Este é um livro de contos inéditos que
o autor preparara para publicação,
como esclarece Manuel Tomás Gaspar da Costa nas «Notas lntrodutó
rias». A este professor se deve, aliás,
a forma acabada que a colectânea
agora conhece.
A louvável iniciativa do Núcleo
Cultural da Horta de publicar os textos inéditos de Tomás da Rosa permite ao público leitor, sobretudo do Pico
e do Faial, o conhecimento destes
contos do autor picoense que muitos
se habituaram a respeitar como professor no antigo Liceu Nacional da
Horta ou Liceu Manuel de Arriaga,
hoje Escola Secundária com o mesmo
nome.
Para além da tarefa de apuramento
textual levado a cabo por Manuel
Tomás Gaspar da Costa - facultado,
como o próprio anota, pelo trabalho
prévio de Tomás da Rosa -, ficamos
ainda a dever-lhe, na introdução que
faz aos contos em apreço, fecundas linhas de leitura, pela panorâmica que
fornece sobre o respectivo conteúdo
geral bem como sobre a estética que
norteia a escrita do seu Autor.
É esta colectânea composta de um total
de catorze contos, de índole predominantemente regionalista (como também se nos dá a entender na introdução): «O
Começo da Noite»; «O Porto»; «O
Assombro»; «O Sacrifício»; «llha Morena»; «A Ardósia Pequena»; «A Anoneira»; «O Balcão»; «O Darro»; «O
Saco de Milho», «O Pachola»; «O
Sonho»; «A Dívida»; «A Porta e a
Janela». Digamos que, em termos de
conteúdo narrativo, o conto inicial, que
abre com uma cena de violência (situação que não é única; veja-se, por exemplo, «O Saco de Milho» ), adquire significação retrospectiva no cômputo geral
da colectânea, como indício do universo que marca estes contos e, nomeadamente, da atmosfera que neles se cria.
Perpassa, com efeito, em quase todos
eles uma certa rudeza, fruto da expressão natural de personalidades forjadas (dir-se-ia, de forma naturalista)
em consonância com o meio e, certamente, a educação. Seria, porém, errado circunscrevermo-nos assim a
essa leitura de superfície. Por detrás
dela não podemos deixar de descortinar a visão mais ampla de um Autor
que, por meio da ficção, perscruta atitudes e analisa sentimentos humanos:
de nostalgia, dor, desilusão, consciência amarga das realidades da vida,
ânsia de justiça, mediante um conhecimento que ele terá ido buscar ao meio rural que bem conhecia e de que
terá captado o que, em seu entender,
melhor o tipificaria.
Por estas narrativas breves transitam
personagens que protagonizam episódios de um ambiente rural localizado
e de notória referência empírica. Será
esta uma forma de enraizar a ficção
no real, incluindo-a em espaços geográficos do mundo empírico, produzindo, deste modo, o «efeito do real»
a que se referiu Roland Barthes. A
este propósito, uma questão de pormenor - e deixando de parte uma ou
outra gralha, que, não raro, acontecem em trabalhos desta natureza -,
mas que nos surpreendeu, por termos
diferente experiência de infância no
Pico: sempre conhecemos a designação «dia do Ajuntamento», que ainda
hoje se mantém, aplicada ao dia 22 de
Setembro e não ao «dia de S. Mateus»
(que é a 21), como em «Ilha Morena»
(p. 48) vem escrito. Lapso? Variação
de data de freguesia para freguesia?
Não se trata já, com certeza, do
Monte ou do Pico de agora em todas
as suas vertentes, mas daqueles que
Tomás da Rosa um dia terá mais ou
menos conhecido. E, para quem só
tenha presente a faceta culta e citadina do Professor de Português, Latim
e Grego, não deixará de surpreender a
maneira como ele transfigura em arte
da ficção essa outra realidade que nas
freguesias se vivia, sendo bem visível
a acção do espaço na determinação do modo de ser e de viver dos que nele
habitam, aqui projectados nas personagens ficcionalmente inventadas e
na linguagem que as caracteriza.
O próprio título, Ilha Morena, instaura no cerne destas narrativas breves
um espaço geográfico reconhecível
que constituía a sua terra de nascimento, por onde Tomás de Rosa reiteradamente circulava e que, naturalmente, transportava dentro de si,
mesmo quando vivia fora dela. E um
processo de a fixar indelevelmente,
na memória e para além dela, seria,
pois, a respectiva transposição para
esse mundo alternativo que a ficção
nos propõe -até porque, a literatura,
sendo arte, instaura precisamente a
duração no efémero da vida.
E porque da Ilha Morena (a lembrar a
própria Ilha do Pico, que também dá
pelo nome de Ilha Negra) se trata,
será de destacar, em primeiro lugar, o
conto que duplica o título em causa e
onde se exalta a abençoada terra
natal, onde os emigrantes, após terem
conhecido a dureza da vida noutras
pátrias, nela vêm repousar das amarguras experimentadas.
Morenas são, portanto, a Ilha e a casa,
como se esta, no aconchego proporcionado, fosse um modelo reduzido
daquela: «Ilha abençoada e amiga!
Cantinho de sossego para eles, que tinham palmilhado parte do mundo, de
um mundo asfaltado e mecânico -,
para sorverem sempre o seu quinhão da amargura que a vida reserva, implacável, a todos os homens» (p. 51 ).
Também a casa que recebe o nome de
Ilha Morena, a bela casa «moderna,
colorida, com o seu pórtico de colunas elegantes [ ...] numa elevação
donde se avistavam o mar, os Ilhéus,
as araucárias da vila e a cidade em
frente» (p. 52), serve para Paulino e
Mariana, regressados do Canadá, afogarem mágoas passadas. Casa e Ilha
surgem, portanto, como uma espécie
de regaço materno onde vêm acalentar os seus cansaços, as suas amarguras e os seus lutos. Este é também, na
verdade, um dos raros momentos em
que a terra, aqui representada no microcosmo da casa, aparece nimbada
de felicidade, de uma felicidade que
vem muito menos da vida vivida do
que daquilo que a própria natureza
proporciona.
É, aliás, em «lha Morena» que encontramos das mais belas descrições deste
livro, o que nos parece deveras significativo. Sendo o conto - e estes não
fogem à regra - um género narrativo
caracterizado pela contenção, ele não
comporta nem uma complexa teia
de acções nem longas descrições.
Atendendo, portanto, a que, nesta estética da brevidade, são privilegiadas as
acções condensadas ou centradas em
episódios singulares, são diminutas as
pausas descritivas. No entanto, a que
se reporta à casa baptizada de Ilha
Morena constitui uma das notáveis excepções: aí se descreve com minúcia,
embora com a economia de meios que
o espaço textual exige, o prédio rústico, com o pátio que o rodeia, as árvores de sombra e de fruto, a horta, o cerrado, e, numa visão panorâmica, a
própria ilha, como se vê nesta passagem que não resistimos a transcrever:
«Numa larga faixa desde a beira-costa
até às ramagens densas dos primeiros
matos, desenrolavam-se campinas vastas, acidentadas de maroiços e colinas,
em que, entre os salpicos de verdura, -
vinhas, figueiras, pinheiros, faias e incensos - rastejava num chão velho,
hostil e rochoso, a misteriosa cor morena do corpo da sua ilha, posto que de
inverno, ilha branca, se envolvesse em
toalha de neve na Montanha.» (p. 51).
Sublinhado do texto).
Em passagens como esta é mesmo
notório um certo pendor lírico, quer
pelo estatismo temporal a que a descrição se presta, quer pelo modo encantado como a textualização dos espaços do mundo empírico é feita,
quer pela projecção subjectiva do exterior no interior de quem descreve.
E, nestas circunstâncias (porventura o
lado mais feliz deste livro ), apraz-nos
ver o trabalho de linguagem que o
próprio Autor, por interposto narrador, leva a cabo, e onde nitidamente
se percebe o prazer subjacente ao acto
descritivo.
Embora diversificados nas suas histórias e nas peripécias vividas pelas personagens, ressalta destes contos um
tom dominante, disfórico, onde as
vidas felizes não fazem história. É,
efectivamente, a vida dura do trabalhador rural, as, por demais conhecidas, travessias do canal nos barcos de
cabotagem, em luta com as ondas alterosas, os sonhos não realizados e silenciosamente acalentados. Tal acontece, por exemplo, no conto que tem
precisamente «o Sonho» por título,
mas também noutros, como «o
Balcão», em que o mundo sonhado de
Valentim, que saíra para continuar estudos no Continente português, acaba
no regresso à terra donde partira, o
lugar de fuga para a vida simples, «de
ar lavado», do passado. Um sonho
guardado pela vida fora é também
aquele que em «A Anoneira» se vive.
Aquele é, aliás, a nosso ver, igualmente um dos contos bem conseguidos
desta colectânea, pelo modo contido
como exprime as vivências mais íntimas das personagens bem como pelo
investimento aí feito na descrição.
Não se esquecerá, porém, que a aldeia
não é apenas o espaço idílico dos pinheiros e da horta, dos gorjeios matutinos de canários e pintassilgos. É
também o espaço onde se vazam os
pequenos ódios, as questiúnculas e desavenças, próprios dos espaços restritos onde todos se conhecem e de seres
que, alheios à sofisticação da lei, se
regem por uma espécie de justiça natural, exercida no calor das emoções e à margem do código penal vigente. É
este, porventura, o lado menos atraente, mesmo se de intuito realista, destes
contos. Ou talvez por isso mesmo,
porquanto as manifestações tardias de
uma determinada estética perdem, geralmente, a frescura e a eficácia que tiveram na altura própria.
Será justo, no entanto, destacar,
goste-se mais ou menos das histórias
aqui narradas, o domínio da técnica
narrativa revelado por Tomás da
Rosa, especialmente no modo como
se conjuga o discurso do narrador
com a perspectiva das personagens
(destaque-se, neste aspecto, como
também Manuel Tomás já apontara, a
técnica do discurso indirecto livre ao
serviço da retrospecção) e como conjuga habilmente as descrições breves,
em obediência às características do
género, com a narração.
Veríamos, no entanto, com agrado, se
tal pudesse ter sido feito (mas compreendemos que, numa edição póstuma, se respeite a intenção do autor),
uma expurgação do que menos ilustra
(ou que mais deslustra) esta colectânea, qualquer que tenha sido a respectiva motivação. E aqui não podemos
deixar de referir o último conto, que
destoa do tom geral do livro, quer
pela linguagem, quer pelo conteúdo.
Terão, certamente, ainda estes contos
um valor histórico, na medida em que
já não traduzirão exactamente o
modus vivendi do espaço rural picoense, muito mais aberto às interferências do viver urbano e a um outro
modo de cultura. E para quem aprecie
menos, no tempo presente, esse regionalismo -em nossa opinião, demasiado exposto -, será grato vislumbrar, por detrás do ruralismo das personagens, a linguagem culta do Autor
colada às parcas, e discretas, inter
venções de um narrador que não resiste, uma ou outra vez, a distanciar a
sua voz da voz das personagens cujo
discurso pretende representar.
Dir-se-á, finalmente, que o leitor familiarizado com a leitura dos grandes
contistas contemporaneos, nacionais
e estrangeiros (sublinhe-se que se trata de um género altamente revalorizado na actualidade, quer na praxis,
quer na teoria literária), não terá grandes motivos para deslumbramento. Isso não impede, todavia, que um
texto como este mereça o nosso reconhecimento como trabalho artístico
que, efectivamente, é. Acresce que,
para o leitor açoriano, disponível para
a leitura e para o reconhecimento dos
seus, esta publicação será, assim o
cremos, vista como um enriquecimento da, já vasta, literatura açoriana.
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