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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

VICTOR RUI DORES
Fátima Toste e as memórias do vivido e do sentido

Fátima Toste
Porto Pim do Meu Encanto

Toronto , Venus Creations, 2002

Acabo de ler um livro de memórias soltas, de olhares, de vibrações e de fragmentos de vida vivida e de vida sonhada. Trata-se de Porto Pim do Meu Encanto, da autoria de Fátima Toste, uma faialense de há muito radicada em terras do Canadá.

Este livro, assumidamente autobiográfico, reúne uma série de pequenas narrativas que vão do conto à crónica, passando pelo verso em redondilha maior. A autora (que é simultaneamente narradora e narradora-protagonista) navega sonhos e memórias em viagens reais e verdadeiras.

E a viagem deste livro começa com uma revisitação à infância insular enquanto passado irrecuperável e paraíso irremediavelmente perdido. Isto é, são-nos descritas vivências iniciáticas da autora em pleno despertar para a vida, para o conhecimento das coisas e do mundo.

Numa escrita tricotada pelas marcas de uma inocência assumida, Fátima Toste capta (e bem) o «espírito de lugar» de Porto Pim (lugar mítico) e lembra vivências e acontecimentos que nos remetem para o microcosmo da ilha do Faial. Isto é, a autora lança olhares retroactivos à sua infância e mocidade e recorda a sua relação fascinada e inocente com os outros: os familiares, os parentes, os amigos e gente castiça que ela conheceu de perto e que faz parte do seu imaginário e da sua memória afectiva. Essa gente surge do fundo dos tempos como uma aparição de saudade no meio das ruínas da vida.

Numa escrita de afectos e nostalgias, Fátima Toste fala-nos da alegria de sensações e sentimentos que ficaram enraizados na sua lembrança: a festa de Nossa Senhora da Guia, os festejos de S. João da Caldeira, recordações de pescarias e dos banhos na praia de Porto Pim, os dias da baleia, etc. São olhares fascinantes de quem, nas primeiras rajadas de vida pré-adulta, vive dividida entre sonhos e desejos, dúvidas e alegrias, partidas e chegadas, separações e reencontros.

Seguem-se recordações da vida adulta. E aqui chamaria a atenção do leitor para três narrativas que dão conta de Fátima Toste enquanto professora do ensino primário, em início de carreira: «A partida», «Terra Alta ou Submarino?» e «Na Vila Nova». Estão aqui bem patentes e bem (d)escritas as dificuldades por que passavam os professores em tempos pretéritos. Por exemplo: a odisseia, em vésperas do Natal, de uma viagem no «Terra Alta» que, saindo do Porto de Pipas (Angra do Heroísmo) só chegou à Horta 14 horas depois... Ou as apetecíveis recordações de experiências vividas na docência. Já na idade madura, convida-nos a narradora a partilhar momentos de felicidade, viagens e experiências por ela vividos, através dos quais recolhe ensinamentos proveitosos e inesquecíveis impressões.

«Ana» e «O pombo» são duas excelentes memórias da docência de Fátima Toste em Toronto. E «Avé Maria do Mar» é um belíssimo poema. O livro termina com a descrição de vivências em terras da diáspora, mas sem nunca perder de vista o torrão natal. O regresso ao passado é uma constante: a Praia de St. Pete, na Califórnia, traz à memória da autora a Praia de Porto Pim [...] Isto é, a memória da água viva.

Bem carpinteirado e com um bom ritmo discursivo e apreciável frescura narrativa, Porto Pim do meu Encanto aí fica, a merecer a nossa melhor atenção. Um livro singular, envolvente e tocante, banhado por uma imensa claridade solar. De plena espessura evocativa e de atenta observação do humano.

 
Victor Rui Dores – Escola Secundária Manuel de Arriaga. Rua Vasco da Gama. 9900-849 Horta