Para além de um estilo próprio, há em João de Melo a expressão poética de uma linguagem. É com esta convicção que saio da leitura deste seu último livro, que reúne 15 contos (lúcidos e lúdicos) que se lêem com infinito prazer.
Nestes contos são projectados, sobre a tela da escrita, homens e mulheres que nos contam histórias sobre as geografias da infância e o mito do regresso aos lugares primordiais, a crise da identidade pessoal, a inquietação amorosa e os novos modos de amar, a navegação dos corpos, a hipocrisia conjugal, as novas mitologias do quotidiano, o desencanto social, o imaginário profundo da nossa portugalidade...
Para isso, João de Melo serve-se dos (apuradíssimos) dispositivos retóricos da sua prosa, numa narrativa em que a poética e a melodia andam de mãos dadas. Para este autor, literatura é, ainda e sempre, espaço de linguagem, lugar de resistência e afirmação da condição humana. Todos os seus livros dão conta da condição humana. E este não constitui excepção.
A condição humana está nas lágrimas daquela mulher que penhora as jóias da família (no conto «Ouro em Pranto»); está na rotina do viver funcionário dentro das paredes de um escritório («O Vinho»); está na indigência de José António e na lástima da sua vida de tóxico-dependente («O Fogo, a Lenha»); está nas desavenças conjugais entre uma linda mulher e um homem soturno («Olhos Cor de Lima»); está na viúva beata que chora pela salvação do mundo e que reza pela redenção dos pecados («Carpe Diem») [...] E está nas magníficas qualidades e capacidades da esposa do narrador («A Esposa»). E está no amor entre mulheres («Branca e Gabriela»). E está naquela cega que, casada com um açoriano, vem visitar as ilhas e logo ao desembarcar afirma ao marido que «vê» laranjais no mar («Algo Como um Regresso a Casa»)...
Outros contos remetem-nos para memórias do vivido e do sentido. Por exemplo, o mar (símbolo eterno de um regresso ao ventre materno), a infância insular (paraíso irremediavelmente perdido), o Menino Jesus e o sortilégio do Natal... Aqui também se fala da emigração açoriana, das impressões de Paris, até porque este é um livro de partidas e de regressos.
Tocou-me de perto o conto «O Gémeo e a Sombra», por nele saber que há algo de autobiográfico. Aqui o narrador vive a angústia do eu, pois sente que há um outro eu que habita dentro de si – e que não é mais que a sombra, a presença e a realidade do seu irmão gémeo («um duplo em mim») que morreu em tenra idade...
As Coisas da Alma é o quarto livro de contos de João de Melo, género que sempre dominou na perfeição. Basta ler «O Repúdio» (onde Fernando Pessoa desata a falar da sua impossibilidade de amar as mulheres...), ou «O Conto de Mim Mesmo» (em que há uma personagem que apoda o narrador de «lacaio da burguesia», numa narrativa de grande dimensão onírica) para sabermos que estamos na presença de uma escrita de altíssima qualidade.
Em declarações ao Jornal de Letras (12/11/2003), João de Melo (o escritor que em Portugal mais utiliza o adjectivo «diáfano») fala sobre a «carnalidade da escrita». Ora, é precisamente esta «carnalidade da escrita» que, na minha opinião, dá a este autor uma voz própria e é marca de uma diferença literária.
Há três anos desempenhando o cargo de conselheiro cultural da embaixada portuguesa em Madrid, João de Melo, 54 anos de idade, continua a surpreender. Neste momento está a concluir uma novela a que chamará O Mar de Madrid, «uma história de amor e estranheza entre um português e uma espanhola». Por isso mesmo deve continuar a merecer a nossa melhor atenção e consideração.
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