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Vítor Rui Dores
Nuno Álvares de Mendonça
e as suas memórias baleeiras(1)

 

Nuno Álvares de Mendonça
Memórias de um baleeiro
(3.ª edição), Ponta Delgada, Edição do Autor, 2003

"Não poucos destes caçadores de baleias são originários dos Açores, onde as naus de Nantucket que se dirigem a mares distantes atracam, frequentemente para aumentar a tripulação com os corajosos camponeses destas costas rochosas. Não se sabe bem porquê, mas a verdade é que os ilhéus são os melhores caçadores de baleias".

Herman Melville, Moby Dick , cap. XXVII

 

Ilhéu com sede de infinito, Nuno Álvares de Mendonça é um filho do mar. Exemplo de auto-didacta que soube cultivar-se para além da escola, dotado de uma agudíssima sensibilidade e possuidor de uma incomensurável riqueza humana, este jorgense é herdeiro de uma tradição familiar (12) e é senhor de uma consciência crítica e de um finíssimo sentido de humor.

Com a cédula marítima tirada aos 14 anos de idade, cedo Nuno Álvares se fez ao mar e nele encontrou a sua inspiração, a sua fonte de vida e mantimento, os seus sonhos e pesadelos. Aos 16 anos já andava no encalço das baleias. Foi no mar que cresceu e se fez homem. Foi o mar que lhe deu sabedoria e lhe ensinou conceitos filosóficos e humanistas. Seguiu-se uma vida inteira dedicada à actividade piscatória e preenchida entre a ilha e a viagem mil vezes retomada.

Observador atento do real, Nuno Álvares dissecou, no mar, a sua alma - como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade. E, nos dias que correm, não se coíbe de velejar, na companhia dos filhos Rui e Nuno, a aventura e o sonho nas vastidões oceânicas, com os olhos encharcados de luz marítima...

Mantendo, ainda e sempre, uma relação fascinada pelas coisas do mar, Nuno Álvares arpoa, hoje, a escrita e continua a aproar às vivências marítimas, nomeadamente esta terceira edição de Memórias de um Baleeiro (Caça à baleia nos Açores - 1930 a 1945).

Ninguém escreve no vácuo ou no abstracto. Nomear é criar a realidade do que se diz, pois todo o acto verbal possui um significado e a palavra encerra sempre uma carga significativa. Há em Nuno Álvares um relacionamento de vaivém e uma clara sintonia entre a vida e a escrita. Porque, no fundo, é na vida onde a literatura vai colher a sua natureza e a sua substância. Daí que autor e narrador sejam, neste livro, entidades coincidentes.

Passados quase vinte anos após a sua primeira edição, Memórias de um Baleeiro é hoje um marco incontornável no âmbito da etnografia marítima açoriana, bem como uma referência na história da baleação nos Açores e na bibliografia baleeira. Bem documentado e informado, com valiosas achegas etnográficas, sociológicas e linguísticas, este livro é um documento vivo de factos vividos e sentidos pelo seu autor. Aqui se dá conta da aventura épica de intrépidos lobos do mar que, em frágeis embarcações e mediante processos primitivos, se entregavam a uma luta intensa e desigual, desafiando a vida pela morte do majestoso Leviathan. É, a todos os níveis, notável o capítulo IV desta obra, a qual é já um pedaço da nossa cultura, da nossa memória e da nossa história.

Com efeito, Nuno Álvares vai fundo no imaginário baleeiro. E capta a exacta respiração e toda a ambiência que envolvia as pretéritas caças à baleia. As histórias deste livro resultam, por conseguinte, de olhares retroactivos (a baleação açoriana acontecida entre 1930 e 1945), bem como de sensações e de sentimentos que ficaram enraizados na memória do seu autor. Este descreve-nos, de forma rigorosa, os processos, as técnicas, as operações e as nomenclaturas referentes à faina baleeira, por um lado e, por outro, narra incidentes e acidentes, relata memórias e traça minudências e mundividências. Interessante é a maneira como o autor explica, comenta, analisa, denuncia, renuncia e questiona a baleação, ele que, vivendo no mi crocosmo da ilha, sempre teve os olhos postos em espaços do universal e já era um verdadeiro ecologista muito antes do advento da ecologia... Comovente é a descrição que nos é dada da morte (involuntária) de um “cafre” (filho da baleia) quando este tentava defender a mãe dos golpes desferidos pelos baleeiros.

Aqui também se questiona a vida e a morte, Deus e os homens, o amor e o sonho, a solidão e a memória funda e paradigmática da ilha, sendo que as Velas é o microcosmo de referência de Nuno Álvares - é naquela vila onde pulsa todo o universo e toda a geografia sentimental e afectiva: o escritor revisita lugares, pessoas e coisas que povoam o seu imaginário, isto é, tudo aquilo que lhe ficou suspenso na lembrança nostálgica.

Mas atenção: essa viagem ao passado não visa o exorcismo da saudade, nem busca uma recherche du temps perdu maneira de Proust). O objectivo de Nuno Álvares é claramente o de dar a conhecer (de forma, aliás, muito didáctica) a baleação estacional açoriana, em geral, e jorgense, em particular. Não o faz, porém, de forma meramente expositiva e técnica. Vai mais longe. Convoca e traça perfis dos baleeiros, gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana: o José Maria, o João Pão Quente, o João Silva e outros experimentados marinheiros, homens irreverentes, generosos, destemidos, cumpridores, manhosos e competitivos, sempre prontos ao risco, à aventura e à solidariedade. Está aqui a importância desta obra: a riqueza de situações humanas nela patentes.

De resto Nuno Álvares é, na verdadeira acepção da palavra, um humanista. Veja-se, por exemplo, a maneira como ele “humaniza” a baleia sempre que a ela se refere. Ele, que hoje lamenta ter causado a morte de tantos cetáceos, assume com verticalidade o seu mea culpa e deixa uma mensagem para o futuro: não matem as baleias. E conta-nos histórias, enredos e outras peripécias de grande impressionismo e de desfechos inesperados, imprevistos e imprevisíveis: a visão de lulas gigantes encontradas no decorrer de uma arriada; uma baleia acometida de uma “descarga intestinal de enorme violência”; a cópula de dois cetáceos; os aparatosos saltos de baleias a “brincarem” junto da traineira e a elevarem-se “a mais de quatro metros fora da água”; ou aquela vez em que o mar ficou coalhado de cachalotes ameaçadores... O que torna a leitura deste livro um acto (cinematográfico) de apetecível fruição. Até porque esta não é uma obra de ficção. Não há aqui a encenação do texto literário de um Melville, de um Nemésio, de um Tabucchi ou de um Dias de Meio. Contrariamente àqueles, Nuno Álvares sabe do que escreve porque escreve sobre o que viveu, de forma intensa e apaixonada.

Memórias de um Baleeiro é, pois, um livro com um grande poder evocativo, muito belo e humaníssimo. Além disso, está bem escrito, possui uma bem conseguida fluência narrativa a par de uma notável originalidade discursiva. E por isso mesmo deve continuar a merecer a nossa melhor atenção.

 

(1) Texto de apresentação oral desta obra, a 18 de Janeiro de 2004, na Casa do Triângulo, em Ponta Delgada.

(2) Nuno Álvares é um dos filhos de Rui de Mendonça (1896-1958), professor primário, advogado provisionário, poeta (romântico-parnasiano), contista, teatrólogo e jornalista. Os seus escritos encontram-se dispersos por jornais açorianos da época. Utilizou o pseudónimo de Jayme Velho. Desenvolveu actividade política, batendo-se sempre pelos valores da liberdade e da democracia. Esta postura valeu-lhe a perseguição pelo regime de então. Escreveu peças de teatro, uma delas publicada, A Flor da Serra (Angra do Heroísmo, 1916). Em 1969 os familiares reuniram e deram à estampa grande parte dos seus versos, num volume com o título geral de Poemas (Angra do Heroísmo). No dia 9 de Junho de 1989, Rui de Mendonça foi condecorado, a título póstumo, com o Grau de Oficial da Ordem da Liberdade, pelo então Presidente da República Dr. Mário Soares.

 
 
Victor Rui Dores - Conservatório Regional da Horta. Rua Marcelino Lima. 9900-122 Horta.