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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

São Miguel no século XVIII, de José Damião Rodrigues
SUSANA GOULART COSTA

José Damião Rodrigues
São Miguel no século XVIII.
Casa, Elites e Poder

Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada
2003, 2 volumes


Nos últimos anos, a História do arquipélago dos Açores tem sido objecto de interesse por um crescente número de investigadores, na sua maioria ligados ao Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. No âmbito da história açoriana, os actuais projectos de investigação prolongam as tendências mais remotas da historiografia regional, que se iniciam no século XVI e que foram particularmente vivificadas no decurso do século XIX, de acordo com o ambiente romântico e nacionalista de então. Recentemente, a aposta da Universidade dos Açores tem sido no alargamento temático das questões do passado insular, realçando as vertentes da história política, económica, cultural e social. É neste último registo que devemos incluir a obra de José Damião Rodrigues, investigador e professor auxiliar do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores, que apresenta agora ao público a sua tese de doutoramento.

Dividida em dois volumes, num total de 1047 páginas, o autor apresenta como núcleo central de reflexão as elites da ilha de São Miguel e o seu comportamento político e socioeconómico no século XVIII. A dissertação reflecte, pois, uma continuidade temática em relação à pesquisa que o investigador já tinha encetado nas suas Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, prolongando-lhe o espaço e a cronologia, na medida em que transfere os interesses do século XVII e da cidade de Ponta Delgada para o século XVIII e toda a ilha de São Miguel. Se a escolha do tema e do espaço poderão resultar de uma preferência afectiva do autor, a decisão de trabalhar o século XVIII surge no intuito de colmatar uma época que José Damião Rodrigues considera ainda desconhecida. Na verdade, o investigador, porque realça a Idade Moderna, secundariza outros períodos cronológicos que estão, claramente, mais carenciados de conhecimentos científicos, designadamente, os primórdios do povoamento açoriano, de que pouco se sabe em concreto, e o século XX, sobre o qual se destacam as questões políticas relacionadas com a segunda guerra mundial, mas olvidam-se outras questões, como é o caso da relação de poderes durante o Estado Novo e os respectivos suportes sociais, culturais e económicos.

A metodologia utilizada por José Damião Rodrigues é a da micro-história: as biografias tornam-se os instrumentos nucleares para que o investigador acompanhe os percursos individuais da elite micaelense, inserindo-os no núcleo restrito da aristocracia local. Se este método tem elevados benefícios, permitindo a construção de uma sólida identidade paritária dos grupos mais privilegiados, também tem aspectos negativos, pois é omitida a relação desta oligarquia com as restantes células sociais e as relações miméticas dos corpos sociais, cujos paradigmas podem ser ascendentes e/ou descendentes.

Deve-se realçar a profundidade e a seriedade com que o investigador desmonta e reconstrói as relações oligárquicas. Para tal, serviu-se de um conjunto louvável de fontes manuscritas e impressas que foram contextualizadas através da consulta de trabalhos afins, do que resulta uma bibliografia impressionante e, realce-se, actualizada que, no seu conjunto, ocupam 204 páginas da obra. Neste domínio, a tendência microanalítica do investigador revela-se novamente, com a apresentação bibliográfica tipologicamente diferenciada. Saliente-se ainda o preciosíssimo índice analítico, instrumento imprescindível para um trabalho desta natureza.

A primeira parte do trabalho, que se estende por mais de 300 páginas, é dedicada à contextualização espacial e temporal. Os impérios europeus e o comércio colonial são aqui retratados, embora questionemos o facto do autor apenas salientar as questões económicas, ignorando outras áreas que poderiam ser igualmente úteis para a compreensão do seu trabalho. A caracterização do arquipélago açoriano e da ilha de São Miguel, em particular, preenchem os capítulos 2 e 3 desta primeira parte que, mais uma vez, privilegiam os assuntos de natureza económica em detrimento dos de ordem sócio-política ou cultural.

Na segunda parte, o investigador introduz-nos na problemática que vai analisar, quer na sua dimensão laica, onde as oligarquias concelhias são minuciosamente observadas atendendo-se aos respectivos actores nos seis municípios micaelenses da época (Ponta Delgada, Vila Franca do Campo, Ribeira Grande, Lagoa, Água de Pau e Nordeste), quer as oligarquias eclesiásticas, seculares e regulares. Neste domínio, saliente-se a preocupação do autor em clarificar conceitos e elucidar questões referentes ao comportamento dos pelouros municipais e redes eclesiásticas, partilhando com o leitor as estratégias da oligarquização do poder e alertando-o para a importância que os laços de parentesco assumiam no delinear de uma reprodução social premeditada. Esta questão será desenvolvida no segundo volume da tese, no capítulo 2, no qual se dá particular relevância aos processos de coesão inter pares, designadamente através da consaguinidade matrimonial (onde a família é a célula base) e da vinculação de bens imóveis (com o recurso à constituição de morgadios). A família, aliás, já tinha merecido a atenção do autor no primeiro capítulo desta segunda parte, nas inovadoras páginas dedicadas à casa e à estrutura familiar micaelense. Nesta segunda parte, destacamos o capítulo 3, respeitante à propriedade fundiária. Inovador, este capítulo regista cuidadosamente os percursos da terra, como símbolo primordial do discurso dos possidentes, fundamentalmente na sua versão vinculada que prestigia o círculo das elites.

De todo este conjunto, resulta uma excelente obra, cujo elevado valor científico deve ser valorizado não apenas no meio insular, mas igualmente para lá das fronteiras arquipelágicas. Aliás, a preocupação de José Damião Rodrigues em relacionar e comparar a realidade micaelense com outras deve ser salientada e louvada. São Miguel no século XVIII. Casa, Elites e Poder pelas fontes e bibliografia em que se baseia, pelo rigor e clareza do discurso e pela originalidade de algumas temáticas no seio da historiografia açoriana é um trabalho incontornável para o conhecimento dos meandros sócio-políticos da Europa de Antigo Regime que, em algumas circunstâncias, ainda se perpetuam até aos nossos dias.

 
Susana Goulart Costa – Departamento de História e Filosofia da Universidade dos Açores. Rua da Mãe de Deus. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada Codex.