«Natália Correia acharia graça a que a celebração apesar de tudo precoce da sua obra […] matricialmente antifrancesa, fosse iniciativa de uma Secção de Estudos Franceses, capela desses voos rasteiros que foram contaminando o excessivo, nocturno, magnífico Século XVIII português […] Mais inclinada à Itália, londrina de electiva afinidade […] a desconcertada poeta dos raros versos em Francês da sua Poesia Completa viria a reconhecer neles a emergência de uma línguamaterna universal, ponto ou a tal ilha encantada onde Natália diz que nos esquecemos das palavras e onde nunca algum dia teremos repouso, apagamento que reúne começo e fim, o espírito.
Feiticeira e Cotovia da abolição dos contrários, casando astros na inversão das roseiras, insinuando a monja na fêmea e o iberismo num Dom Juan que se encontra na Única, persiste, a um tempo por coerência e paradoxo, numa assim inesperada irresolução do seu pensamento que reside no sacrifício histórico da vocação romântica nacional ao racionalismo postiço de além-Pirenéus».
Assim inicia Cristina Marinho, a introdução à obra que, «Dez Anos Depois», nos traz de volta Natália Correia.
Envolvendo-a numa teia tecida de linhas em contraponto onde se cruzam «uma língua materna universal», a «ilha encantada», «as palavras» e a obsessiva recusa do repouso, anuncia-nos Natália como protagonista da «abolição dos contrários». Abolição que, todavia, não se traduz numa qualquer síntese entre opostos, mas antes na valorização, sem limites ou refúgios, de uma complexidade entendida enquanto ausência de padrão redutor. Por aí se faz emergir a importância da verdade em Natália Correia, mas também, de novo, não de uma verdade como ponto de chegada mas enquanto desafio para uma permanente procura. Isso mesmo testemunham tanto Urbano Tavares Rodrigues, no Breve perfil de Natália em sua obra – sentindo-a «propensa simultaneamente à espiritualidade e à magia, à cabala, ao culto do Espírito Santo», […] capaz de elevar «o tema do incesto, grato à mitologia clássica, a uma rara completude de desarmonia/harmonia» – como Maria do Carmo de Sequeira, em Lugares de Poesia em Natália Correia – encontrando «o elemento estruturante da sua poesia […] nesse espaço instável e dual, nessa contínua subversão epidérmica, na constante provocação que […] foge, pouco dócil, a uma ordem homogeneizante […]» –.
É esta verdade, aliás, que Natália coloca como luz que ilumina o verdadeiro sentido da «diferenciação cultural da nossa sociedade», pela qual, tal como François Jacob, se bate «incansavelmente», nas palavras de Fernando Rebelo a propósito de «A Discussão do Aborto na Voz de Natália Correia».
A um tempo paradoxo e coerência, a poeta tece, à maneira de Torga – aqui sob o apelo da memória trazido por Isabel Ponce de Leão projectando-nos para um mundo Nataliano erguido «Entre Eros e Thanatos» – um espaço de essencialidade de vida onde se cruzam o amor e a morte. «Entre o amor e a morte, ou entre a morte e o amor, se desenvolve um itinerário interior balizador de itinerário humano em que os dois agentes interagem e se completam – assim o ordenam os anjos que andam pelo mundo».
Dez anos depois, também aqui é oportuno divagar sobre o paradoxo em Natália Correia. Desde o paradoxo de tempo, entre «a mulher do seu tempo», que Natália seguramente foi, e «uma mulher para lá do tempo», que o próprio tempo não deixará de reconhecer, até ao paradoxo de modo: «Era esplendoroso vê-la a entrar nos templos de chicote em punho, isto é, de palavra viva, zurzindo os vendilhões, os traficantes, os hipócritas, os videirinhos. Era magnífico acompanhá-la nas suas estradas de Damasco em direcção à utopia, ao amor, à justiça à criatividade, à elegância, levando pelo braço poetas e amantes, perseguidos e ostracizados, loucos e solitários». Assim diz dela Fernando Dacosta em «A Natalidade de Natália». Para logo Maria Teresa Horta nos dar outra/mesma «Natália Correia», relatando o seu primeiro encontro pela mão de David-Mourão Ferreira e de José Cardoso Pires, e trazendo-nos, de novo, à lembrança, esse lugar de afectos que foi o Botequim. O que nos remete enfim para outro paradoxo, o de lugar. Definida ainda por Dacosta como «um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado […] as recordações dos Açores eram-lhe, amiúde, pontes para um tempo, o da infância, um espaço, o das ilhas, mágicos», por aqui se resgatando o amor de Natália pelas origens que, tantas vezes de longe, nunca deixaram de a empolgar nesse desígnio que na leitura de Isabel Ponce Leão desaguou na «Ilha convertida em Mãe, ilha Mátria, princípio e fim, fecho do círculo em toada melancólica mas não desesperada».
E, todavia, numa aparência de contrários, «coerente, nunca se calou» pelo que, «também, respeitando a sua linha de coerência, hoje devemos falar dela naturalmente». É nessa coerência, aliás, que encontraremos, em Natália, o sentido profundo da «MÃE». Não apenas, como resulta evidente, na ligação biológica, ou na vinculação afectiva – «profundamente materna, Natália Correia aprendeu com a sua mãe a liberdade de pensar, a dignidade do amor e o sentido da responsabilidade cívica […] O universo da maternidade configurado na pessoa da mãe, foi a matriz primordial» na sua personalidade, diz Fernando Rebelo –, mas sobretudo no seu trajecto em demanda da ideia de Mátria, para cujas profunduras Luís Adriano Carlos nos convida, sob a legenda da «A Mátria e o Mal» e onde nos propõe a Mátria como a «língua Natália» de O Vinho e a Lira, «a voz da origem na sua diferença radical e irredutível, Uma língua materna universal de que todos irradiam ».
Coerência também, por outro lado, presente, sempre, na sua caminhada, dorida mas tenaz, para a solidão. «Eu não sou deste mundo», lembra-nos, dela, Isabel P. Leão, enquanto, mais realista, Maria Teresa Horta, assegura que «os últimos tempos da sua vida foram de um cruel isolamento. Escutei-a revoltar-se contra isso, com mágoa no acento rebelde da voz. Mas sem se arrepender de nada».
Talvez também por isso, a sua ligação ao Teatro e à «teatralidade», na dimensão helénica do termo, que procurava para se encenar, compondo a figura em obediência a um modelo estético jamais despido de substância, ainda que marcada esta por desígnios de dimensão transcendental.
Aí, como se de um palco se tratasse, se retoma a importância do Botequim. Aí se encontra uma das componentes mais esclarecedoras da complexa personalidade de Natália. Por isso que valha bem a pena aceitar o convite de Maria de Fátima Marinho para, «a propósito de O Encoberto», olharmos «D. Sebastião entre o Ser e o Parecer » e visitarmos o Surrealismo em Natália, de mistura com Brecht, com o teatro do absurdo ou com ténues sugestões de recorte Vicentino. Por isso também que, dez anos depois, nos sintamos bem, conduzidos pela pena de Cristina Marinho ao encontro de um «Jean-Paul Sartre à porta fechada », a propósito da tradução e representação de Huis-Clos, em Portugal, na própria casa de Natália Correia, «em provocação reiterada da Censura, uma das suas maluqueiras de juventude, como veio muito mais tarde a considerar».
«Natália Correia, Dez Anos Depois», chama-nos à homenagem devida à figura imponente e solitária da Poeta das «Sacerdotisas do Amor» e traça-nos uma silhueta multifacetada desta Mulher, peregrina da utopia, como dela diz, aliás, Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira, ao tratar os «Lugares da Poesia em Natália Correia»: – «Poesia com sujeito é sempre […] a de Natália Correia, mesmo quando dissolvida noutra. Entre a rebeldia que lhe é congénita, e a pacificação, estes cantares, para além do encontro com essa nascente pura do nosso lirismo, estabelecem, igualmente, o reencontro com a História, com o seu movimento aparentemente cíclico, quedando-se um momento no limiar ainda feliz de uma ruptura sociocultural e política. É o desenhar de um círculo à volta da recusa mas também da transformação dos tempos – tudo isto encenado numa dança ritual (uma bailia) de apaziguamento e de concerto: paz em vez de guerra, amor em lugar de violência, terra em vez de mar […] liberdade substituindo a opressão».
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