De forma clara, concisa e precisa o Professor Octávio Medeiros na sua tese de Doutoramento explicita o seu pensamento sociológico. Estruturada ao longo de uma vasta bibliografia acerca do «viver» insular (ver, entre outros Medeiros, 1995), e mais particularmente da ruralidade vivida no Concelho da Povoação, a sociologia, nomeadamente a sociologia religiosa laborada e elaborada por Octávio Medeiros, lança-se à procura de novas dimensões analíticas através do questionamento da religião nas suas dimensões praxiológicas.
Na base de um saber teórico consolidado e inspirado na abordagem de Scarvaglieri, seu orientador, a tese apresenta-nos os elementos comportamentais não assentes num a priori teológico ou ético mas na busca de uma (in)coerência dos actores confrontados com diferentes objectos sociais, enunciada em variáveis e indicadores coligidos em excelentes instrumentos de recolha de dados empíricos.
Embora não partilhe da perspectiva cibernética em sociologia, devo confessar que esta se torna estimulante na procura da multidimensionalidade do fenómeno religioso, como o autor procura enunciar no seu quadro teórico. Assim, é fecundo no domínio das ciências do comportamento questionar a religião, não tanto como uma dogmática mas como uma realidade social, vivida e vivenciada socialmente.
Neste quadro urge compreender a realidade da «praxis» religiosa, o que Octávio Medeiros equaciona no capítulo quinto da sua tese ao abordar a problemática da prática religiosa e das motivações. Citando Teixeira Fernandes e O’Dea o autor procura dar ênfase à dinâmica da fé. Um hoje que não resulta de um determinismo sociológico, mas sim um presente resultado de uma prática vivida.
Este postulado insere-se no princípio da orientação: o sentido da vida procurado pelos actores sociais, nova dimensão sociológica construída entre o relacional, o expressivo e simbólico e o estrutural, como acentua Scarvaglieri retomado pelo autor neste determinante capitulo V da sua obra. De facto, como refere Teixeira Fernandes as múltiplas tipologias da «praxis» revelam atitudes, valores, intenções em relação à natureza de uma fé que se posiciona na intersecção de uma relação com Deus (cognitiva) e com os «irmãos» (Comunidade) ( Fernandes, 1972: 169).
Neste domínio, e a partir desta questionação, a empiria absorve o autor a tal ponto que a leitura da tese passa a equivaler a tentar interpretar com o autor os múltiplos quadros onde os sacramentos aparecem marcados pela sua dimensão sociológica: uma relação com Deus individual e significante (no tempo e no espaço) e uma dessacralização na sua dimensão social como imperativo relacional (estilos de vida, modelo self-service, etc.).
Todavia, o autor não cai num reducionismo sociológico. A dimensão antropológica da festa surge como mediação para a análise da organização comunitária: o «povo», comunidade de salvação, organizado e estruturado (p. 419). Esta organização aparece como imperativo na dimensão institucional da religião. Ora o autor mostra que os papéis, as funções, a hierarquia, os poderes e os modos de relação entre níveis e papéis marcam o espaço em formas estruturais (Igreja Universal, Diocese, Paróquia).
A concepção da Igreja como «povo de Deus», «instituição divina», «continuação da missão de Cristo» aparece dominante nos inquiridos, o que denota, não apenas as dimensões da socialização religiosa, mas também a problemática da questionação sociológica desta dimensão sociológica plurissémica que é a religião. O autor manifesta, diversas vezes, neste domínio uma certa perplexidade. Com efeito, como afirma, existe uma diferença entre a posição que «assumem em relação a Deus» e o modo como «concebem a Igreja», e afirma com ênfase: «[…] Pela leitura dos dados somos levados a pensar que a Igreja está mais próxima de Cristo do que de Deus» (p. 433).
Ora, a Igreja identifica-se a Cristo e transmite a dimensão «terrena» de Deus feito Homem. Esta dimensão catequética ultrapassa a exegese dos dados e coloca a problemática da intencionalidade da acção. Com efeito, questionando o «povo Deus» o sociólogo muitas vezes interroga-se sobre o «sentido» do que a Igreja ensina no reflexo, e no refluxo dos saberes partilhados no seio de uma determinada cultura.
O desfasamento entre a realidade vivida e sentida aparece neste quadro como contexto fecundo. Assim, o autor procede à análise do sentido da mudança numa tríplice dimensão: a do passado (âncora, segurança, e tradição), a do futuro (risco, modernidade, e idealização) e a do presente (dissonância, transição e frustração).
Assim, a consciência de uma «crise de valores» (p. 439) assume uma dimensão que ultrapassa níveis de instrução. Porquê? Talvez porque a ruptura laicado/hierarquia se exprima através destes elementos estruturais que assumem especial significação numa determinada sociedade (valores), sobretudo em relação ao devir. Do intemporal da «mensagem» à realidade concreta e quotidiana dos crentes existe um amplo espaço que nesta tese se procura sondar. Porém, se cerca de 55% dos inquiridos sentem a necessidade de que a Igreja mude, são de relevar os 24% que se refugiam no «talvez» e os 12% de homens e os 19% de mulheres que não sentem a necessidade de mudança.
Com efeito, embora a vontade de mudar ultrapasse os 50%, esta encontra resistências nos grupos com menos habilitações literárias, com mais idade, e predominantemente do sexo feminino. Ou seja: os grupos com maior prática religiosa, com maior satisfação pela actual situação da Igreja.
Assim, não deixa de ser curiosa a problemática das dissonâncias entre consciência individual e os ensinamentos da Igreja. O grande consenso gera-se na predominância da consciência individual (p. 477). Talvez seja esta a questão crucial da modernidade. A intencionalidade «individual», consciente ou inconscientemente, adquire na socialização uma capacidade de opção. Falsa ou não, a consciência social forja-se como espaço «onírico» de liberdade e de encontro com «Deus».
Face a esta, a Igreja é vista e percepcionada como ligada às pessoas, à justiça, à paz e à promoção do Evangelho. Neste quadro, o «político» e a intervenção da Igreja nesse âmbito são rejeitados por aparecerem como contraponto ao «Homem». Paradoxalmente, mais de 65% dos inquiridos constatam a perda de influência da Igreja no mundo como algo inevitável.
Os actores (clero/hierarquia) assumem para os inquiridos (laicado) um papel importante, numa dialéctica onde a problemática do celibato sacerdotal e outras questões abordadas na tese parecem reflectir a dissonância existente entre o «modelo» da Igreja institucional e o «modelo» religioso dos crentes.
A dissenção hierarquia/ crentes aparece conforme ao modelo reactivo «burocrático»: máxima compreensão para o «padre» paroquial (local) e máxima reacção em relação a um «centro eclesial» abstracto, orientador e «normalizador». Este sistema aparece com clareza no campo da estruturação do político. Com efeito, mais de 60% dos inquiridos acham que a Igreja se deve afastar da política e esta noção é congruente com a posição «consensual», entre crentes e não crentes, na tolerância ideológica que os «católicos» devem manifestar.
Esta religiosidade difusa e politicamente indiferente (ver posição em relação ao capitalismo/comunismo) (p. 576) aparece, nos dados, ideologicamente pouco consistente, colocando à partida a questão religiosa mais no domínio da consciência individual/moral.
São os traços de «modernidade» que irrompem no campo simbólico da vida que parecem «interessar» mais aos entrevistados (crentes/não-crentes). Assim, sob o ponto de vista sociológico, assiste-se a uma erosão de sentido ao mesmo tempo que se enfatiza a praxis religiosa.
Durkheim em As formas elementares da vida religiosa, Mauss no Ensaio sobre o dom e Halbwachs em A memória colectiva já tinham à sua maneira mostrado a problemática da coesão/erosão social. A ideologia do indivíduo talvez justifique novas abordagens, como a de Jean-Claude Kaufmann que, no seu livro Ego, pour une Sociologie de l’individu, cita Balandier para afirmar: «[…] o homem contemporâneo […] aparece como um ser histórico mal identificado» ( Kaufmann, 2001: 274).
Este desconhecimento revela-se nesta grande «massa» (90% dos inquiridos declaram-se crentes) difusa e perene que estrutura o ser devir num catolicismo genérico «mais sociológico do que teológico e centrado na tradição e no costume» (p. 605). Todavia, uma «religião» que radica num «íntimo» numa «alma» e numa relação que não se reduz a modelos estereotipados.
Esta sociedade micaelense «desconcertada» e «desconcertante» coloca, de forma renovada, ao investigador a questionação acerca da «modernidade» e da «Igreja», num espaço entre o perene e o transitório, marcado por apelos à mudança num excelente trabalho que a todos interpela. Rolando Lalanda Gonçalves
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