Ilhéu com sede de infinito, Nuno Álvares de Mendonça é um filho do mar. Exemplo de auto-didacta que soube cultivar-se para além da escola, dotado de uma agudíssima sensibilidade e possuidor de uma incomensurável riqueza humana, este jorgense é herdeiro de uma tradição familiar (12) e é senhor de uma consciência crítica e de um finíssimo sentido de humor.
Com a cédula marítima tirada aos 14 anos de idade, cedo Nuno Álvares se fez ao mar e nele encontrou a sua inspiração, a sua fonte de vida e mantimento, os seus sonhos e pesadelos. Aos 16 anos já andava no encalço das baleias. Foi no mar que cresceu e se fez homem. Foi o mar que lhe deu sabedoria e lhe ensinou conceitos filosóficos e humanistas. Seguiu-se uma vida inteira dedicada à actividade piscatória e preenchida entre a ilha e a viagem mil vezes retomada.
Observador atento do real, Nuno Álvares dissecou, no mar, a sua alma - como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade. E, nos dias que correm, não se coíbe de velejar, na companhia dos filhos Rui e Nuno, a aventura e o sonho nas vastidões oceânicas, com os olhos encharcados de luz marítima...
Mantendo, ainda e sempre, uma relação fascinada pelas coisas do mar, Nuno Álvares arpoa, hoje, a escrita e continua a aproar às vivências marítimas, nomeadamente esta terceira edição de Memórias de um Baleeiro (Caça à baleia nos Açores - 1930 a 1945).
Ninguém escreve no vácuo ou no abstracto. Nomear é criar a realidade do que se diz, pois todo o acto verbal possui um significado e a palavra encerra sempre uma carga significativa. Há em Nuno Álvares um relacionamento de vaivém e uma clara sintonia entre a vida e a escrita. Porque, no fundo, é na vida onde a literatura vai colher a sua natureza e a sua substância. Daí que autor e narrador sejam, neste livro, entidades coincidentes.
Passados quase vinte anos após a sua primeira edição, Memórias de um Baleeiro é hoje um marco incontornável no âmbito da etnografia marítima açoriana, bem como uma referência na história da baleação nos Açores e na bibliografia baleeira. Bem documentado e informado, com valiosas achegas etnográficas, sociológicas e linguísticas, este livro é um documento vivo de factos vividos e sentidos pelo seu autor. Aqui se dá conta da aventura épica de intrépidos lobos do mar que, em frágeis embarcações e mediante processos primitivos, se entregavam a uma luta intensa e desigual, desafiando a vida pela morte do majestoso Leviathan. É, a todos os níveis, notável o capítulo IV desta obra, a qual é já um pedaço da nossa cultura, da nossa memória e da nossa história.
Com efeito, Nuno Álvares vai fundo no imaginário baleeiro. E capta a exacta respiração e toda a ambiência que envolvia as pretéritas caças à baleia. As histórias deste livro resultam, por conseguinte, de olhares retroactivos (a baleação açoriana acontecida entre 1930 e 1945), bem como de sensações e de sentimentos que ficaram enraizados na memória do seu autor. Este descreve-nos, de forma rigorosa, os processos, as técnicas, as operações e as nomenclaturas referentes à faina baleeira, por um lado e, por outro, narra incidentes e acidentes, relata memórias e traça minudências e mundividências. Interessante é a maneira como o autor explica, comenta, analisa, denuncia, renuncia e questiona a baleação, ele que, vivendo no mi crocosmo da ilha, sempre teve os olhos postos em espaços do universal e já era um verdadeiro ecologista muito antes do advento da ecologia... Comovente é a descrição que nos é dada da morte (involuntária) de um “cafre” (filho da baleia) quando este tentava defender a mãe dos golpes desferidos pelos baleeiros.
Aqui também se questiona a vida e a morte, Deus e os homens, o amor e o sonho, a solidão e a memória funda e paradigmática da ilha, sendo que as Velas é o microcosmo de referência de Nuno Álvares - é naquela vila onde pulsa todo o universo e toda a geografia sentimental e afectiva: o escritor revisita lugares, pessoas e coisas que povoam o seu imaginário, isto é, tudo aquilo que lhe ficou suspenso na lembrança nostálgica.
Mas atenção: essa viagem ao passado não visa o exorcismo da saudade, nem busca uma recherche du temps perdu (à maneira de Proust). O objectivo de Nuno Álvares é claramente o de dar a conhecer (de forma, aliás, muito didáctica) a baleação estacional açoriana, em geral, e jorgense, em particular. Não o faz, porém, de forma meramente expositiva e técnica. Vai mais longe. Convoca e traça perfis dos baleeiros, gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana: o José Maria, o João Pão Quente, o João Silva e outros experimentados marinheiros, homens irreverentes, generosos, destemidos, cumpridores, manhosos e competitivos, sempre prontos ao risco, à aventura e à solidariedade. Está aqui a importância desta obra: a riqueza de situações humanas nela patentes.
De resto Nuno Álvares é, na verdadeira acepção da palavra, um humanista. Veja-se, por exemplo, a maneira como ele “humaniza” a baleia sempre que a ela se refere. Ele, que hoje lamenta ter causado a morte de tantos cetáceos, assume com verticalidade o seu mea culpa e deixa uma mensagem para o futuro: não matem as baleias. E conta-nos histórias, enredos e outras peripécias de grande impressionismo e de desfechos inesperados, imprevistos e imprevisíveis: a visão de lulas gigantes encontradas no decorrer de uma arriada; uma baleia acometida de uma “descarga intestinal de enorme violência”; a cópula de dois cetáceos; os aparatosos saltos de baleias a “brincarem” junto da traineira e a elevarem-se “a mais de quatro metros fora da água”; ou aquela vez em que o mar ficou coalhado de cachalotes ameaçadores... O que torna a leitura deste livro um acto (cinematográfico) de apetecível fruição. Até porque esta não é uma obra de ficção. Não há aqui a encenação do texto literário de um Melville, de um Nemésio, de um Tabucchi ou de um Dias de Meio. Contrariamente àqueles, Nuno Álvares sabe do que escreve porque escreve sobre o que viveu, de forma intensa e apaixonada.
Memórias de um Baleeiro é, pois, um livro com um grande poder evocativo, muito belo e humaníssimo. Além disso, está bem escrito, possui uma bem conseguida fluência narrativa a par de uma notável originalidade discursiva. E por isso mesmo deve continuar a merecer a nossa melhor atenção. |