ANTÍMIO DAMIÃO
Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Formado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa / Mestrando em Ciência Política na Universidade da Beira Interior
Na rua era o frio e a ameaça da chuva, a decadência e o desamparo urbanos. Abotoei o casaco e afundei as mãos nos bolsos. Prossegui. A farsa do autor misterioso não me agradava em absoluto, quando mais a sua sequela na realidade mundana. Exigia, pelo menos, uma indemnização quer monetária, quer moral ao crime de plágio de que fora alvo, com a agravante de o mesmo sugerir fortes indícios de invasão de privacidade. O pouco que lera de João Pestana era, sem tirar nem pôr, matéria da minha autoria, mesmo que revista e aprimorada para publicação. O mais bizarro recaía no facto de o livro ser o produto final das minhas ideias, ou seja, algo ou alguém tinha-mas furtado para as verbalizar e publicar já maturadas antes de eu o fazer. Como era isto possível? Mistério. Em suma, as ideias eram minhas e fora eu quem as formulara. Ou será que não? Será que havia um duplo que, por maquinação do acaso, pensava tal como eu e usava o meu pseudónimo? Ou seria um clone? Um gémeo perdido? A bilocação do meu alter ego ou um transtorno dissociativo da minha personalidade? Por mais justificações que pudesse engendrar, não me ocorria resposta. Quando menos, dera-se um salto metamórfico no tempo, um caso raríssimo de autoscopia e impossível de explicar à luz da Física. Segundo os mitos nórdicos e germânicos, o encontro com o doppelgänger, ou “aquele que caminha a par de”, é sinal de mau agouro, um prenúncio de morte. Na arte proliferam exemplos desta ominosa figura, cuja presença sentia perto de mim. Ora, estando eu ocupado com tais inquietações do espírito, dei por mim na Leviatã, avenida de rara beleza com focos de luz multicoloridos espalhados no topo dos edifícios, de numerosas lojas de artigos de luxo e fachadas deslumbrantes, de salas de espectáculos retro-futuristas e do templo colossal e rococó de Karl-Az Brum, no qual deixei, à entrada, uma mensagem anónima denunciando a pornografia e os estupefacientes que aí traficavam. Com o tempo, a popularidade destes bisbórrias de colarinho vermelho ultrapassou em muito o âmbito religioso e o bom senso, na medida em que faziam o que bem entendiam com a maior impunidade. Para isso tinham seguidores que agiam em nome da sua fé corrupta como anjos do Inferno; almas imundas de cara laroca dispostas a adulterar a beleza e a decência das coisas dos homens. Para eles, tudo se resumia à prática de uma ridicularia obscena, vil e abominável: a Macacada Sagrada, como soíam chamar-lhe. Do seu rol de pretensos profetas, João Mateus Elias, homem de baixa estatura e farta guedelha à saguim, foi, talvez, o mais famoso. Fundador do culto, dispôs-se a reinterpretar o martírio bíblico mas sem quaisquer limitações. Assim, influenciado pelos sermões do pai, antigo pastor ortodoxo, mostrou cedo a inteligência e a lábia próprias de um líder religioso, depressa se insurgindo contra a sociedade humana, pela qual sentia um misto de compaixão e nojo. Nestas circunstâncias, saiu de casa ainda jovem, e, por uns tempos, prostituiu-se no Bairro da Vitória, lugar eleito de putas, bêbados e cães vadios. À entrada para a idade adulta, juntou à sua volta uma meia dúzia de convertidos e fundou, primeiramente, o Concílio da Macacada Sagrada, o qual, após entrada de mais alguns membros, renomeou de Culto de Karl-Az Brum, o Saguim Sagrado. Com o aumento de crentes e lucros, a seita cresceu e deixou a cave de Mateus — onde então se agrupava para orar — reunindo-se por conseguinte num esconso armazém na Praça Imperial. Aí, qualquer tipo de transação mercantil era proibida na sala litúrgica. Mais ainda, ai de quem traísse Mateus!, pois ao infrator se aplicaria pesada coima, embora dedutível em parte no valor do aluguer mensal do armazém. Estes eremitas à cata de luz divina, ou Karls, como depreciativamente os chamavam, fornicavam como coelhos e, facto curioso, ingeriam doses fartas de feijoada e vinho para vomitarem à tripa-forra nos ritos dominicais. O primeiro a fazê-lo era bendito por Mateus, que, apanhando o vómito do chão, o esfregava no rosto do pecador e o perdoava com um forte estalo à queima roupa e uma entusiástica sodomia. Ao cabo de um tempo, os Karls granjearam o apoio e a confiança das classes sociais mais abastadas e influentes, passando a gozar de impunidade diplomática. Este privilégio, desde logo, incrementou neles a prática frequente de orgias e o tráfico supradito que, mercê dessa impunidade, negociavam à descarada. Por mais que apregoassem mandamentos e aplacassem com sacrifícios a fúria piedosa de uma entidade superior, nenhum dos membros, ou qualquer outro profeta, merecia, a meu ver, especial devoção. Em suma, a banha da cobra agradava a gregos e troianos, e, de certo modo, aliviava o fardo vital de desgraçados e pobres de espírito. Em todo o caso, a ascensão a sério de Mateus começou com as reformas ambientalistas, a propaganda, as pandemias e as neuroses que então se planearam para apagar o passado, reescrever o presente da cidade e, em consequência disso, alterar o futuro mediante a ideologia e a crença dominantes. As discussões inicialmente científicas depressa se converteram em disputas políticas e económicas. As soluções, em vez de levadas a cabo, ficaram-se pelos ajustes e pelas meras intenções discutidas em congressos subsidiados pelos próprios agentes da desgraça, que muito tinham a lucrar com as crises sucessivas. As massas, pouco ou mal informadas, viviam à revelia do saber, ao mesmo tempo que aceitavam mais e mais o discurso veiculado pelo governo e pelos média. Com o medo a crescer e a sobrepor-se à razão, as coisas descambaram num frenesi de comida rápida, decadência, perversão, escravatura e toda a depravação possível e imaginária dos homens. Por fim, a mudança deu-se e a esperança renasceu numa tarde abrasadora de meados de Agosto, quando o Sol, já a preparar dormida no poente, sofreu um monumental apagão. Para o Universo fora arritmia de somenos, para a Humanidade, um viso do Apocalipse. E foi vê-los, homens, mulheres e crianças, atropelando-se como gado em debandada, sem profeta que lhes valesse. Os teóricos da conspiração esfregaram as mãos de contentes, pois confirmavam a valia dos seus prognósticos. Os loucos aplaudiram o fenómeno, uma vez que os indultava da sua diagnosticada loucura. Por entre o caos instalado, os jornalistas galgaram as ruas, ansiosos por cobrir o acontecimento e pespegá-lo nos ecrãs da televisão, nas capas das revistas e nas parangonas dos jornais. Os pedidos de auxílio multiplicaram-se e a sobrevivência sobrepôs-se à caridade. Polícias e bombeiros acorreram de uma ponta a outra da cidade como paladinos de sirene ruidosa em socorro dos necessitados. Políticos e banqueiros, depois de verificarem a segurança das famílias — as deles, entenda-se — agiram tardiamente, ignorando por completo, e sem surpresa, o protocolo a ter em conta numa emergência escatológica daquela amplitude. Os idosos, ou parte deles, viram tudo na televisão de modo a não perderem pitada da transmissão em directo, aproveitando o tempo dos anúncios para, em casa ou nos lares de terceira idade, tomarem a medicação prescrita ou irem à casinha. Os cientistas, sábios de cachimbo e calva eminente, associaram a ustulação das manchas solares à causa do fenómeno. Os católicos, por seu turno, viram ali a ira deífica do Antigo Testamento e, sem rogar em demasia mas não se fazendo rogados, adaptaram a hermenêutica das homilias ao apagão, prevendo, assim, afluência de crentes às igrejas. Em virtude disso, o milagre do Sol foi sinal da segunda vinda do Nazareno e a manifestação do badalado “Ó Cristo, vem cá abaixo ver isto”. Já Mateus aproveitou a embalagem para favorecer a ascensão da sua seita tendencialmente terrena e muito pouco divina. De mais a mais, o apagão serviu de clister cósmico ao recto da Humanidade e preparou-a para uma das distopias à escolha numa ficção perto de si. Todavia, quer o fenómeno, quer os flagelos precedentes foram esquecidos e a iniquidade repetiu-se, anos depois, como farsa de mau gosto. Mateus, esse, foi morto à facada por um suposto fanático — trinta e três golpes no peito e uma degolação para lá do osso, a cabeça presa ao corpo por um fio de músculo e pele. Ninguém merecia morrer assim, nem o pior dos charlatões. A arma do crime, facalhão de cozinha afiado, ainda que recuperada pela polícia, não permitiu identificar o assassino, embora as suspeitas recaíssem na amante de Elias e, posteriormente, no amante desta. Fosse quem fosse o culpado, a verdade é que não se encontraram provas suficientes para incriminar alguém em particular. De resto, dera a sensação de o assassino pertencer à esfera do poder central ou às elites oligárquicas.
Virei à esquerda na Travessa do Baluarte e ziguezagueei por entre veículos mal estacionados e veteranos de guerra mutilados que, na companhia melancólica dos seus respectivos rafeiros, mendigavam ao abrigo de escadas de incêndio e paredes cobertas de cartazes rasgados. Depois das dicas de sobrevivência oferecidas pela crème de la crème belígera e injustamente desprezada deste país, contornei as colunas da Quinta Comarca Judicial e, subindo as escadas de incêndio dum edifício, quedei-me a fumar à beira do terraço, quieto que nem um rato, apreciando um coito atrevido no prédio da frente. A mulher, roliça, de braços abertos, embebida em suor e de costas para o homem, era penetrada por este, contra o vidro da janela. No momento do orgasmo, o homem, peludo e à beira dum achaque cardíaco, tirou o pénis de dentro da mulher e ejaculou-lhe para cima das nádegas. A mulher, por sua vez, agarrou na cintura do homem e, na mesma posição mas em sentido inverso, investiu contra ele. O desejo de ambos, de tão veemente, ardia a bem querer. Apesar da feiura do casal, a cópula fora competente, dedicada, digna de se ver. À custa disso, dali parti bem-disposto e de fé renovada. O amor cuida quando dá e dá quando quer. Por cima de mim estendia-se o Viaduto da Glória, via axial que atravessava a cidade e se contorcia no horizonte como uma serpente de alcatrão pontuada por lampiões e pilares enviusados até à ponte para a zona industrial. Onde antes afluíra a foz do rio, jazia agora um cemitério abissal de sucata, fruto do acordo ambiental que abolira o uso de aparelhos e veículos anteriores ao Grande Apagão. Não obstante a interdição do espaço, os mendigos erravam por ali à procura de aparelhos funcionais. Aproveitando o sentido do meu itinerário, fui até ao Cais da Revolta e vagueei por entre os armazéns abandonados e por alugar do porto. Avancei molhe adentro, tendo como companhia, ao fundo, a luz do antigo farol. Subi a bordo do navio inoperacional aí atracado e, no convés, sentei-me na gávea, perdido num passado irrecuperável, a contemplar o horizonte pardacento. Para lá do ferro-velho, que de certo modo moldara a vida e o tecido urbanos da antiga Custódia, as torres das fábricas retalhavam as nuvens como bocas de fogo e fumo. Para esse inferno fabril deportavam marginais e cidadãos em quarentena, o que aludia à sempiterna exploração do mais fraco pelo mais forte. Em boa verdade, nunca houve vontade de mudar o que quer que fosse. Atirei o cigarro para a sucata e espantei as ratazanas que aí se agrupavam. “Políticos”, murmurei de mim para mim. De volta às ruas, era o bombardeio constante de imagens nos outdoors e painéis digitais, ideias e estilos de vida cuspidos ao cidadão-consumidor como uma cantilena de mau gosto que a todos competia entoar da mesma maneira. O homem do futuro, tão desejado no passado, estava cativo numa redoma tecnológica e cultivava escrupulosamente a sua imagem, reunindo em e para si mesmo a realidade massificada e paradoxal de uma rede de egos atomizados, unidos na diversidade, juntos na distância. (O gado sofre menos que isto.)
Com o pessimismo e a larica a despontarem, passei pela roulotte Mestre Bago. Emigrante de Honshu, no Novo Japão, Bago viajara para Custódia a cargo de uma sucursal japonesa de recursos humanos e mão-de-obra barata. Aqui investiu numa caravana-restaurante e no aperfeiçoamento do seu hambúrguer japonês, compreendido de vários tipos de carne picada e bambu. À minha chegada, Bago conversava por entre a fumarada dos grelhados. A roulotte era um cruzamento de carrossel de feira popular e nave intergaláctica em constante rotação; por cima dela, um candeeiro em jeito de pescoço de girafa iluminava o perímetro em volta; mesas e bancos saídos da roulotte dispunham-se e recolhiam-se como tentáculos mediante os clientes a alocar. “Kon’nichiwa!”, apregoei calorosamente, ao balcão. “Prazer em tê-lo novamente em meu humilde estabelecimento de carne picada e vegetais grelhados do mundo”, retorquiu Bago, incansável e extraordinário fala-barato de uniforme branco e gravata encarnada de vinil. “Que o traz a este festim de comida no fim de viaduto ao longo de bela cidade de luz?” “Beringela frita”, respondi. Na realidade, além de comer queria ouvi-lo falar, não só porque adorava o seu sotaque e o seu rosto centenário, mas também pela beleza da sua prosa. Até as suas reprimendas soavam líricas. “Cuidado com delicada verve de beringela em óleo ardente. Olhos que nada vêm sofrem”, despachou ele ao jovem empregado que o auxiliava. “Já, já terá pitéu que revestirá seu estômago e aplacará apetite de lobo solitário”, disse ele para mim, com excessivas vénias. Ali paravam seis homens de barbas aparadas em forma de cruz, corte de cabelo à apache, casacos de cabedal laranja e botas platinadas, comendo cascas de courgettes fritas e sentados como primatas à volta de um osso. O líder do bando, de rosto cúbico e chifre de unicórnio no capacete cinza, parecia um narval. De pés sobre a mesa, realçava a sua masculinidade cuspindo para o chão e retocando com um espanador o pó de arroz no rosto. Ao lado, quatro jovens regalados com uma terrina de gafanhotos salteados brincavam aos pobrezinhos sem no entanto disfarçarem a suavidade patente da sua pele e os seus sapatos de pele verdadeira. Na mesa adiante, sete mulheres de salto altíssimo em guisa de dominatrix bebiam cerveja e comiam cachorros-quentes. Numa tentativa de as seduzir, muitos se disponibilizavam a pagar-lhes bebidas, mas elas, nem chus, nem bus. Noutra mesa, quatro asiáticos com membros biónicos jogavam dados interface. Em gestos espasmódicos, apostavam créditos ao desbarato e comiam grilos tostados, um a um, com a delicadeza de uma donzela robótica. Face aos apostadores no sistema icónico, que se arreliavam a cada lance, a sorte dos dados, ao que parece, tendia nessa noite para o sistema numérico. A meu lado, um grupo de camionistas acotovelava-se ao balcão e bazofiava como uma trupe de políticos em debate acalorado, os seus bigodões agitando-se distintamente. Um deles, conhecido por Fuzil, para além do carrapito capilar, embicara de tal forma as pontas do bigode que nelas pendurara calamares de lula clonada que ia devorando à medida que falava. “Eis refeição maravilha para remetê-lo a paraíso”, interveio Bago, servindo-me. “Noite boa, hum, Mestre?”, perguntei e trinquei a fatia de beringela. “Noite revestida de prata ser lar de criaturas boémias, cujo apetite Bago aplaca com sabores orientais. O negócio floresce por causa da paixão que Bago sente por almas da noite que vagueiam em autovias e monocarris. Nelas pulsa o coração da cidade.” Palavras para quê? Bago era um atento observador da noite e seus amantes, a quem tributava a mestria da palavra e da gastronomia. Se fosse rico teria decerto lugar no Cardal Criogénico dos Notáveis. “Ah, a noite… Que mistérios nos confina e que vidas palpitam por entre as suas sombras?”, alinhei no espírito da conversa. “Sua alma ser de quem abraça o lirismo deste gigante de luz e cor. Pena não haver mais lábios de mel que pinguem saber doce em papel cor de neve” disse ele, ajeitando o bivaque do empregado. Depois, mandou-o ir atender um grupo de punks recém-chegado. “Pst!.. Mestre – e, com o dedo, pedi-lhe que se achegasse –, ouvi dizer que vão franchisá-lo. É verdade?” O sorriso de Bago dissipou-se. “Onde ouvir tal mentira assassina de bem-estar?”, sussurrou. “Diz-se por aí, Mestre”, respondi, apologético. “Por aí se cravam dentes de cobra e apetite de pica-osso! Pai de tão ruinoso boato apodrecerá em pote de óleo a ferver! Há muito tempo, Bago voar de Nihon para Custódia, sobrevivendo a tempestade de mar e encontrando sorte através de vontade muita e ouro de plástico. Com isso, criar pequeno império de carne picada e vegetais do mundo. E nenhum tubarão de gravata ir devorar ideia peregrina!” Bago ficara visivelmente irritado e, coisa rara, fora de si. Tanto mais que nem repreendeu o empregado, que, em bicos de pés para alcançar a caixa registadora, não ocultara o riso. “É isso mesmo, Bago! Não lhes dês peva!”, despachou Fuzil, intrometendo-se na conversa. “O Sindicato dos Camionistas está cá para te apoiar no que for preciso!… Morte aos ricos!” Como se entende, Fuzil liderava a facção proactiva do sindicato dito e não perdia uma para reivindicar os seus direitos. “E digo mais: se a Nutre-à-Noite abocanhar a Mestre Bago, vai-se a independência das roulottes e lá vem o vampirismo multinacional. Pelos vistos, não bastou à Fome de Lobo apoderar-se da Sabores Sísmicos! Haja pachorra! Mais cedo ou mais tarde, isto vai dar merda.” A prédica de Fuzil podia ser desagradável, mas a verdade é que tinha razão. Tal como previsto desde o Grande Apagão, o capitalismo, em termos gerais, não implodira como esperado, aliás, longe disso. As multinacionais apropriaram-se das pequenas e médias empresas, e, com uma voragem carnívora, renomearam com nomes de marcas comerciais o património histórico, promovendo, assim, a sua imagem e o seu estatuto junto dos governos e dos estados-nação. Com efeito, não havia monumento, torre, metropolitano, caminho-de-ferro, auto-estrada ou obra pública sem um patrocínio comercial. Deste modo, os barões dos negócios aliaram-se aos políticos numa relação de promiscuidade senhorial e infiltraram-se em todos os ramos sociais, privatizando instituições públicas para depois as eliminarem e, com isso, fundarem uma paz podre que, verdade seja dita, beneficiava apenas as elites oligárquicas. Esquerda, direita e centro eram ideologias proscritas, sinónimo de mentira, uma vez que o teatro e a encenação dos líderes já não iludiam ninguém. Tudo era entretenimento. Pão e circo. As corporações, cavalgando a onda de indignação que se seguiu, tentaram televisionar e patrocinar a revolução dos populares, porém, falharam neste objectivo ao aceitarem a opinião de técnicos em detrimento da de filósofos. Como resultado destas políticas, as fornalhas insaciáveis da zona industrial passaram a alimentar-se dos elementos mais dispensáveis da sociedade civil e a pedir sacrifícios, carne para canhão, cordeiros para a matança. Escusado será dizer que as autoridades rejubilaram com esta medida, bem como os prisioneiros que, já cativos, se julgavam deportados para uma espécie de colónia de férias, quando, na verdade, se entregavam a um tártaro ainda pior que a reclusão porquanto em prol de um bem comum.
Entretanto, à roulotte chegou Tobias Santoro, surgido numa motocicleta de carbono ultraleve. Amolador de facas em part-time e um dos raros fugitivos da zona industrial, era sujeito de estatura média, pele bronzeada, magro, seco, rijo, estóico por natureza mas propenso a rituais peculiares de higiene, birras repentinas e, às vezes, carrancas postas sem motivo aparente. Dada a quantidade de tatuagens, gostava de mostrar o tronco nu quer no frio, quer no estio. Raramente passava sem psicotrópicos e barbitúricos, daí o seu discurso incoerente mas alegórico. Nessa noite, tudo indicava que a pedinchice lhe rendera mais que o costume e, por isso mesmo, vinha animado. “Então, meu caro leopardo, para quando a caçada decisiva? — Ao sentido latente da sua pergunta associei a causa do meu litígio. — O caçador — continuou ele — avança de noite como um peão manipulado na esteira do destino. Ele prende a luz do ser por dentro e por fora, nas mandíbulas e nas garras. A transformação da mentira em verdade é o fim da fantasia. Obra feita por fazer é método de saco roto, é bater no molhado, é barulho de luzes e por aí fora. Mas quem sou eu, leopardo, para controlar ou definir os teus ímpetos? Não passo de um espoliado de bens e terra, nómada de bairros, ruas e vãos de escada, de avenidas manchadas de óxidos e lixo, paredes meias com a certeza de nada ter senão o abraço terno da noite. Daqui nos iremos, leopardo, tu e eu, um dia destes”, declamou Santoro. Poesia vadia. Em seguida, pediu, curto e grosso, como manda a lei, um hambúrguer mal passado, nozes oxigenadas e cerveja de ruibarbo. Foi servido e comeu sofregamente. “Que hambúrguer em sangue e pequenos cérebros de noz estejam do seu agrado, respeitável afiador do que abre chagas”, disse Bago. Santoro anuiu. O seu olhar gélido, bochechas encovadas e a acentuada cicatriz que lhe atravessava os lábios e terminava pouco abaixo do olho direito evocavam as sevícias do monstro fabril a que se submetera. Saciado, sem deixar migalha, pagou, agradeceu a refeição com um murcho obrigado, atravessou a chusma de clientes, montou-se na motocicleta e arrancou avenida abaixo. “Malandrim acelerado”, comentou Fuzil, que reconhecia nele um novo Orfeu fugido do submundo. Acabada a beringela, limpei a boca com um guardanapo auto-dissolvente. “Sayonara, Mestre”, disse eu, com várias vénias. “Que o tempo e a saudade o tragam de novo a humilde estabelecimento de carne picada e vegetais grelhados do mundo”, disse o nipónico. Acendi um cigarro e continuei a andar. No viaduto, as luzes cintilavam como focos intervalados de labaredas. À esquerda, uma fileira de barracas encavalitadas albergava os muitos emigrantes que, todos os dias, chegavam em massa a Custódia, à procura de uma vida melhor. Mais adiante, estações de serviço, restaurantes, motéis e casinos fulgiam como sóis decadentes. Em todo o lado havia hologramas e vídeo-anúncios, uma explosão de néones e a cinética ordeira do vai-e-vem da multidão. Por fim, a vista repousava lá em cima, para lá do negrume cúbico dos prédios e da cidade fúlgida, onde o limite perpétuo da noite se estende na vigília de um céu sem estrelas.