Ibero-americanos: Espanha, Portugal, Argentina, Costa Rica, México, Cuba, Colômbia, República Dominicana, Venezuela e Peru.


Caríssimo Fernando –

Soube, por alguém que o encontra com frequência no Abel em “flagrante delitro”, que você não só continua a ver Miss Ofélia, como lhe escreve umas cartas cujo teor literário vou considerar infantil, para não perder a cabeça em congeminações ainda mais penosas. V. não poderá continuar a mentir-me, negando, pois tenho nas mãos várias dessas cartas, e até podia citá-lo, se por momentos eu perdesse a vergonha, própria de quem já assinou a “Ode triunfal”! Mas vamos lá, sacrifiquemos o nosso pudor à glória de Fernando Pessoa, citemos. Leia e diga-me se isto é próprio de uma pessoa assisada, se isto, meu caro!, se isto é admissível no autor da Mensagem! Nem Dadá tais pieguices consentiria, Excelentíssimo Senhor Nininho-ninho! Não é o que V. diz? Ora faça-me o favor de ler e imagine que quem escreveu foi o Ricardo Reis, a ver se aprova:

 

31.5.1920

Bebezinho do Nininho-ninho

Oh!

Venho só quevê pá dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!

E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pá le dá jinhos.

Oh! O Nininho é pequenininho!

Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia s’havia carros, combinou tá aqui às seis óas.

Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia

 

Uma meia?!………………. É isto possível, Fernando Pessoa? V. desenha uma peúga no meio da carta? O poeta que escreveu “O mostrengo”?! Nem Dadá, meu amigo!, tal consentiria ao autor de todos os perfeitos e patriamente sublimes versos de Mensagem. Eu até já estou todo a tremer! Vá, calma, Álvaro!, calma, não te ponhas uma pilha de nervos, retomemos e repitamos a citação:

 

Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia).

Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?

Jinhos, jinhos e mais jinhos

Fernando

 

Jinhos, jinhos e mais jinhos!……………… Eu dou-lhe os jinhos, Fernando! Eu dou-lhe os jinhos e não hão de ser poucos! E não é só por este desmiolado infantilismo amoroso, é, como V. bem sabe, pelo envolvimento amoroso, e por loucuras tantas como tratar a Ofélia como heterónima… Sim, ela queixou-se ao tal rapaz, o dos flagrantes delitros no Abel, sim, foi esse que me emprestou o molho das suas cartas. E V. empurrou-me para cima dela, pôs-me na boca insinuações venenosíssimas a seu respeito, ainda que verdadeiras, quiçá, como seja avisá-la de que V. é “um abjeto e miserável indivíduo”, e as aspas provam, caríssimo!, que tenho nas mãos uma carta criminal, uma carta perversa, uma carta que não é da Ofélia para si, nem de si para Miss Ofélia, Fernando Pessoa! Não, nada disso, é uma carta para Miss Ofélia assinada por mim! Apetece-me dar um urro, Fernando! Huuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Uma carta minha para uma mulher?!………………….. Eu estou capaz de o empurrar para os precipícios da Boca do Inferno! Caríssimo, eu não lhe admito isto, V. sabe perfeitamente que a minha exclusiva orientação é outra, e, além desse Oriente, eu assino obra mais exaltante que a sua, meu desorientado e pobre Fernando Pessoa!

A coitada da menina odeia-me à força de V. lhe querer fazer ciúmes, pondo-me na boca malevolências contra si! E, como se fosse pouco, V. ainda lhe atira outros tipos à cara, como o A.A. Crosse! A pontos de a sua conversada também mandar beijinhos, aliás emendo, jinhos e mais jinhos, ao A.A. Crosse! V. não entende? Não descortina nessas pessoas o seu espírito doente, atormentado, a sua identidade comprometida pelas constantes visitas ao Abel? Miss Ofélia, se tudo compreendesse e soubesse, ficava em pânico! Torturado e prezadíssimo Fernando!, V. julga que me faz ciúmes com as suas intrigas, mas, na realidade, só povoa com espíritos a sua vida de ermitão!

Supondo que V. realizasse os sonhos da menina Ofélia… Que literatura, Fernando Pessoa, conseguiria V. extrair de uma fralda borrada? Que metafísica? E repare no tempo que gasta a escrever-lhe e a ler as cartas dela… Caríssimo, aceite a minha orientação, admita que o seu Destino pertence a outra Lei e mude o rumo à escrita: a si, o que lhe convém não é a família, é a solidão!

Finalmente, Fernando, e perdoe o ultimatum: ou V. corta imediata e friamente esse relacionamento com a menina Ofélia ou eu vou para a Índia com o A.A. Crosse no próximo paquete. Não receberá nem mais um poema do seu, apesar de tudo ainda seu,

Álvaro de Campos

Os contos que Pessoa não escreveu
Antologia bilingue celebra os 130 anos do nascimento do autor.
Seleção e edição, Mayda Bustamante e Gabriela Rey Guerra
Huso Editorial (Espanha)
2018