Dava-nos conta Alvin Kernan, em livro publicado em 1990, intitulado The Death of Literature, da seguinte contradição na actualidade: por um lado, a multiplicada glosa, do tema da «morte da literatura»; por outro, a notável visibilidade da instituição literária. Significa isto, portanto, que os escritores continuam a escrever e a publicar livros, normalmente com lançamento público, dão entrevistas, vão às escolas dialogar com os alunos, exercem, quantas vezes, actividade crítica paralela, seja em textos críticos ou ensaísticos, propriamente ditos, seja em textos de notória referência autobiográfica, como é o diário. E nós, simples leitores ou professores de literatura, continuamos a ler textos literários e a ensiná-los nas escolas, muito embora sabendo (e quantas vezes lamentando) que a literatura está em crise, que o papel dos clássicos começa a ser contestado, que proliferam as discussões em tomo do cânone, que o estudo das Humanidades é cada vez menos compatível com a feroz lógica de mercado da sociedade contemporânea e cada vez menos procurado pelos nossos jovens.
Tem, portanto, razão aquele autor, ao referir o intenso labor teórico-crítico, sobretudo no seio das Academias, enquanto parece «definhar» a literatura como arte, melhor dizendo, como um específico discurso artístico, distinto das outras práticas discursivas sociais. Isto porque o discurso literário tem sofrido, principalmente nas últimas duas décadas do séc. XX, com a progressiva concorrência dos Estudos Culturais, uma perda da aura que dantes possuía, agora por muitos encarado como mais uma prática discursiva ao nível dos outros discursos sociais. É, com efeito, adentro deste campo da literatura como instituição que faz sentido falar do livro de Urbano Bettencourt, aqui, na sua (na nossa) ilha agora dado a conhecer, situado ainda nessa linha de investigação que acredita na dimensão órfica (aqui no duplo sentido de veículo de conhecimento e de poder encantatório) da literatura. Poderia ele, supomos, subscrever as palavras de Italo Calvino (em Seis propostas para o próximo milénio), o qual aponta como razão da sua confiança no futuro da literatura o facto de «saber que há coisas que só a literatura com os seus meios específicos pode dar-nos».
As instituições são, como bem se sabe, lugares que funcionam com as suas regras próprias, com os seus rituais mais ou menos rígidos (penso, sobretudo, nas instituições militares ou religiosas, por exemplo), com os seus códigos de conduta, com linguagem e comportamentos próprios. É ainda no contexto dessas «regras» institucionais que tem lugar um acto como este a que estamos a assistir: o lançamento de um livro, no presente caso, um livro de crítica literária. Um livro de crítica literária, com um notório pendor ensaístico, acrescente-se, o que lhe confere uma especial feição pessoal, de que seguidamente falarei.
Devo declarar, em primeiro lugar, que, adentro das regras de comportamento habitualmente instituídas em tais circunstâncias, supõe-se que o apresentador de um livro é alguém com alguma credibilidade para dele falar, mas também se espera, ao contrário de uma mera recensão crítica, que admite a opinião adversa, que dele se venha dizer bem ou, pelo menos, se não venha dizer muito mal. E, assim sendo, só faz sentido, por uma questão de honestidade para connosco, para com o autor e com o livro a apresentar, que este seja do nosso agrado, o que, à partida, nos facilita a tarefa. De contrário, só nos restaria, também honesta e delicadamente, eximir-nos a essa responsabilidade de apresentar um livro que nos rejeitasse ou com o qual não estabelecêssemos relações de empatia. Serve isto para dizer que, se me encontro aqui a apresentar Ilhas Conforme as Circunstâncias, do meu conterrâneo e amigo Urbano Bettencourt, com quem tenho o prazer de trabalhar há vários anos na Universidade dos Açores, tal só pode ser interpretado como um gesto de aprovação ao livro respectivo e como um indicativo do gosto que a sua leitura em mim provocou.
De ensaio falei, a propósito deste livro de Urbano Bettencourt, designação que nem toda a crítica literária pressupõe. Este género crítico, que Sílvio Lima, a quem se deve uni estudo seminal sobre o ensaio, define como livre exercício do espírito, pressupõe não apenas uma atitude avaliativa, mas também, fundamentalmente, uma posição de liberdade criativa. Todas as teorias de ensaio o definem, aliás, pela sua extrema liberdade, quer temática, quer formal. Tal não quer, porém, dizer impressionismo crítico ou ausência de disciplina mental, e o texto de Urbano Bettencourt é bem disso a prova. Com efeito, é nele visível a cuidadosa, embora discreta, presença de fundamentação teórico-literária, precisamente agilizada pelo discurso crítico-ensaístico. Apraz-me, assim, subscrever as justas afirmações de Eugénio Lisboa, inscritas na contracapa, a saber: que o ensaísmo de Urbano Bettencourt se enquadra naquele «ensaísmo pedagógico, lúdico e criativo, quando se dá o caso – como é o caso, neste caso - de o pedagogo ser também um genuíno escritor [...]».
É composto de treze textos de variável extensão, todos eles testemunhando as qualidades do ensaísta-escritor que Urbano é: «Do viveiro insular à América em contraluz»; «Açores – Lendas e outras histórias»; «Da Literatura Açoriana: Gaspar Frutuoso & Herdeiros»; «Retrato de grupo com Exoterismos em fundo»; «Fernando Alvares Evangelho – e o cão da escrita»; «Os milhafres de Nemésio»; «Pedro da Silveira - a escrita e o mundo»; «José Martins Garcia – a persistência dos infernos»; «Diniz Borges: outras américas»; «Cabo Verde visto por cabo-verdianos»; «Fernando de Macedo e Olinda Beja – duas vozes de S. Tomé e Príncipe»; «Desde a cidade nervosa»; «NEO – a novidade dos novos».
Permita-se-me, no entanto, que destaque de entre eles alguns que me despertaram especial interesse e que me provocaram um superior prazer de leitura. Critérios de gosto, enfim, legítimos a quem avalia obra alheia, de que não pode, de modo nenhum, estar arredada a subjectividade. E, neste momento, não assumo mais do que a duplicação do papel que o autor deste livro assumira: após ter lido criticamente os outros, dá-me agora o ensejo de, por minha vez, o ler a ele próprio. Aqui é justo ainda recordar o modo corno Urbano conjuga, de forma equilibrada, a prática de dois discursos (o literário e o ensaístico) às vezes tão próximos nos seus aspectos formais, mas diferentes na sua especificidade.
E de entre os textos incluídos apraz-me salientar o meu especial apreço por «Da Literatura Açoriana: Gaspar Frutuoso & Herdeiros» (pp. 41-60), «Retratos de Grupo com Exoterismos em Fundo» (pp. 63-76), «Fernando Álvares Evangelho – e o cão da escrita», pela riqueza da pesquisa que os informa, pelo inegável interesse para o leitor, seja porque nos oferecem uma leitura nova do que se afigura já muito conhecido (refiro-me, neste caso, à obra de Gaspar Frutuoso), seja porque carreiam preciosa informação que não está acessível a todos (refiro-me particularmente a «Retrato de grupo...») e que Manuel Urbano vem investigando criteriosa e meticulosamente para dela nos dar conhecimento, seja ainda pelas fecundas sínteses, reveladoras de um lúcido e paciente trabalho de pesquisa, que o autor nos fornece (veja-se, por exemplo, «Fer nando Álvares Evangelho – e o cão da escrita»).
Se passo mais rapidamente sobre «Os milhafres de Nemésio» (pp. 101-120), sobre «Martins Garcia- a persistência dos infernos», ou mesmo Pedro da Silveira, todos eles de inegável qualidade, é tão-só porque conhecemos de outros espaços os belos textos de Urbano sobre estes autores (que, aliás, vêm sempre na linha da frente quando ele se propõe rastrear os escritores açorianos da contemporaneidade) e entendo ser meu dever chamar aqui a atenção para o menos conhecido, e a merecer leitura atenta, que estes ensaios nos trazem.
No caso de Gaspar Frutuoso, por exemplo, Urbano Bettencourt lê Saudades da Terra pelo lado em que esta obra é menos lida, o literário, e justifica-o com a necessidade de uma abordagem que assinale «o pioneirismo de Frutuoso e reivindique o seu texto literário para o “corpus” da ficção açoriana, de que estabelece os fundamentos, ao construir uma história que aproveita os códigos em voga e os actualiza numa configuração espácio-temporal e semântica de natureza insular.» (pp. 43-44).
A partir daqui, a sua leitura incidirá, como não poderia deixar de ser, sobre o Livro Quinto, onde a sequência cronística é interrompida para incluir a «história dos dois amigos», narrativa sentimental que estabelece, mais ou menos directamente, como Urbano também assinala, relações transtextuais com a Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro.
De forma teoricamente fundamentada, e criticamente muito cuidadosa, ele vai distinguindo o que, tanto na formulação discursiva como na matéria narrativa, pertence ao domínio da crónica, propriamente dita, e o que se situa do lado da ficção narrativa (literária, portanto). Digna de nota e merecido aplauso é, sobretudo, a forma como o autor destas Ilhas Conforme as Circunstâncias alarga culturalmente o seu discurso, estabelecendo nexos não só com os autores da época, como se disse, a propósito de Bernardim Ribeiro, mas também como enquadra em termos estéticos, históricos e periodológicos, a obra em apreço.
Mais importante do que apontar Menina e Moça como modelo, é o facto de Urbano Bettencourt, na sua leitura, ir apontando, por um lado, o modo como ganha forma em Frutuoso a expressão de uma condição insular, ao mesmo tempo que a sua crónica acusa a presença de referências culturais e ético-religiosas não confinadas às ilhas. E, finalmente, a parte mais interessante, e mais rica deste estudo é, quanto a mim, aquela em que, partindo das considerações iniciais sobre Gaspar Frutuoso, Urbano Bettencourt se lança num percurso diacrónico de investigação à procura dos «herdeiros» (e a palavra, neste contexto, tem sentido nobre, até porque estes herdeiros são ou escritores de primeira grandeza, ou (mesmo não podendo guindar-se à altura de um Vitorino Nemésio), de reconhecido mérito literário.
Deste modo, a sua leitura atenta e perspicaz vai percorrendo a literatura açoriana posterior a Gaspar Frutuoso, na busca da expressão da insularidade, sob vários cambiantes literariamente plasmada. Mas, afinal, o lugar de paragem é, efectivamente, o séc. XX, de que Vitorino Nemésio é o expoente máximo, no que a esta questão diz respeito, mas que encontra um vasto campo de representação, até chegar a um novíssimo Joel Neto, que, nascido em 1974, não viveu as necessidades da emigração, não passou pela guerra colonial e não tem memória das décadas que antecederam o 25 de Abril.
Trata-se de uma rica perspectiva, esta que nos é dada, pondo em relevo aquilo que seria comum à condição da insularidade, mas salvaguardando a originalidade de cada autor nas facetas que dela salientou e no modo como a viveu. Cito, já do parágrafo final, esta longa frase, que é uma condensada e inteligente síntese do muito que o autor foi anteriormente afirmando:
«Em jeito de síntese final, e ressalvando a omissão de muitos mais textos e autores e mesmo outros registos como o cómico e o satírico [...], poderemos detectar na Narrativa Açoriana (entendida aqui no sentido de um macro-texto que relevaria da pluralidade das narrativas particulares) a refiguração do processo histórico de um povo, dos percalços e avanços da sua caminhada, dos diferentes modos como ao longo do tempo ele foi olhando para si e para o mundo, estabelecendo a partir daí as coordenadas de um território físico e simbólico necessário à sua sobrevivência; mas também a lírica, nas suas especificidades enunciativas e semânticas, não passa ao lado daquilo que é uma experiência colectiva e individual, transfigurando-a e devolvendo-no-la como expressão de uma percepção subjectiva do mundo e da vida.» (p. 59).
«Retrato de Grupo com Exoterismos em Fundo», título formado a partir da revista, de efémera existência, intitulada Exoterismos, aparecida em Ponta Delgada, na Primavera de 1894, para além de nos dar conhecimento das linhas de orientação da mesma e das circunstâncias que terão rodeado a respectiva publicação, revela-se ainda de extrema utilidade quer pelas relações de carácter periodológico – chamando Camilo Pessanha e, de um modo geral, o Simbolismo à colação – que o autor põe em destaque, quer pela análise levada a cabo em termos de estética da recepção, no sentido de nos fazer cientes das reacções da imprensa da época à publicação em causa. E, como geralmente acontece em cada um destes ensaios, nomeadamente naqueles a que subjaz uma investigação mais aprofundada, há novamente uma conclusão que é sempre um denso e arguto balanço do que foi sendo rastreado. No presente caso, trata-se de assinalar o lugar de Exoterismos como «um meio de expressão da modernidade literária, ao lado de outros, é certo, e através dos quais os Açores puderam participar nas preocupações estéticas da sua contemporaneidade». (p. 76)
Refira-se também que nestas Ilhas Conforme as Circunstâncias há mais ilhas do que as dos Açores e o autor declaradamente o regista no prefácio, ao citar Pedro da Silveira, para também fazer sua a afirmação de que «o [seu] olhar se projecta sobre “as ilhas todas do mar”» (p. 12). Com efeito, esta atracção de Urbano pelo estudo dos espaços insulares leva-o a outras ilhas, a Cabo Verde e a S. Tomé e Príncipe, num pioneirismo que, entre nós, a nível do ensino, é de saudar, porquanto foi o responsável pela introdução da disciplina de Literaturas Africanas na Universidade dos Açores, cuja regência tem estado a seu cargo.
Não se esquece, porém, o nosso autor de declarar, em «Pedro da Silveira – a escrita e o mundo», o quanto se deve a este escritor florentino, a quem terá cabido um papel fundamental «não apenas enquanto elemento aglutinador e elo de ligação com diferentes autores e espaços culturais, mas também como divulgador atento de escritas provenientes de outras paragens e apresentadas como modelo para a renovação da literatura açoriana». Mais acrescenta que «neste sentido, é paradigmático o persistente empenhamento de Pedro da Silveira em trazer ao conhecimento público a nova literatura surgida em Cabo Verde a partir da revista Claridade (1936) e em assegurar a participação dos respectivos autores nas páginas d’A Ilha [...]» (p. 125).
Estando na Ilha do Pico, a nossa Ilha (se escritora fosse também a cantaria), não posso deixar de referir a vasta informação trazida em «Fernando Álvaro Evangelho – e o cão da escrita», texto de uma notável riqueza informativa. Aí, a partir de uma referência histórico-lendária que acaba por servir de título metafórico, procede novamente, como tantas vezes acontece, a uma revisão (mas perspectivando-a sempre de ângulos que nos vão trazendo novas perspectivas) dos problemas da insularidade, aqui particularizados nas perspectivas dos que (alguns muito recentemente) sobre a ilha montanha foram escrevendo e, neste caso, submetidas, na leitura de Urbano, ao tema comum da solidão e do isolamento e da consequente necessidade do Outro como factor de comunicação e diálogo.
Seja de forma mais ou menos autobiográfica, lírica ou narrativa, seja de recuperação, como faz Ângela Brum, de lendas e outras histórias, trata-se de «romper o silêncio», dizendo a magia da ilha que se deixou, as suas marcas nos que nela vivem, confrontando a ilha que se (nos) deixou no passado com aquela que hoje continua a falar-nos à memória e à imaginação como espaço geográfico propenso à mitificação artística.
É ainda sobre o Pico esse curto texto intitulado «Desde a cidade nervosa», ensaio criativo de ligeira ressonância autobiográfica, assim o designo, à falta de melhor termo para o classificar genologicamente, atravessado por uma evidente tonalidade lírica que nos encanta e comove.
De referir também o modo como em Urbano Bettencourt actividade pedagógica e actividade crítica mutuamente se interfecundam, uma prova de que o investigador não se esquece de que é também professor, enquanto, por sua vez, o professor vai enriquecendo a sua actividade crítica com a renovada preparação e constante actualização da matéria científica das suas aulas. Talvez, é uma pressuposição minha, venha daí a elegante clareza (que não esconde o profundo labor de investigação) do seu discurso ensaístico.
No caso, sobretudo, dos escritores açorianos, o conhecimento das respectivas obras deve bastante ao cuidadoso trabalho de Urbano Bettencourt no seu desempenho académico e pedagógico como docente da disciplina de Literatura Açoriana bem como à sua laboriosa e frequente actividade crítica, como esta recolha de ensaios agora publicada em livro bem testemunha.
Resta-me ainda, antes de concluir, salientar a voz discreta que perpassa em todos estes ensaios e esta não é, certamente, uma das suas menores virtudes. Porque o autor está sempre presente, com uma voz e um estilo muito próprios, mas a voz autoral está lá para nos dizer que não veio exibir espectacularmente o seu eu, antes para nos lembrar, pela ética da sua posição crítica, o que brilhantes ensaístas nos têm vindo a dizer: que a atitude do crítico deve ser de humildade, não devendo esquecer-se de que à sua escrita compete menos chamar a atenção para si própria do que para a obra alheia, que lhe compete ler e analisar. Recordo, neste particular, Eduardo Lourenço e George Steiner, os quais, brilhantes ensaístas, de um ensaio vizinho da criação literária, sublinham por demais o papel de secundário da crítica literária em face da verdadeira criação. Mas a verdade é que – e o próprio Eduardo Lourenço é, entre nós, um belíssimo exemplo disso mesmo – certos textos literários que não tivessem conhecido, ao longo dos tempos, a fortuna crítica que conheceram não teriam chegado até nós como chegaram. E é também certo que hoje, mais do que nunca, se reconhece o ensaio como género que, embora assumindo a tarefa de iluminar o seu objecto de estudo, se afirma igualmente, mente, não raras vezes, como género que se empenha artisticamente no cultivo da forma. Neste sentido se encaminha o ensaio de Urbano Bettencourt. Ficamos à espera de novos escritos.
Rosa Maria Goulart
S. Mateus do Pico, Agosto de 2003
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