Cabeças duras e corações obstinados

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.

1. Conhecemos as narrativas bíblicas, míticas, da Criação e a da expulsão do Paraíso (Génesis 1-3). Eduardo Lourenço acrescentava: somos nós que continuamos a expulsar-nos do Paraíso. Trocamos a criação pelas muitas formas de destruição. Este mundo podia ser muito diferente. Somos nós e as gerações que nos precederam que o estragámos. Somos nós e as gerações futuras que temos de o refazer.

Existe um poema, no capítulo 11 do livro bíblico, atribuído ao profeta Isaías, que procura recriar um mundo que parece insólito. É a História do Futuro, como diria o P. António Vieira.

Vou evocar esse poema, contra todas as formas de violência, quando nós, pelo contrário, andamos sempre a inventar novas formas de destruição. O que é gasto para desfigurar o mundo dava para sonhar e realizar um mundo outro. Eis o poema.

«Brotará um rebento do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então, o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar»[1].

Os movimentos ecologistas são formas de esperança, histórias de futuro. Não se resignam à destruição da Criação, obra de Deus e do ser humano. A situação em que nos encontramos não era inevitável. Agora, só nos resta não continuar os erros do passado e tudo fazer para tornar este mundo sustentável, um paraíso.

2. Há mais de 70 anos, quando o mundo oscilava sobre o fio duma crise nuclear, o Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris (1963) a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, o Papa Francisco, à vista da deterioração global do ambiente, quer dirigir-se a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica [Laudato Si’], pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum[2].

O que observamos, hoje, é uma sementeira de violência. Entrando na guerra, é preciso fazer tudo para renovar o armamento continuamente, para poder destruir o outro, em vez de gastar esses recursos para capacitar os povos todos a viver em paz e não no medo uns dos outros. Em vez de construirmos instrumentos de destruição e de morte, poderíamos fazer instrumentos de desenvolvimento.

É também atribuído ao profeta Isaías outro sonho que está na nossa imaginação e nas nossas mãos realizar.

«No fim dos tempos o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos, e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: Vinde, subamos à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém, a palavra do Senhor. Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças em foicesUma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, Casa de Jacob! Caminhemos à luz do senhor»[3].

Não parece que sejam estes textos, e outros semelhantes, a leitura e a prática do cabeça dura e coração obstinado, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, de que fala o texto do profeta Ezequiel:

«Naqueles dias, o Espírito entrou em mim e fez-me levantar. Ouvi então alguém que me dizia: Filho do homem, Eu te envio aos filhos de Israel, a um povo rebelde que se revoltou contra Mim. Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje. É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio, para lhes dizeres: Eis o que diz o Senhor. Podem escutar-te ou não – porque são uma casa de rebeldes –,
mas saberão que há um profeta no meio deles»[4].

3. O Papa Francisco convocou os novos Arcebispos Metropolitanos para receber a bênção dos Pálios, na Celebração da Missa, no dia de S. Pedro e S. Paulo (29 Junho). Este dia foi escolhido para significar e nos dizer a importância dos serviços (dos ministérios) na Igreja, a não confundir com as metas de uma carreira. Não são para restringir, mas para abrir o futuro e construir a esperança em todas as situações. Em comunhão com Pedro e seguindo o exemplo de Cristo, porta das ovelhas (cf. Jo 10, 7), os Arcebispos Metropolitanos são chamados a ser pastores zelosos, que abrem as portas do Evangelho e que, com o seu ministério, ajudam a construir uma Igreja e uma sociedade de portas abertas. O próprio Natal deste ano será marcado pela abertura a todos os povos, todos, todos, todos. É esta abertura que dá início ao novo Ano Jubilar, um ano de graça para todos.

Enquanto uns abrem as portas, outros fecham-nas. O Jornal 7Margens (01.07.2024) refere que as Igrejas da Terra Santa denunciam ataque coordenado das autoridades israelitas contra os cristãos. Os patriarcas e líderes das Igrejas Cristãs em Jerusalém escreveram uma carta ao primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, lamentando o que consideram ser um ataque coordenado à presença cristã na Terra Santa.

Em vez de convocar israelitas, muçulmanos e cristãos para construírem um futuro de paz, de todos, por todos e com todos, procuram tornar a vida impossível entre estes povos.

Fala-se de Terra Santa, mas para poder usar este nome deveria ser uma Terra de diálogo entre muçulmanos, judeus e cristãos.

 

[1] Is 11, 1-9

[2] Cf. Laudato Sí, nº 3

[3] Cf. Is 2, 3-5

[4] Ez 2, 2-5


Público, 7 de Julho 2024