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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Uma barraca improvisada...
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Se à carreira política emprestou conhecimentos vindos dos exploradores africanos, desta lhe vem a facilidade em estabelecer correspondentes por toda a parte, da Europa à África e à América. BB vive entre gabinetes, centralizando informações. Leonardo Fea, explorador e naturalista do museu de Génova, foi um dos seus contactos. Explorou a Guiné, as ilhas do Golfo e Cabo Verde, a partir desta época. Em 1897 passa doze dias no ilhéu Raso, sendo infelizmente responsável por umas dezenas de capturas de irmãos meus, como refere R. Gestro:

L'ultima gita ha per meta l'llheo Razo... Vi se reca sopra uno schooner diretto a S. Vincenzo, che deve reprenderlo al ritorno, e, ricoverato sotto una baracca improvvisata con alcuni legni e pezzi di vele, vi trascorre dodici giorni, rallegrati dalla cattura di rare specie d'ucelli e di molti esemplari di Macroscincus Coctei, lo straordinario e gigantesco scinco, esclusivo dell'llheo Razo e dell' llheo Branco.

Em 1894, Orlandi, também do museu de Génova, publicara um artigo sobre a minha anatomia, sem indicar o colector dos espécimes estudados (1). Em nota de pé de página, entretanto, ao confirmar a observação de BB segundo a qual eu comia couves (estes homens ainda vos convencem de que na minha terra eu não fazia mais nada do que refastelar-me com caldo verde, esparregado, salada russa, uvas, cerejas e maçãs, como se eu fosse um príncipe, e Cabo Verde o Jardim do Éden) (2), dá ideia de que a Itália já sofrera uma invasão de Macroscincus vivos, de tal maneira que estou piamente convencido de que, se me extingui, primeiro foi em Cabo Verde, e só depois nos museus da Europa:

Questo fu confermato dai fatto, che gli esemplari dei Museo Zoologico dell' Università di Genova, altri acquistati dai marchese G. Doria e moltri altri posseduti dali dott. conte M. G. Peracca di Torino, furono mantenuti per alcuni mesi con frutta e specialmente con mele, molto piti aggradite che ogni altra.

Peracca, recordo, trabalhou com pelo menos quarenta indivíduos, muitos deles vivos. Orlandi estudou quatro, de acordo com a tabela de comparações de tamanhos que apresenta, entre os seus, o de Paris e seis de BB. Já agora, o maior era ainda o de Paris, o que significa que Saint-Hilaire até nisso teve dedo. Em 1990, de viva voce o herpetologista J. M. Cei contava que vira, no museu de Turim, 25 exemplares do famoso lagarto cabo-verdiano, restos da colecção do conde Peracca, naturalista que descobrira outro carácter da minha espécie, julgava ele que único na família: ao contrário dos outros
Scincidae, eu punha ovos (2). Na verdade, dentro do mesmo género, não é raro encontrar uns Scincidae vivíparos e outros ovíparos. Mas Peracca não o sabia. De qualquer forma, sou um extravagante, e por isso os naturalistas e viajantes me perseguiram, a ponto de não restar hoje em Cabo Verde mais um espécime para amostra. Enfim, dizem eles. Por mim, gostava de o confirmar. A minha biógrafa, embora não tenha ido aos ilhéus, andou por Cabo Verde a colher informações, e do que ouviu a uns pescadores de Salamansa, e a jovens, cujos livros de História falam de uns lagartos grandes que existem nos ilhéus Branco e Raso, ficou com a ideia de que é provável que alguns de mim ainda sobrevivam.

Se hoje já ninguém me conhece, tempos houve em que fui mais solicitado que a Madonna. Durante umas décadas, vivi a glória, nenhum museu importante dispensou a minha presença, quer nos jardins zoológicos quer nas vitrinas. Além dos citados, autores como Mertens, Saez e Peters, consideram-me uma celebridade, modéstia à parte. Em trabalho de 1955, sobre os répteis colhidos por Lindberg em Cabo Verde, Mertens lamenta que ele não tivesse apanhado nenhum Macroscincus. Os que figuram na sua lista já estavam no Senckenbergische Museum desde, três deles (4), 1913. O quarto da colecção fora recebido em 1901, provindo todos do ilhéu Branco (provindo todos, aliás, do Jardim Zoológico de Frankfurt). Significa isto que em 1913 eu ainda existia; esta é a data em que lhes apareci vivo pela última vez, tanto quanto sei. Mas uma coisa é a literatura científica e outra a minha vida privada.

Mertens e Angel consideram-me um endemismo, e possivelmente têm razão. Em seu entender, eu sou indígena de Cabo Verde, ali nado e criado, não fui importado de nenhum outro lugar. Mas se eu não colonizei os ilhéus, algum remoto antepassado o fez, pois ninguém nasce por geração espontânea. De que ancestros serei então relíquia? E quando terá pelo menos um (é verdade, em situações críticas, o lagarto metamorfoseia-se de maneira a reproduzir-se sozinho, por partenogénese) arribado a Cabo Verde? BB nunca fez tal reparo, e certamente no seu tempo uma criatura como eu era de difícil abordagem, os conhecimentos situavam-se muito aquém dos actuais (5). Teve até o cuidado de evitar assunto tão polémico. Tal como evitou religiosamente o conflito levantado por Darwin, parecendo nem conhecer tal personagem (ignorância desmentida pela sua biblioteca), foge para a extinção mal acaba de aflorar o problema da minha distribuição geográfica:

A des époques antérieures il a dû avoir un habitat beaucoup pius étendu; il a dû successivement disparaître, comme tant d'autres espèces, partout où l'homme s'est établi à demeure; maintenant il se trouve relégué dans son dernier refuge, mais lià même il lui sera impossible de résister longtemps à la persécution qu'li doit aux qualités qui le font rechercher comme aliment. Ce sera dans un temps plus ou moins long une espèce éteinte; car sans moyens de défense, sans agilité, sans inspirer aucune crainte superstitieuse qui puisse la protéger, elle est condamnée d'avance à partager le sort de I' Alca impennis, du Strigops, de I' Apteryx et de plusieurs autres représentants de Ia faune actuelle.

Tenho pena. A Europa, extasiada com a minha singularidade, foi porém incapaz de a interpretar. Encheram-me de mistério - eu era extraordinário, mas raros levantaram uma ponta do véu para explicarem em que residia afinal o mistério. Eu sou extraordinário porquê? Descobri-o, pouco a pouco, à minha custa (6). A literatura da época não me ajudou, pelo contrário: eles sabiam pouco, erravam muito. Alguns, nem o meu nome conseguiam soletrar, tudo navega em grande confusão (7). BB é o autor mais correcto, mas fechou-se na sua concha, só escreveu o que achou conveniente. Dois pequenos artigos, secos, formais. Por estranho que pareça, foi dos raros autores a negar-me o direito à celebridade, como se um elogio ou manifesto de apreço pudessem diminuir a sua. Invejoso. Por isso ainda hoje faltam dados que permitam esclarecer completamente a minha biografia.

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NOTAS

(1) Serpa Pinto, pois ele mesmo diz que tinham sido enviados animais para Génova.

(2) A pior estratégia é supor que o adversário é parvo. Estão todos na maior paródia e a autora sem dar conta disso.
(3) Sim, mas as dimensões que indica são mais próprias dos ovos de galinha.
(4) Andam sempre aos trios, está visto...

(5) A pior estratégia é supor que o adversário sabe menos do que nós.

(6) Na altura em que escrevi este artigo estava longe ainda de pensar em espécies introduzidas e hibridadas de maneira tal que não aparece na população o leque habitual de formas intermediárias que caracterizam a alta variabilidade individual dos híbridos. Face a estes tipos de hibridação controlada, os cientistas que não sabem facilmente classificam os animais como espécies ou subespécies novas para a ciência.
(7) A confusão também é controlada: incide nas gralhas da nomenclatura, seja da espécie, do autor ou da localidade; para além disso existe uma paródia com as dimensões, regime alimentar dos animais, o facto de servirem de alimento ao homem, etc.. Devo dizer que a falta dos originais me impediu até agora de comentar outros aspectos, limitando-me a remeter para Carreira, que cita um artigo de João da Silva Feijó, em que este escreve que os lagartos eram moles, lesmáticos, com pele recoberta por escamas de peixe, pele que servia para fazer sapatos.