Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 

 

BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Efemeridade, de Bárbara Seguier
ROSA MARIA SEQUEIRA
Bárbara Seguier
Efemeridade

Lisboa, Editorial Minerva, 2003
 

O título deste primeiro livro de ficção de Bárbara Seguier já indicia o respectivo conteúdo: Efemeridade é uma obra breve, com cerca de quarenta páginas, que relata o curto romance de uma pintora, a narradora desta história, e de um escritor, Rodrigo, ambos procurando, através das respectivas actividades, o reconhecimento dos demais. O tema do efémero (e do seu contrário, o eterno, que ambos ambicionam) tem assim a ver com a história das personagens e também com uma questão que se coloca ao artista perante a sua obra: a experiência única, irrepetível, do acto criador num trabalho incessante de auto-metamorfose. O instante lírico é o tema e a medida da mudança que transforma o sujeito e o renova.

Poder-se-ia dizer que o livro gira em torno da crise de identidade causada pela falta de afirmação no plano artístico. É assim que Rodrigo vê na morte a meta possível a atingir para que se cumpra o seu desejo de aceitação que acabará por vir quando os críticos, post mortem, lhe reconhecerem «grandiosidade poética».

Efemeridade possui ainda outros núcleos temáticos como a solidão criativa ou a comunidade fraterna e solidária mas, sobretudo, é uma obra de sobrevivência onde paira o fantasma do conformismo em torno da questão da identidade. Não um conformismo ao lugar aonde se pertence e sim à submissão aos que detêm o monopólio da identidade através da autoridade pública na definição do artista. A metáfora crucial da obra apresenta-a a narradora em forma de soneto intitulado «Sou estrada» e cuja autoria é atribuída a Rodrigo, o amante escritor frustrado. Tal como uma estrada pisada pelos outros – «Grito: Não me pisem! Pisada sou» (p. 14) – e que eles previamente traçaram num percurso que pode não ir dar a nada, a vida de Rodrigo apresenta-se-lhe desconhecida e sem solução: «Acabaste para a vida, como essa estrada para ti – sem solução» (p. 21). Nesse sentido, o suicídio de Rodrigo, sendo um acto de insubmissão, é também o reconhecimento (e o resultado) de que ele não é nada, apenas aquilo que os outros quiserem que ele seja.

O texto é constituído pelas recordações de amar. Não se trata, contudo, de uma história de amor mas sim de uma sábia perspectiva sobre o tempo vivido ao qual pertencem os afectos. A ele também pertencem sensações fugazes, angústias e inquietações – nunca o ressentimento – que vão sendo recordadas e explicadas. Espectadora de si mesma, a narradora vai contando experiências destas duas personagens, procurando encontrar-lhes um sentido que só o tempo proporciona. Ele é um mestre para «aprender, sem desesperar com os “falsos alarmes”» (p. 38) e uma testemunha da nostalgia e do cruzamento de solidões por entre a memória. Por isso, a epígrafe de Vitorino Nemésio, bem escolhida, funciona como chave de leitura: «Assim, o passado vale duas vezes o presente... / Uma – porque vale o que foi, exactamente quando era; / outra – porque torna a valer esse valor quando o puxamos à memória, agora que não é precisamente senão aquilo que foi [...]».

Trata-se de uma obra classificada como romance pela narradora que nos diz na última página: «num dia de cansaço inexplicável, terminei o teu romance, Rodrigo, a nossa última conversa. É este». Esse «”género por excelência” para a realidade do meu presente» (p. 37) é uma antiga causa de Rodrigo. Curiosamente a obra é rotulada como conto pela editora. O conto sempre adoptou muitas formas de concretização e anda cada vez mais comprometido com outras espécies narrativas. No entanto, com os seus dez capítulos bem diferenciados, esta criação representa um notório caso de novela.

Em registo confessional a que falta, por vezes, maturidade literária, Efemeridade possui, contudo, a componente redentora de um empreendimento poético e é esta contaminação de conto-novela-poema com laivos de monólogo teatral que confere peculiaridade ao estilo de Bárbara Seguier. Numa harmonia de recursos e de efeitos, a narradora entra frequentemente em digressões prospectivas e retrospectivas, justifica e contradiz num discurso de solidão, ensaiando a esperança por entre uma voz sem esperança e angustiadas interrogações sucessivas: «o que seria então o sol a levantar-se? Seria esta instabilidade inerente ao resto da minha vida?» (p. 37). O lugar poético é assim a morada do ser que se dirige ao amante morto num monólogo que tem muito de prática do debate entre a poesia e a pintura na tradição horaciana da ut pictura poesis.

Com sabedoria existencial, Bárbara Seguier transforma liricamente, com arte e sensualidade, a rede de acontecimentos, sonhados ou revividos em surdina. A novela consegue ser uma obra moderna e uma voz original no panorama da literatura portuguesa.

Rosa Maria Sequeira – Departamento de Língua e Cultura Portuguesas. Universidade Aberta. Rua da Escola Politécnica, n. o 147. 1269-001 Lisboa