JOANA RUAS
Apresentação e tradução de «Karta ba Coronavirus»
Dadolin Murak que em tetum significa poemas de ouro é também o pseudónimo de um dos principais poetas da geração pós-independência de Timor-Leste, Dadolin Murak . Dadolin Murak escolheu para se nomear as palavras com que o tétum nomeia a poesia e que nos soam como as vozes do vento e das fontes que com as nuvens descem das montanhas azuis de Timor-Leste para rivalizarem com os violinistas que nos vales se agrupam para tocar, apenas surpreendidos por raros viajantes que ali chegando a cavalo, descem, escutam e saúdam a música, os homens e as montanhas as nuvens, os ventos e as águas, depois do que demandam o seu destino partindo em paz.
Os «dadolin» são poemas usados na vida corrente como acompanhamento de ofertas sobretudo do «tais», o tecido saído dos teares domésticos cujas matérias primas o ligam desde tempos imemoriais às sociedades camponesas e que se tornou num elemento do património cultural timorense. O «tais» enfeita quer a mesa humilde do povo como ornamenta as paredes do Parlamento Nacional de Timor-Leste. Os dadolin são odes propiciatórias de consagração assim como narrativas épicas que depois de fixadas pelos «senhores da palavras», os liunain, são ritualmente recitadas.
Dadolin Murak pertence a uma geração de intelectuais timorenses que fizeram a sua formação académica no sistema educacional indonésio . Dadolin Murak sofreu durante a guerra a perda de familiares e amigos. Enquanto estudante universitário envolveu-se ativamente no movimento clandestino estudantil em Timor-Leste e em Java onde na década de 1990 militou no grupo de estudantes clandestinos constituído por timorenses e indonésios unidos na contestação ao regime da Ordem Nova do general Suharto.
Dadolin Murak escreve em tétum, a língua nacional do povo timorense. Como os «lianain», oradores e cultores do tétum clássico, o tétum-terik, que guardam na memória para as contar às gerações futuras as histórias dos feitos dos antepassados, Dadolin Murak, saindo do universo do sagrado, o domínio do tétum-térik , optou pelo tétum-praça, uma língua feita com as palavras das ruas e das vielas que, abarcando o universo sentimental e revolucionário do povo, concilia a tradição e a revolução.
Segundo Ruy Cinatti em «Um Cancioneiro para Timor», em Timor ,«a terra, o céu e as águas são habitadas por espíritos. Os espíritos da Natureza são os senhores da terra, do céu e das águas, muitas vezes consubstanciados nos próprios elementos. Existem também os espíritos dos antepassados que presidem à execução das tarefas relacionadas com outros aspetos afins da vida social e religiosa. Se o sistema ecológico opera como condicionante, o sistema social, político e religioso coroam-no como no alto da montanha a aldeia – fortaleza e altar. O ciclo da relação Homem-Natureza culmina nas ceifas e na colheita segundo uma espiral que partindo do umbigo da terra se desenrola no céu».
Dadolin Murak escolheu manter-se no anonimato. Através do anonimato, enquanto poeta, convoca a esfera do sagrado e do atemporal , sagrado que não tem a ver com a religião mas com o sagrado do homem, o sagrado da desordem do espírito dos criadores conservando assim aquele grau de mediação que caracteriza o estatuto do «lianain». A sua postura, que afirma também influenciada pelo poeta português Fernando Pessoa, concilia na sua poesia a fonte primeva de ligação às raízes da sua cultura enquanto o tétum-praça manifesta a sua pertença a uma estirpe de revolucionários com o pé em vários mundos e que através das palavras tocam os ilimitados horizontes da linguagem literária.
A declamação de um dadolin constitui um momento canónico a cargo de um liunain numa cerimónia de evocação dos antepassados ou na de um pedido de proteção da Divindade Suprema quando da construção de uma casa. Oikos (a casa) está presente nos conceitos de economia, ecumenismo e ecologia. A Terra é a casa de todos os homens e foi-lhes dada de presente para que nela construam todos os mundos possíveis. A construção de uma casa é pois como que a criação do mundo numa casa. Através do texto, «Tipos de Casas Timorenses e um Rito de Consagração», o poeta Ruy Cinatti desvenda-nos o sentido da palavra «murak no pseudónimo do poeta Dadolin Murak:«Não podemos deixar de recordar, especialmente em relação às últimas partes do poema declamado na construção de uma casa , passos das epopeias homéricas. De facto, a transposição dos objectos (os que entram no processo de construção da casa) para o plano maravilhoso, uma irradiação solar que se desprende das ferramentas e do material de construção, a identificação com o ouro —símbolo de nobreza— reevoca passos similares da Ilíada e do Odisseia.»
O poeta, senhor da palavra, circula como sangue nas veias da sociedade e tem como o sangue a capacidade de abrir o que é chamado de linhas de comunicação entre o sagrado e o secular, e isso é o mais proeminente meio de fertilidade e vida infundido do antes para o depois. Dadolin Murak ublicou dois livros : a Antologia Poética «Se mak feto ba o — Quem é essa mulher para vós» e «Lilin Referendum — A Vela do Referendo», a história de uma família que fracassa na sua tentativa de conseguir justiça para os seus mortos. «Nós falhámos em reunir os seus ossos/Nós falhámos em acompanhar as suas almas/Porque a nossa voz tem sido muda».
Dadolin Murak vive em Díli mas em memória dos anos de intensa camaradagem de luta e de solidariedade que viveu na Indonésia , em 2017 , no poema General Suharto, Jendral, escrito em bahasa indonésio, que teve uma ampla difusão na Indonésia, interpelou o General Suharto então mandante do golpe contra Sukarno, pelos massacres e pela posterior falsificação dos acontecimentos históricos. Dadolin Murak dedicou esse poema às vítimas dos massacres de 1965 em que pereceram milhares de pessoas conotadas com o PKI( Partido Comunista Indonésio).
CARTA AO CORONA VIRUS
Por DADOLIN MURAK
Olá Coronavirus, vejo que estás a trabalhar arduamente em Wuhan, na Itália e na Indonésia e que agora chegaste à minha amada terra, Timor-Leste. Esta não é uma carta amigável. Tu és como as nuvens negras de tempestade que nos impedem de ver a lua.Tu és como essas marés selvagens que nos impedem de alcançar a segurança de uma praia e que ameaçam lançar-nos nos abismos das profundezas. Escrevo-te com angústia e raiva, tristeza e lágrimas. Ontem à noite, antes de adormecer, sentei-me sozinho fora de casa e olhando para as estrelas perguntei-lhes: «o que sabeis sobre o corona?».Não sabendo o que responder, permaneceram caladas.No entanto viram que ninguém se reunia sob as estrelas , que ninguém cantava ou conversava e ouviram que ninguém cantava ou conversava com os amigos como era costume e ficaram tristes. Até o kakuk que se empoleira nos galhos da samatuku tinha o ar sombrio. Entrei em casa mas não consegui adormecer. Antes da alvorada levantei-me novamente e aguardei no nevoeiro pelo nascer do sol para o interpelar:« Sol, sussurrei eu, o que sabeis sobre este coronavírus?Podeis ajudar-nos neste momento?».O sol fez a sua silenciosa aparição no céu mas nada disse..Assim me quedei até que uma borboleta esvoaçou pelo jardim e poisou numa rosa. Bateu as asas e olhou para mim como se dissesse: «acalme-se ,lembre-se que o mundo é belo, os ventos frios anda sopram, as ondas continuarão a bater na praia e os galos continuarão a cantar pela madrugada.» Já era dia. Quão grato fiquei por ter recebido esta borboleta, a sua mensagem era como uma oração à natureza.
Corona , estou a dizer-te isto para que tu possas saber o quão difícil tu estás a tornar as coisas para nós. Acredito que tu vês a miséria que causaste em todo o mundo com as pessoas a chorar os seus mortos. Na China, na Itália, em dezenas de outros países. A própria estrutura das nossas sociedades foi abalada desde que chegaste e até mesmo a maquinaria do capitalismo. Os ricos que esconderam os seus bilhões de bilhões perderam o sono enquanto veem as suas fortunas esvaírem-se a cada minuto. Talvez possa haver uma lição em alguns destes danos que causaste no mundo.
Donde vieste? Porque apareceste agora? Estás a tentar dizer-nos alguma coisa? Fico acordado durante a noite a pensar na destruição que estás a causar , nos idosos a ofegar como se tu lhes pusesses um pé no peito, nas cidades vazias e nas pessoas assustadas. E penso: talvez tu sejas o castigo da natureza, um modo dela nos dizer que fomos longe demais é verdade que quando os carros e os camiões pararem, os céus tornar-se-ão de novo limpos. E que quando as fábricas fecharem também, elas deixarão de lançar para o ar os vapores que estão a mudar o nosso clima. Talvez devêssemos pedir-te perdão pelos líderes políticos que nunca acreditaram nas alterações climáticas , ou, pior ainda, sabendo que isso estava a acontecer recusaram-se a agir com medo de perderem o seu status. Pergunto-te pois que se é isso que queres pois talvez possamos chegar a uma acordo: cessa o teu ataque e nós tentaremos reformar e parar a destruição do nosso planeta. Talvez queiras ver as águas de novo cheias de vida, assim como as daqueles golfinhos que retornaram a Veneza. De acordo. Pára então de matar os nossos amigos italianos e poderemos enfim conversar. Ou talvez tu queiras testar a solidariedade que os seres humanos têm uns para com os outros. Se nos deixares viver ,talvez possamos ver o que podemos fazer. Vê as pessoas que estão nas suas varandas cantando umas para as outras na Europa. Vê as equipas médicas da China e de Cuba que viajaram para lá para ajudarem os doentes? Certamente que isto são sinais de que nem tudo está perdido. Outros , no entanto, encaram-no como uma oportunidade de promoverem a sua própria agenda egoísta. Talvez queiras enviar uma mensagem aos fascistas, cleptocratas e defensores da guerra no mundo? Isso é compreensível, mas se assim é tu não podias simplesmente acabar com Trump , Bolsonaro e outros que tais?
Corona, tu sabes como somos frágeis enquanto espécie, quão individualistas podemos ser e como somos propensos a fechar os olhos para os problemas dos outros em tempos difíceis. Mesmo agora, alguns de nós correm para as lojas para comprarem bens essenciais como se outras pessoas não precisassem deles, e outros ainda aproveitam o desespero geral e ficam contentes aumentando os preços dos bens essenciais . Há gente que não aceita um centro de quarentena no seu bairro sem protestar. Somos fracos, mas, por favor, deixem-nos assim ser. Estamos cientes de que talvez seja por causa da nossa ganância , da nossa ambição política, da nossa tendência para nos matarmos uns aos outros que tu e teus desagradáveis amigos nos começaram a atacar. Também estamos cientes de como as nossas vidas estão cheias de «falsa consciência », de nos envolvermos demasiado com os nossos próprios pensamentos, e, ao fazê-lo perdemos de vista o que importa: o nosso planeta. Corremos pois o risco de nos tornarmos meros predadores uns dos outros e do mundo em que vivemos.
Corona!tu apareceste entre nós, na nossa nação, a República Democrática de Timor-Leste, uma nação jovem, pobre e frágil. Sabes muito bem que desde a independência não conseguimos ainda construir um sistema de saúde eficaz embora muitos tenham morrido enquanto esperavam por um. Deves saber que embora tenhamos riquezas, desperdiçamo-las em projetos de infraestruturas que não trazem benefícios diretos para o nosso povo. Sabes que embora tenhamos alcançado a nossa liberdade, os nossos líderes passaram muito tempo a discutir sobre o ego e o poder. E ,sabendo disso, tu ainda desejas que também nós caiamos mortos como todas aquelas pessoas em Wuhan e Itália. Ah! por favor, Corona, nós imploramos-te pois já sofremos o suficiente. Queremos que os nossos céus estejam novamente livres de fumaça e poeiras urbanas, queremos reunirmo-nos em paz à luz das estrelas e da lua, queremos ver os golfinhos brincando nas águas límpidas do mar e pássaros selvagens saltando de galho em galho cantando as suas canções a uma nova vida. Queremos redescobrir a nossa mútua solidariedade .queremos tornar-nos num lugar da própria vida. Estamos a tentar melhorar. Por favor, deixa-nos em paz. Adeus.
Dadolin Murak,
Ramelau Tutun, 22/03/2020