Cristóvão de Aguiar escreve com sensibilidade, emotividade, elegância narrativa e apuro literário. E é autor de uma obra que é das mais vastas, das mais originais e das mais sérias da literatura dita de significação açoriana.
Deste escritor acabo de ler Nova Relação de Bordo, «diário ou nem tanto ou talvez muito mais», que vem completar a trilogia iniciada em Relação de Bordo - 1964-1988 (Campo das Letras, 1999) e continuada com Relação de Bordo II - 1989-1992 (Campo das letras, 2000). Contrariamente aos dois livros anteriores, registe-se que este terceiro não apresenta balizas temporais definidas e precisas, mas é óbvio que o autor retoma a escrita deste «quase diário» a partir da data referida na segunda obra.
Quem escreve, escreve-se, já se sabe. Há em Nova Relação de Bordo uma vibração afirmativa que traduz fragmentos da vida vivida e sonhada de Cristóvão de Aguiar que, página a página, vai tropeçando nas suas memórias. O autor viveu entretanto novas experiências e, por isso mesmo, lança novos olhares sobre pessoas, coisas e acontecimentos. Por exemplo: as mortes de Natália Correia, Miguel Torga, Paulo Quintela, Mário Dionísio, Salgado Zenha, António Portugal e de outros amigos e colegas menos conhecidos: Idalina Aguiar de Melo, Victor Borges, Carolina...
Por isso estamos perante um livro de perdas, afectos, monólogos, convívios, cavaqueiras, peregrinações e viagens sentimentais. Ainda e sempre o autor evoca, invoca e convoca a ilha primordial, sendo que esta continua a ser o epicentro do seu imaginário, isto é, o seu roteiro afectivo. Mas há outras geografias afectivas: a recordação saudosa de Coimbra (recordar é «chamar ao coração», diz-nos por mais de uma vez o autor), cidade mítica, dos doutores de borla e capelo, dos estudantes, futricas e tricanas, das Repúblicas, das tertúlias, do fado e da boémia... Mas também a Coimbra da actualidade sobre a qual escreve páginas de apetecível recorte literário. E há ainda a intimidade da geografia americana: as viagens e as vivências familiares da diáspora açoriana. Fortíssima é a memória que o autor guarda de seu pai, sobre quem continua a dar vivíssimos e inesquecíveis testemunhos. Aliás, no âmbito da literatura portuguesa actual, não conheço nenhum outro escritor que evoque a figura do pai de forma tão intensa e insistente.
Por outro lado, e nunca perdendo de vista o discurso literário, Cristóvão de Aguiar envereda por estratégias pedagógicas para comentar acontecimentos vividos ou recordados, quer se trate de explicar o doutoramento de Vergílio Ferreira, na Universidade de Coimbra (belíssima a explicação dos rituais académicos); ou de dar a conhecer os contornos de «Boston Tea Party», (ocorrido no dia 16 de Dezembro de 1773); ou de retratar a forma como Karla Faye Tucker foi executada na prisão de Huntsville, nos Estados Unidos da América.
São magistrais os testemunhos e as páginas que o autor escreve sobre Miguel Torga, Vitorino Nemésio e Paulo Quintela. Deste último escreve o melhor, mais sentido e desenvolvido retrato jamais perspectivado sobre aquele distinto professor (cf. pp. 236 a 252).
Neste livro, Cristóvão de Aguiar, assumindo-se como narrador auto-diegético (narrador protagonista), também fala da sua condição de escritor: dos seus livros A descoberta da cidade e outras histórias, Passageiro em Trânsito e Um grito em Chamas, sobre os quais vai tecendo considerações e expectativas à medida que vão sendo escritos, revistos ou lançados. Recorrendo à mais ácida ironia, o autor fala das «pândegas culturais», das tricas, amarguras, azedumes e invejas do milieu literário (por exemplo, considera o Jornal de Letras o «porta-voz da paróquia literária lisboeta», p. 157); leitor compulsivo, discorre sobre os livros que vai lendo e tece considerações sobre os seus autores; dos portugueses: Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Teófilo Braga, Florbela Espanca, Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Armando Côrtes-Rodrigues, Jaime Cortesão, José Régio, José Rodrigues Miguéis, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Paulo Quintela, Luís Albuquerque, Orlando de Carvalho, Joaquim Namorado, Vergílio Ferreira, Jorge Amado, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Manuel Bandeira, Almeida Pavão, José Martins Garcia, Emanuel Félix, Agustina Bessa-Luís, Eduardo Lourenço, José Saramago, Mayone Dias, Manuel Alegre, Pires Cabral, José Medeiros Ferreira, Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Fernando Aires, Dias de Melo, Francisco Quevedo, Eduardo Prado Coelho, Reis Leite, Jaime Gama, João de Melo, Mário Cláudio, Mia Couto, Miguel Esteves Cardoso, Egito Gonçalves, Jacinto Soares de Albergaria, Eduíno de Jesus, Carlos Reis, Vasco Pereira da Costa, Vamberto Freitas, Álamo Oliveira, João Afonso, Daniel de Sá, Onésimo Teotónio Almeida, Katherine Vaz, entre outros. Dos estrangeiros: Tolstoi, os irmãos Bullar, John Updike («blica tesa», escreve o Cristóvão «laparoso»...), Buffon, Rilke, Albert Camus, Eugene O’Neill, Marguerite Duras, Isabel Allende, entre outros. Mas a prosa deste autor conhece maior fundura narrativa e consistência literária quando, em analepses (ou flash backs, dadas as potencialidades cinematográficas das suas narrativas), envereda pela memória insular e pelo discurso amoroso, sendo que Ela, a mulher amada, funciona como uma metáfora da ilha – situação já patente no segundo volume da referida trilogia. Na página 273 do presente livro podemos ler: «Viver. Amar. Ao pé da Montanha e de Ela...» [...] «A Ilha do Pico faz as vezes da mulher amada».
Impressionante é a descrição que nos é dada da montanha do Pico (pp. 271 a 274) – ilha onde o autor construiu habitação e vive regularmente. A maneira como aquele capta atmosferas de luz e sombra emparceira com as descrições desse outro grande pintor literário: o Raul Brandão, de As Ilhas Desconhecidas.
Belíssima é a evocação a Nemésio (pp. 278 a 287), sobre quem nos são trazidas algumas novidades biográficas, via testemunhos orais de Paulo Quintela: «O Nemésio escreve como quem mija e compõe os poemas directamente à máquina de escrever. Fui eu que lhe meti o vício da máquina de escrever; tinha eu acabado de chegar da Alemanha, em 1933, e um dia, em minha casa, o Nemésio achou graça àquele brinquedo que minha mulher manuseava com muita perícia; passados uns tempos ele não tinha uma, mas uma colecção delas» (p. 160). Referindo-se ao fraquinho que Nemésio sempre nutriu pelo belo sexo, acrescenta Quintela. «Uma burra de lenço punha o Nemésio levantado...» (p. 159).
Sobre si próprio traça Cristóvão de Aguiar uma breve autobiografia (pp. 73 a 78), digna de registo.
De salientar a intromissão, aqui e ali, de uma voz narrativa (grafada em itálico) que faz uma espécie de inquérito ao subconsciente, processo que o autor já havia utilizado no conto «Trasfega», no livro do mesmo nome (Publicações Dom Quixote, 2003).
Estamos perante uma escrita que testemunha o «emergente humano» e que recorre à tensão, à ironia e à análise psicológica. O autor debruça-se sobre os acontecimentos do dia a dia, interpreta-os à sua maneira. E, no silêncio do seu gabinete ou no aconchego do lar, ouvindo música clássica em fundo, fala de si, das suas alegrias e indisposições, dos seus achaques e estados de euforia, das condições atmosféricas. Aliás, chove imenso neste diário... Diário que viaja de comboio, automóvel e avião... Mas o narrador também fala dos outros, tendo para com alguns uma argúcia crítica e a consciência de uma incomodidade. Exemplo disso é o retrato espantoso que nos é dado de Carolina, uma jovem estranha e imprevisível, espírito intrigado e inquieto, alma torturada e complexa, vivendo uma relação conflituosa com a vida, com o mundo e com os outros (sobretudo a mãe). Carolina vive a contas com uma grande instabilidade psíquica e com uma obsessão pelo suicídio, a cujo apelo acabará por soçobrar, não sem que antes experimente os ínvios caminhos da droga e da prostituição... Pelo recorte humano e psicológico, Carolina é personagem que bem se presta à urdidura romanesca. De resto, vários estudantes universitários de Coimbra cometem o suicídio ao longo deste diário, fenómeno a merecer um aprofundado estudo sociológico. Aqui também se fala de animais como se de gente se tratasse: as cadelas Ísis, Pantera e Lilinha, por exemplo. (Como esquecer a «humanização» da Girafa, no livro Vindima de Fogo?).
Nova Relação de Bordo é, pois, um livro sensível, sugestivo e aliciante. Um livro de verdadeiros afectos e de admirações duradouras, de que é exemplo o já referido triângulo maravilhoso: Paulo Quintela, Miguel Torga e Vitorino Nemésio.
A escrita de Cristóvão Aguiar namora a vida, vê e escreve pelos olhos da memória, possui capacidade descritiva e evocativa. É uma escrita telúrica, eruptiva, límpida e fluente, de boa ressonância musical e prenhe de poeticidade e de sedutora prosódia: «Vou ordenando e ordenhando as ideias...» (p. 87); «[…] tímidos e túmidos mamilos […]» (p. 108); «moroso e amoroso […]» (p. 18); «[…] aconchegados e aconchegantes […]» (pág. 21); «lendas […] lêndeas […]» (p. 25); «Devemos ser brindados e blindados com calor de alto calibre […]» (p. 139); «[…] música outonal e outoniça […]» (p. 156); «[…] amores intensos e incendiados […]» (p. 283), etc.
Interessante é também a maneira como o autor recupera arcaísmos, carrega-os de vigor e sentido e devolve-os ao leitor: alumbramento (deslumbramento); lavarinto (balbúrdia, confusão); menente (espantado, estupefacto); poderiz (muito); cobreia (toupeira); colacia (intimidade), entre outros.
Devemos todos agradecer a «insónia criadora» de Cristóvão de Aguiar, digo escritor libérrimo, cuja forma (higiénica) de estar na literatura é o de estar à margem dela.
|