Carta da Ucrânia

Por JAROSLAW KRAWIEC, O.P.
Trad. Vanda Leitão


Caras irmãs e caros irmãos,

Após termos deixado Kiev de carro há pouco menos de uma hora, eu e o Padre Thomas chegámos a Fastiv. Venho frequentemente com grande prazer visitar a cidade e os irmãos e as irmãs que aqui trabalham. Esta manhã, mesmo antes de sair, encontrei uma mulher que tinha conseguido fugir poucos dias antes de uma cidade destruída pelos russos, nos arredores de Kiev.

Ela, o marido e uma mulher mais idosa, tinham decidido ficar em Kiev, apesar de alguns amigos que vivem na Polónia terem insistido para que saíssem.

Adoram esta cidade e não querem continuar a fugir. Compreendo-os bem. Actualmente, precisam de apoio porque não conseguiram trazer nada com eles quando fugiram, à semelhança de muitos, muitos refugiados vindos das cidades e das vilas ucranianas destruídas.

A caminho de Fastiv, eu e o Padre Thomas celebrámos uma missa para as irmãs dos Missionários da Caridade, ordem a que pertencia a Madre Teresa de Calcutá. As irmãs de Kiev alimentam os pobres e dão abrigo a centenas de pessoas sem-abrigo.

Desde o início da guerra, têm vivido na cave do Priorado. Num pequeno canto da cave, improvisaram uma capela. Durante a noite, uma das irmãs dorme aqui.

Explicou-me com um sorriso, que por ser baixinha, cabe lá bem. A madre superiora desta comunidade é polaca, mas também têm irmãs vindas da India e da Lituânia. Mulheres incríveis.

Uma pessoa perguntou-me recentemente o que é que se passava com o nosso candidato à Ordem. É verdade — enquanto escrevi bastante sobre Kiev e Fastiv, acabei por não falar sobre Nikita de Kharkiv.

Quando a situação na cidade se começou a tornar cada vez mais trágica Nikita e os pais saíram de Kharkiv — o bairro onde viviam foi bombardeado e tinham de passar todas as noites abrigados na estação de metro.

Usando não o caminho mais curto, mas certamente o mais seguro, conseguiram chegar a Khmelnytskyi, uma cidade do oeste da Ucrânia situada a mais de 800 quilómetros de Kharkiv. Lá é muito mais seguro, embora à semelhança de muito outros territórios da Ucrânia, se possa ouvir o barulho das sirenes e todos os dias os alarmes dos ataques aéreos. Ao contrário de Kharkiv, de Kiev, ou de Fastiv, esta cidade não foi bombardeada pela artilharia.

Kirill, outro rapaz de Kharkiv ligado aos Dominicanos, também acabou por ir para Khmelnytskyi.

Ontem celebrou-se o feriado litúrgico de Santo Cirilo de Jerusalém, por ser o santo deste dia. Quando lhe liguei (a Kirill), encontrei-o de bom humor e disse-me que estava muito grato pela oportunidade que lhe tinha sido dada de ficar a viver no Priorado com o irmão Jakub e com irmão Wlodzimierz.

Atribui grande significado à Eucaristia Diária e à oração, bem como à possibilidade de permanecer numa comunidade dominicana em tempo de guerra. Pensei nele enquanto lia o catecismo de Santo Cirilo no breviário: “Não vistas roupas brancas resplandecentes, veste-te da devoção de uma consciência tranquila.” Durante uma das nossas conversas, ele meteu-se comigo porque numa das primeiras cartas que lhe escrevi, louvava a sua coragem por permanecer no Priorado de Kharkiv, que foi destruído pelos russos. “Padre, escreveu aqueles elogios e no dia seguinte sai da cidade.” E fez ele muito bem.

Coragem e heroísmo não significam deixarmo-nos matar pelas bombas russas. Coragem significa tomar a decisão certa no momento certo.

Ficar ou partir? Este é um sério dilema que muitas pessoas enfrentam nos territórios destruídos. Algumas tentam salvar a vida fugindo para locais seguros. Outras ficam para proteger as suas casas. Compreendo quer uns quer outros.

A Universidade de Kharkiv, onde Kirill estudou, retomou a sua actividade com aulas online. Soube disto através de Anton, que veio para o nosso Priorado em Kiev no início da guerra. Anton é professor numa das Universidades de Kiev. Admitiu que nem todos os estudantes participam nas aulas, mas pelo menos alguns deles mantêm contacto com os professores.

Os nossos dois irmãos Peters, ambos de Kiev, também eles professores, continuam a dar aulas a seminaristas de rito oriental. Por razões de segurança, estes seminaristas dispersaram-se por vários locais, mas o seminário continua a ser dado remotamente. No entanto, as aulas são mais curtas porque muitos deles estão a fazer voluntariado. O nosso Instituto Dominicano de São Tomás está a funcionar em moldes semelhantes.

Estamos praticamente na terceira semana de guerra e, depois dos primeiros dias de tremendo choque, ansiedade e pânico, começámos a adaptarmo-nos à nova realidade. Todos estão de volta ao trabalho na medida do possível: alguns trabalham online e outros presencialmente, porque as autoridades incentivam todos os que ainda têm a sorte de ter os locais de trabalho intactos e irem para lá.

Não é uma situação fácil.

Muitos partiram, por isso as empresas têm falta de trabalhadores a ponto de, por vezes, não conseguirem funcionar. Kiev é uma grande metrópole. Quem viva longe e não tenha transporte próprio tem muita dificuldade de deslocar-se para o trabalho. Por causa disso, e apesar das baixas temperaturas, vemos muita gente a andar de bicicleta, de motorizada, etc.

Ontem, fiquei admirado ao ver um jovem a conduzir uma motorizada enquanto transportava um instrumento musical dentro de uma grande caixa. Deslocava-se bastante depressa e evitava com habilidade os buracos da estrada.

Eu próprio vou-me acostumando cada vez mais à situação de guerra. Não sei se isto é bom ou mau. Acho que não há outra forma porque, apesar dos alarmes e das explosões, de qualquer maneira temos de continuar a viver.

Claro que tudo isto pode acabar de um momento para o outro, ser feito em pedaços na sequência de confrontos violentos ou de uma explosão provocada por um míssil que atinja o nosso bairro.

Nos últimos três dias, vi uma série de edifícios serem destruídos pelos matinais “convidados alados” vindos de leste. Costumam chegar de madrugada, entre as 5 e as 6 da manhã. Quase todos os dias sou acordado pelo som de uma explosão, às vezes mais perto, outras vezes mais longe. Há alturas em que parece que estou num filme, mas infelizmente tudo isto é muito real e muito perto.

Recebi recentemente um testemunho muito emocionante de Belarus, que chegou até mim através de uma pessoa que vive na Polónia. Sabemos bem como lá a situação é difícil. Belarus viu-se envolvida nesta guerra e, embora o exército bielorusso não tome parte activa no ataque à Ucrânia, os misseis que trazem a morte e os aviões descolam a partir do seu território.

Aqui deixo fragmentos deste testemunho: “Não tenho palavras suficientes para expressar a dor e a impotência que sentimos por causa da guerra na Ucrânia.

A dor aumentou desde que o nosso país foi arrastado para esta guerra.

Estamos imensamente preocupados com o que vos está a acontecer e rezamos para que a paz volte em breve. Se este monstro vindo de leste não cair, é possível que Belarus venha a sofrer ainda mais e acabe por perder a sua identidade.

A luta que os ucranianos estão a travar dá-nos esperança que o bem venha a prevalecer sobre o mal. Admiramos o heroísmo e a unidade fraterna da vossa nação e acreditamos que Deus vos recompensará. Gostaria de poder gritar a plenos pulmões: ‘Meu Deus, quanto tempo mais; quantas pessoas ainda têm de morrer!’

Mas os caminhos do Senhor são inescrutáveis. Desejamos a toda a vossa nação ainda mais força de espírito e oramos dia e noite pela vitória da Ucrânia (alguns de nós com o Rosário de Pompeia).

Espero um dia poder viajar até uma Ucrânia livre a partir de uma livre Belarus.” Depois deste testemunho, recebi outro de uma pessoa de fé que sofre por causa da guerra. Estou muito grato por estas palavras. Acredito que haverá sempre pessoas de bem em Belarus e na Rússia.

Com os meus cumprimentos mais calorosos e com um pedido de oração,

Jarosław Krawiec O.P.
Fastiv, 19 de Março de 2022, às 17.30