Uma Universidade é, por essência e por definição, um factor de permanente transformação social: o saber é agente do devir, porque a sua fermentação não pára; se parasse, não seria saber, que é perscrutador, insatisfeito, «penúltimo» (como disse Max Planck), sempre à procura de um último.
A sociedade açoriana, com a sua peculiaridade, feita de diversidades da geografia descontínua e das origens populacionais e idiossincrasias, impõe a cada instituição uma marca própria. Estamos, neste caso, a falar da sociedade açoriana do último quartel do século XX, sem lembrar algumas anteriores tentativas de ensino superior nos Açores, que podemos fazer remontar ao ensino dos jesuítas, a uma academia militar no século XIX e, muito mais proximamente, à Escola Normal Superior de Ponta Delgada. Esta foi instituída no Governo de Marcello Caetano, sendo Ministro da Educação o Prof. Veiga Simão, que conhecia bem os Açores e alguns açorianos. Essa Escola, que foi um antepassado próximo imediato da Universidade, acabada de criar, caiu com a revolução do 25 de Abril de 1974.
Só pressupondo, então, o contexto social e principalmente político posterior ao 25 de Abril, se pode falar da criação de uma Universidade nos Açores. Com a atmosfera reivindicativa então gerada, aos açorianos pareceu que já não seria suficiente uma Escola Normal, num contexto de reivindicação forte de autonomia, reforçado pelos agitados rumos ideológicos no Continente, mas sim uma Universidade. Assim se poderia dar corpo institucional a velhas aspirações e estudar cientificamente, ao nível superior, o conjunto das realidades históricas e ambientais do Arquipélago. As exigências locais estavam, pois, uma oitava acima em relação ao passado próximo, e contavam com a força anímica colectiva que se vivia nas ilhas. Foi essa realidade social que se deparou à Junta Regional, presidida pelo General Altino Magalhães.
A Junta Regional integrava várias Vogalias. O vogal para a Educação era o Eng. José António Martins Goulart (que fora bolseiro de Doutoramento nos E.U.A. e viera para os Açores após a Revolução). Foi ele quem, após sugestões para nomes de responsáveis pela Universidade a criar, dirigiu ao Prof. José Enes, então no Instituto Universitário da Covilhã e regressado de Angola, um convite para ser Presidente da Comissão Instaladora do Instituto Universitário dos Açores. Entretanto, o Prof. José Enes havia escrito uma carta ao General Altino Magalhães, a disponibilizar-se para vir para os Açores, oferecendo o seu trabalho em ensino superior e dando conta da sua actual situação em Portugal. Para tal disponibilização contaram decerto as sugestões dos Drs. Cunha de Oliveira e Álvaro Monjardino, junto do Presidente da Junta Regional, o General Altino Magalhães. De resto, tinham um passado comum: as Semanas de Estudo dos anos sessenta, que haviam deixado um fermento intelectual de renovação (mas não propriamente um pensamento estruturante de um Universidade na Região) e haviam enfrentado um contexto político delicado («antigo regime» salazarista, guerra do Ultramar, censura).
As diligências de José Martins Goulart junto de José Enes e as que principalmente o General Altino Magalhães fez junto do seu antigo aluno de Estudos Militares, Major Victor Alves, então Ministro da Educação, culminaram na criação do Instituto Universitário dos Açores pelo Dec.-Lei 5/76, de 9 de Janeiro.
Assim, em Janeiro de 1976, antes de se constituir o Primeiro Governo Autónomo da Região (este só instituído em Setembro desse ano), estava criada a primeira Universidade no Arquipélago dos Açores. Tal precedente histórico não passa sem um certo significado, que é o de ser historicamente anterior ao Governo da Região e ter sido criada pelo Governo da República, embora sob fortes pressões locais e com um planeamento feito por açorianos. Nesse ano de 1976 a Universidade era porém mais uma notícia, uma expectativa, a que foi preciso dar corpo, lançando algumas formas de ensino, que preenchessem o «vazio».
Uma vez conquistadas as instalações (Palácio Berquó, actual reitoria), o que implicou uma verdadeira batalha para «desalojar» a Escola do Magistério, a Comissão Instaladora começou um trabalho de organização de um «semestre introdutório», espécie de «tronco comum» – muito «comum» mesmo – pois servia todos os futuros anos de ensino. Desse tronco deviam fazer parte línguas, História dos Açores, Introdução às Ciências Sociais, etc. Não é nossa intenção historiar essa fase, mas tão só tentar detectar as repercussões do arranque da instituição e alguns aspectos epistemológicos. Não havia, tanto quanto me foi dado ver posteriormente, um plano bem definido para a criação de currículos para a Região: eram precisos professores, economistas, investigadores do ambiente, do mar, da terra, dos solos, etc. Como se pode entender, era necessário ter em conta a realidade circundante, era acima de tudo necessário começar, para justificar política e socialmente a proposta de uma instituição universitária. Pese embora o valor e o empenhamento dos membros da Comissão, havia muitas hesitações, pressões bairristas e alguma desactualização e desinserção em relação ao ensino superior.
Um dos problemas que se punha era o da duplicação de um semestre introdutório ou «tronco comum» em S. Miguel e na Terceira. Numa das reuniões preparatórias na Terceira esteve presente o Prof. Manuel Laranjeira (Universidade Nova de Lisboa), que sentiu alguma dificuldade em verificar a necessidade da duplicação, pois, na hipótese de apoio da sua Universidade, os docentes não poderiam vir a dois sítios e dar dois cursos... Então, em S. Miguel haveria mais alunos e estava a sede da Universidade... A mesma opinião teve o Prof. Vitorino Magalhães Godinho, que chegou mesmo a negar ao Prof. José Enes um apoio nesses termos de sobrecarga para docentes. Magalhães Godinho ia mais longe: era contra uma tripolaridade docente, pois achava um augúrio de futura «ingovernabilidade» e exequibilidade séria de uma Universidade numa Região pequena. Afinal, não houve apoio docente da Universidade Nova como tinha sido prometido ou falado publicamente, pelas divergências e dificuldades atrás mencionadas. Mas esse facto criou mais algumas «dúvidas» na opinião pública em termos do que se poderá chamar uma primeira fase da «recepção» da Universidade dos Açores. De resto, a receptividade a uma ideia nova e a uma instituição a que o meio não estava habituado teria sempre, por motivos sociológicos, de ser problemática. A ideia estava a ser desenvolvida por pessoas que tinham tido cargos e «visibilidade» social e institucional e, por vezes... santos de casa não fazem milagres! Ainda por outro lado, a abertura de ensino superior universitário punha em confronto as instituições mais «adiantadas» até aí existentes, que eram os liceus. Alguns professores interrogavam-se sobre as futuras «diferenças» de formação, tendo em vista um confronto de estudos só «dentro» ou «fora» da Região, em grandes Universidades.
Tendo sido o Instituto Universitário dos Açores criado pelo Governo da República e antes de existir o Governo Regional (a Universidade é de Janeiro, o Governo é de Setembro de 1976), a Universidade «escapava» ao controlo e regulamentação regionais, o que criava também uma susceptibilidade institucional e política. Porém, o Ministério da Educação não sentiria existirem ainda na Região quadros com experiência de governo e administração de universidades (não se via como abrir qualquer coisa como uma Direcção Regional do Ensino Superior), pretendendo preservar a Universidade para um tratamento nacional. O então Reitor, Prof. Doutor José Enes, na sua função de Presidente da Comissão Instaladora, compreendeu e avaliou os riscos, e desenvolveu os apoios que pôde junto do Ministério e junto de algumas Universidades (ou melhor: junto de alguns universitários, na sua maioria açorianos ou conhecedores da realidade açoriana). Este tal ou qual alheamento em relação ao Governo da Região valeu-lhe alguns desagrados locais. Ainda durante o reitorado de José Enes, ouvi lamentos no sentido de que a Universidade «escapara» à alçada do Governo Regional. Mas, aquando da preparação das bases do Estatuto Provisório da Universidade, José Enes visitou formalmente o Secretário Regional da Educação, Dr. José Guilherme Reis Leite (que aliás mais tarde, já não como Secretário, se viria a doutorar na Universidade dos Açores). Foi, por enquanto, apenas mais um papel, de entre os muitos que se produziram na longa gestação da Universidade...
Estando a leccionar, como assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, recebi um telefonema da Universidade Nova, que me levou a entrar em contacto com o Prof. Manuel Laranjeira. Nessa altura ainda não ficara muito claro o que resultaria das diligências nos Açores, pois o citado Professor ainda não tinha também uma ideia precisa do que queriam dele. De resto, vivia-se um clima de agitação social, uma insegurança que abrangia as Universidades no que respeitava a renovação de contratos, embora a onda dos «saneamentos» já tivesse passado, pois ocorrera quase logo a seguir ao 25 de Abril. Em todo o caso, as pressões ideológicas eram grandes. Na Faculdade de Letras de Lisboa, depois de muitas reuniões quase ou mesmo tumultuárias, só se podia dar a nota final de «apto» ou «não apto» [...]
O ambiente pós-revolucionário que se vivia, nomeadamente quanto às expectativas de funcionamento regular e calmo das Universidades, reflectia-se no projecto universitário açoriano. Pensava-se (com exagero!) que tudo o que viesse por mão das Universidades continentais, sobretudo das grandes escolas, viria contaminado de forçoso marxismo e de caos...
Quando, em 1977/78 vim leccionar para o então ainda Instituto Universitário dos Açores, a convite do Reitor José Enes, formalizado por uma amável carta do Prof. Gustavo de Fraga (Director do então Departamento de Formação de Professores), trazia na bagagem a tese de doutoramento quase acabada. Mas o «quase» por vezes pode demorar um pouco – quando nos pedem para dar aulas numa instituição em formação e nela participar efectivamente, em reuniões frequentes e dando sugestões e fazendo contactos com professores que conhecemos. Não era tarefa fácil, porque se viviam sequelas revolucionárias e desconfianças em relação às Universidades continentais, onde, no entanto, residia a «mão-de-obra» mais adequada ao apoio e orientação de cursos e carreiras no âmbito nacional e para quadros profissionais também nacionais. Houve a precaução de não estabelecer acordos com escolas ou com conselhos científicos de escolas, para se não ser «colonizado» ou se ser obrigado a receber quem nos quisessem mandar – por oportunismo, curiosidade ou outro motivo não desejável. Assim, os «acordos» eram feito pontualmente com professores idóneos, que nunca deixaram de apoiar a instituição nascente, quer com cursos intensivos em cadeiras deles carecidas, quer tomando depois a seu cargo a orientação dos respectivos assistentes ou assistentes estagiários. Este era um trabalho socialmente menos perceptível ou até quase incompreensível para uma sociedade distanciada dos problemas da carreira universitária, mas que foi fundamental para a credibilidade da Universidade dos Açores – que dependeria muito mais de opiniões acumuladas do que de decretos, disposições legais pontuais ou de notícias de jornal. De resto, a comunicação social de então não sabia, na maior parte dos casos, fazer as perguntas adequadas a uma fase de construção de uma Universidade – pois não lhe era familiar o assunto. Tal facto obrigava a contornar as perguntas das entrevistas, procurando-se fazer uma pedagogia social adequada. Não era fácil, resultava pouco. Parecia que a opinião pública o que queria era ouvir que Universidade iria resolver de uma vez e logo e já todos os problemas da Região, como uma «galinha de ovos de oiro», que, sendo um investimento caro, tinha de mostrar serviço de forma muito imediata: fazer rapidamente professores (muitos e com boas notas), apurar os vinhos, resolver os problemas da pecuária, desenvolver a pesca, fazer gestores e encher os Bancos com diplomados pela Universidade, escrever logo e já uma História (global...) dos Açores, como se tudo isso não tivesse de ser o resultado lento do crescimento da Universidade e da investigação – e principalmente da formação de personalidades. A Universidade ao serviço da Região era um lugar comum que punha em risco a compreensão mais universalista do que devia ser uma Universidade independentemente do lugar em que se situe. Só a partir desse denominador comum de interesses universalistas, exigências críticas e de rigor de carreira é que se pode então construir todo um conjunto de aplicações e aprofundamentos da realidade local, que se oferecia magnificamente à Universidade: o ambiente, a agricultura, a riqueza dos mares dos Açores, os problemas da Geomorfologia e a especificidade da Vulcanologia (preocupação muito a ter em conta), a História do Atlântico e, em geral, a historiografia ligada ao arquipélago, as Relações Internacionais, autores literários de significação açoriana, como o caso muito especial de Vitorino Nemésio, uma atenção particular dada a Antero de Quental (infelizmente perdeu-se por causa do incêndio em l989 a biblioteca oferecida à Universidade por Ruy Galvão de Carvalho).
Durante algum tempo se hesitou no modelo institucional, que depois se fixou no de estrutura departamental, a mais adequada à dimensão do meio, ao número de docentes previstos e ao carácter mais «moderno» daquele tipo de estrutura (usado nas Universidades novas mais pequenas). Também se hesitou nos planos curriculares (cadeiras, regime anual/semestral etc.), mas, no que tocou às Letras, por exemplo, apercebi-me de que era importante ter, além dos novos cursos bilingues de modelo integrado (isto é, de formação de professores e com o estágio incluído), também os cursos «clássicos» das Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto, para delas receber apoio e criar para os Açores, através desta «aliança», uma imagem de prestígio por proximidade com as «velhas» Faculdades. Por isso, a par com o cursos de formação de professores, a Universidade dos Açores adoptou também as licenciaturas do Dec. 53/78, pensado para as Faculdades de Letras. Foi a única Universidade nova e pequena a fazê-lo. O Ministério da Educação autorizou, desde que não obrigasse a contratar mais docentes e não sobrecarregasse a docência. Para facilitar as coisas e aproveitar a docência disponível, «colámos» as cadeiras dos novos cursos de formação de professores (cujo currículo podíamos moldar) aos currículos dos cursos idênticos à Faculdades de Letras. De modo que ficaram quase iguais. Em alguns casos a cadeira era anual (Faculdade de Letras), nos outros semestral: havia apenas que dividi-la em I e II. Assim, a formação de professores, nas Letras, era muito parecida com a formação haurida nas grandes Faculdades de Letras em cursos muito frequentados, o que era uma imagem muito positiva para a Universidade dos Açores. Os professores das Faculdades de Letras ( em especial Lisboa e Coimbra, mas também Porto) vinham dar aulas aos Açores e em muitos casos tomaram à sua conta a orientação de assistentes. Este facto teve mais importância do que hoje possa parecer, pois contribuiu para uma imagem de credibilidade, de não «facilitismo» e «fuga» a exigências de qualidade com pretexto na distância e no isolamento. Muito se ficou devendo às «velhas» Faculdades. É justo lembrar que, além dos contactos que eu próprio fiz com os professores e colegas da Faculdade de Letras de Lisboa de onde provinha, também muito se ficou devendo aos contactos desenvolvidos pelo Prof. Doutor Gustavo de Fraga (com a Universidade de Coimbra), pelo Prof. Doutor Ávila Martins (com as Universidades do Porto, Lisboa e Coimbra), pelo Prof. Doutor Teodoro de Matos, então em vésperas de se doutorar, e que mobilizou o interesse de muitos professores e investigadores da área de História. Entretanto, o Prof. Doutor Vasco Garcia, regressado de França e recém doutorado, ia transformando o então Laboratório de Ecologia no que seria uma importante unidade orgânica da Universidade, o Departamento de Biologia. Neste Departamento, o citado professor (e futuro Reitor entre 1995 e 2004), desenvolveria a tónica da Luta Biológica e formaria Doutores para o Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa).
Também é justo salientar que, no período crítico da determinação e aprovação dos planos curriculares, a Universidade dos Açores encontrou sempre no Ministério da Educação, nomeadamente na Direcção Geral do Ensino Superior, todo esclarecimento e apoio, sendo de citar os nomes do Dr. Afonso Costa, da Dr.ª Maria da Luz Alexandrino e do senhor Duarte Silva. Lisboa, ao contrário do que muitos supunham, não foi madrasta nem centralista no apoio oficial que deu à implantação da Universidade dos Açores. Durante o tempo em que fui Reitor (1983-1995), recebi sempre provas de solidariedade do Conselho de Reitores (C.R.U.P.) para com os problemas da Universidade dos Açores; o C.R.U.P. reuniu, aliás, várias vezes nos Açores, nos três pólos universitários.
Também no trabalho «interno», em que cada dia surgia um obstáculo ou uma dificuldade (organização de serviços académicos, questões legais de contratação de docentes, aquisição de bens para os três pólos universitários), nesta fase de lançamento muito se deve ao esforço do Drs. Ricardo Ferreira, Frederico Oliveira e João Pimentel da Costa. Instalar uma Universidade não é só adquirir bens imobiliários, construir edifícios e comprar equipamento; é todo um trabalho de induzir certas práticas, atitudes e hábitos de rigor que se não conquistam de um dia para outro. Quer na sociedade, quer na própria vida quotidiana da instituição.
A Universidade dos Açores (Instituto Universitário entre 1976 e 1980) foi instalada, isto é, passou da fase de instalação à sua instituição definitiva, no ano lectivo 1990/91, depois da aprovação dos respectivos Estatutos. A Lei da Autonomia Universitária (L.A.U., Setembro de 1988) obrigava a que cada Universidade aprovasse os seus Estatutos, que teriam de se enquadrar na lei geral, isto é não podiam contradizer, nas suas disposições específicas, os princípios e disposições da L.A.U. Tomemos como exemplo o facto de o Reitor ter de ser eleito, ou o facto de ter de se verificar a presença de alunos em certos órgãos da instituição. Houve, em certos meios, algum constrangimento perante o facto de se eleger um Reitor, com receio de que o poder universitário estivesse sujeito a sufrágio... Independentemente do facto de fenómenos eleitorais poderem estar sujeitos a demagogias, mais nocivas ainda no ambiente universitário e em universidades pequenas e nascentes, a verdade é que era impensável que a Universidade dos Açores não seguisse a regra geral imposta pela L.A.U. De resto, qual seria a credibilidade da Universidade dos Açores, se invocasse razões para não ter um Reitor eleito? Qual seria a «força» de um Reitor não eleito junto dos seus pares no Conselho de Reitores? Esta e outras reacções faziam-nos temer que a ideia do «universalismo» ou da paridade institucional continuava a demorar na sociedade (ou em parte da sociedade) açoriana, e especificamente em S. Miguel, onde se situa a Reitoria. Mas a batalha pela paridade nacional como factor de afirmação e prestígio tinha de prosseguir. A invocação de uma Universidade especificamente «ao serviço da Região» revelava não só uma incompreensão do fenómeno universitário como ciência e como promoção intelectual, mas também uma exagerada interpretação do sentimento da Regionalização. A batalha de credibilidade dependia não só de critérios de exigência científica e pedagógica, como também de uma paridade institucional no sistema nacional de Ensino Superior. Aliás, a presença por direito próprio do Reitor da Universidade dos Açores no Conselho de Reitores era não só favorável à imagem dos Açores, como permitia observar «por dentro» os problemas das outras Universidades e aprender com eles.
Por outro lado ainda, a falta de experiência de gestão universitária na Região (como já se disse) desaconselhava uma Universidade sob a tutela exclusiva da própria Região. A iniciativa da Universidade dos Açores de convidar professores e orientadores e aproveitar a sua presença para conferências ou breves cursos abertos ao público e/ou aos professores dos ensino secundário ou básico, com informação na comunicação social e circular para as escolas, motivou um reparo oficial escrito por uma dependência da Secretaria Regional da Educação e Cultura, chamando a atenção para o facto de que deveria ser aquele departamento a tratar da organização dos cursos e a respectiva informação e autorização dadas aos docentes do ensino básico e secundário! Também era frequente ouvirem-se reparos sobre a carga horária dos docentes universitários, ainda na sua maioria assistentes a preparar doutoramento; achava-se mesmo que eram uns privilegiados, quando comparados com docentes de outros graus de ensino... Ou estranhava-se que os docentes da Universidade (incluindo o Reitor....) tivessem de viajar com tanta frequência. De resto, aos assistentes era apenas concedida a possibilidade de efectuarem duas viagens pagas, para fazer investigação e contactar o orientador, sediado noutras Universidades.
O imperativo da tripolaridade levou a criar factores diferenciados para estímulo científico-cultural. Cada cidade recebia a sua «face» da Universidade… Bom ou mau, era assim que se sentia a vinda messiânica da Universidade! A Horta encontrou a sua «vocação» de Ciências do Mar, como pólo de investigação, com o qual se tem realizado com altos níveis de excelência a nível internacional. De resto, a Horta é tradicionalmente uma cidade voltada para o mar, é a cidade da Semana do Mar, é a cidade de Mau Tempono Canal.
Será, porém, necessário lembrar que uma Universidade ou parte dela pressupõem ligações convenientes ao exterior, nomeadamente e principalmente as aéreas. Tal pressuposto tem de ser tido em conta para o continuado crescimento da investigação universitária no Faial.
Difícil se tornou, no entanto, arbitrar que cursos e que divisão fazer entre a Terceira e S. Miguel. Onde cabe melhor uma «vocação» humanista e de ensino das Letras? Como repartir investigação nas Ciências? Este foi – e de certo modo ainda é!— um problema da Universidade dos Açores. O destino ou as vicissitudes e peripécias de quem fica aqui ou de quem quer ficar acolá, as oportunidades a não perder fizeram com que a Universidade dos Açores tomasse basicamente a configuração que agora tem. A Terceira, embora com tradições humanistas, ficou «voltada» para as Ciências Agrárias; Ponta Delgada, com Geociências, Biologia, Economia, Matemática, Ciências da Educação, beneficiou do «sal» das Letras, com os Departamentos de Línguas e Literaturas Modernas e História, Filosofia e Ciências Sociais. Por muito que, para alguns, as Humanidades pareçam menos «úteis», elas estimulam um nível de sensibilidade intelectual e artística que mostra efeitos a médio prazo.
A necessidade de contemplar a Tecnologia, isto é, um saber aplicado que reflectisse investigação universitária e que envolvesse o mundo da tão apregoada Tecnologia, levou a que, com o apoio do Instituto Superior Técnico, se criasse mais um Departamento: O Departamento de Ciências Tecnológicas e Desenvolvimento, cujo nome, quase inteiramente arbitrário, procura ligar as ideias de desenvolvimento e de tecnologia na Região. A credibilidade de que então a Universidade dos Açores desfrutava junto do Instituto Superior Técnico levou à assinatura de um protocolo que permitia que os estudantes, após concluídos os preparatórios (2 anos) de Engenharia Civil e de Engenharia Mecânica, continuassem estudos naquela prestigiada Escola da Universidade Técnica de Lisboa.
Por sua vez, as Ciências da Educação estavam duplicadas em S. Miguel e na Terceira, assegurando o objectivo de formação de professores. Foi assim que também se criou na Terceira o Curso de Educadores de Infância, com muita procura. Não se deixará de assinalar que a manutenção de um pólo de Ciências da Educação na Terceira tem constituído uma grande dificuldade, quer no apoio para funcionamento, quer na obtenção de docentes. Neste caso, como em alguns outros, a saída de docentes para sua formação de carreira levou a recorrer a «mão-de-obra» ocasional e por vezes discutível.
Hoje e amanhã, as dificuldades continuarão: certos cursos parecem «passar de moda» por não apontarem por agora para colocações (nomeadamente as Letras e a formação de professores, alguns cursos no âmbito das Ciências Agrárias, etc.). É preciso saber esperar e sobretudo não tomar decisões precipitadas. Há núcleos de formação universitária «básica» nas Ciências Humanas que nunca perdem o interesse: estamos a pensar na História, na Filosofia, na Literatura, que são simultaneamente áreas e atitudes do intelecto com muitas centenas de anos de experiência. O seu aparente «esvaziamento» é apenas o emigrar de interesses para «zonas» mais operacionais na sociedade contemporânea, que tanto depende da informação e da comunicação e confunde informação, conhecimento e sabedoria, sem se lembrar que esta última é que é um saber personalizado. A Literatura também já não canta heróis, apenas vende ou provoca a «produção de conteúdos»... Já não reflecte valores ou anti-valores, já não é vista como «documento de vida», mas como mais uma indústria na vida do homo technologicus...
Tem sido possível, com base nos Departamentos como unidades orgânicas, cimentadas por determinadas preocupações científicas e metodológicas estruturantes, organizar Colóquios especializados, ou mesmo grande Congressos, para os quais as belezas da paisagem e a curiosidade de conhecer os Açores não são também factores despiciendos. Ainda bem. A falta de dimensão do Arquipélago, que sustenta a custo uma Universidade tripolar e bem diversificada nas matérias de que se ocupa, aconselha a que se preste atenção ao potencial intelectual e científico da realização de Congressos e também ao intercâmbio de alunos, aos cursos intensivos, aos cursos de férias e similares. Enquanto o financiamento da Universidade dos Açores se fizer só com base no número de estudantes de Licenciatura ou de cursos «básicos», sem atender a especificidades benéficas para a Região e para o País, esta Universidade insular terá sempre enormes dificuldades e poderá mesmo reduzir-se a uma vida letárgica de escola timidamente profissionalizante e pouco convivente – quando já dinamizou uma considerável convivência universitária mais de duas décadas. Uma política de financiamento baseada principalmente no número de estudantes será sempre «fatal» para os Açores. Vivemos uma época de circulação, mobilidade, internacionalidade do conhecimento; os desideratos e a ambiência das Universidades não são os mesmo que inspiravam o «modelo» da sua criação um quarto de século atrás. É preciso estimular o intercâmbio, os cursos de tipo «formação permanente» ou actualização ou outros, quaisquer que sejam os nomes que venham a ter. O que se não pode é destruir o espírito verdadeiramente universitário em nome de um utilitarismo e de um economicismo que, nos Açores, ainda podem provocar maiores distorções, por causa da dispersão geográfica.
Há um quarto de século (cerca de uma geração...), a Universidade era uma novidade ... e uma dúvida. Dúvida, para uns, pelas boas razões de preocupação construtiva; dúvida para outros, por má fé ou desconfiança. O pensamento «activo» incomoda sempre: incomoda letargias sociais, marasmo, conservadorismos hipócritas. Universidades em pequenas sociedades provocam desconfianças, assopram vaidades, exigem constantes petições de princípios ou fundamentações, interpelações, doutrinação, geram ataques e gulosas entrevistas com perguntas néscias... Quando se propôs o primeiro doutoramento honoris causa a atribuir ao geólogo francês Haroun Tazieff (que tanto fez pelo conhecimento dos vulcões dos Açores), foi perguntado num jornal micaelense qualquer coisa como «se o Reitor não tinha sangue açoriano nas veias», pois não dera o primeiro doutoramento a um açoriano... A história em pormenor merecerá ser contada em outro contexto.
A história do crescimento da Universidade dos Açores, que não é o objectivo deste artigo, mostrará que, quer as instalações, quer a qualidade da docência e investigação, foram sendo objecto de melhorias, afinamentos e exigências de qualidade. Interessa salientar que houve desde o princípio, a preocupação de não invocar a insularidade e o isolamento como desculpas para justificar facilidades desprestigiantes no que dizia respeito a currículos e a carreiras. Isto é: a vontade deliberada de pertencer ao sistema nacional de ensino superior (para o bem ou para as dificuldades!), a determinação de querer ser uma Universidade par das ouras nacionais.
A criação de Ensino Superior Universitário nos Açores deverá sempre passar por uma pedagogia social, tácita ou explícita, que tenha em conta:
- A compreensão de que o simples facto de existir (isto é conseguir-se que exista) Ensino Superior Universitário na Região já é em si mesmo um facto positivo e um benefício inquestionável (ensino, nível cultural, investigação pura e aplicada, vinda de gente qualificada para os Açores, maior procura de livros e bens de cultura);
- O apoio da sociedade à Universidade estimula a promoção do nível cultural, pelo envolvimento que proporciona com os problemas universitários. Uma Universidade não deve viver alheada (socialmente) do meio em que se insere. A interacção é recíproca.
- Nem tudo se deve pedir ou esperar da Universidade, cujo crescimento é lento, dependente de instalações, equipamento, mas principalmente dependente da formação de quadros docentes e de investigação, que são pessoas, isto é personalidades. O valor da personalidade é um dado qualitativo institucional: interessa aquele pessoa porque é aquela pessoa e não outra que pode dar a mesma disciplina ou ocupar-se da mesma investigação... Na fase de lançamento de Cursos com apoio de Professores de outra Universidades, perguntavam-me com frequência não que matérias tem o curso, mas quem é que você lá tem? Esta preocupação «personalística» não se confunde com feudos científicos ou académicos, mas é a consciência que se tem da importância da personalidade de cada um ao inserir-se na carreira universitária, pois a sua «personalidade científica» depende muito da sua personalidade... A singularidade de perfis deve sempre ser tida em conta, sem prejuízo de critérios estatutários de carreira.
- À Universidade não devem ser pedidas em excesso tarefas de divulgação de conhecimentos, pois a divulgação (mesmo a boa, porque a há de má qualidade) pode «desviar» a Universidade e os docentes universitários de uma constante necessidade de rigor e aprofundamento, tirando o tempo necessário para isso. Os docentes universitários não deveriam estar sobrecarregados (como têm estado sempre!) para terem tempo de reflectir e produzir boas aulas ou boa investigação. Um bom professor universitário, para dar boas aulas, não as deve dar muitas – para serem boas. O que acontece é que, infelizmente, se fazem as coisas, e às vezes boas, à custa de não fazer as outras que são «obrigação». Uma Universidade, como tive ocasião de afirmar publicamente num Discurso de Abertura de Ano Lectivo, não é nem uma torre de marfim, nem um supermercado de conhecimentos.
- O desenvolvimento de uma Universidade estimula actividades sociais e culturais (Congressos, espectáculos, etc.), contribuindo também para o crescimento económico. Os estudantes e os professores ou os investigadores alugam ou compram casa, fazem compras, gastam passagens. É indiscutível que as cidades açorianas com pólos universitários, principalmente Ponta Delgada, devido ao maior número de Departamentos, beneficiaram muito com a criação de uma Universidade. Ponta Delgada não é a mesma cidade de há um quarto de século também por causa da Universidade!
- Entendida na sua essência de conhecimento como alavanca de progresso e estímulo de criatividade, a Universidade dos Açores é um factor muito importante de internacionalização dos Açores e de consequente universalidade. É um cartão de visita, uma garantia de diálogo. Permite concluir que é uma Região que tem uma Universidade. E, na batalha da sobrevivência de identidades nacionais e regionais, a Universidade é como um factor «ontológico» – tal Região existe porque pensa, porque faz ciência, porque se preocupa com ela, não só nas suas aplicações para conforto imediato dos Povos, mas na essência do próprio pensar a ciência – que é o que a faz avançar... A Universidade não pode ser vista só com mentalidade utilitária, que é a visão pragmática de progresso e desenvolvimento, mas com uma visão de qualidade, que é uma garantia de aperfeiçoamento de vida.
- As exigências tecnológicas e económicas do nosso tempo recomendam que se tenha em conta a necessidade de prestar serviços encomendados por entidades (governamentais ou outras). Caberá, porém, sempre à Universidade descobrir e indicar quem é mais apto para fazer o quê, perante quem ou a quem, sem ingerências ou pressões exteriores.
Também convirá lembrar que o que se ensina dentro da Universidade, a certo tipo de alunos, não é facilmente convertível em cursos de divulgação sem convenientes adaptações, que não dispensam ainda um tipo de comunicação diferente. Cada público requer o seu discurso próprio.
Hoje, a compreensão destes fenómenos é muito maior. Andar faz caminho. Uma Universidade é um acto permanente da inteligência e um esforço constante por conseguir mais e melhor. A sua pedagogia social resulta dialecticamente da relação dos seus docente e investigadores com o meio. O conhecimento personalizado conduz ao saber, e este é como luz e calor: a luz que ilumina a mente e o calor que penetra sem se ver, produzindo efeitos em profundidade e em tempo.
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